Jon Hassell conversa com o Ípsilon por telefone, directamente a partir de Los Angeles, onde vive. Oito horas de diferença. Cidade gigantesca, marcada pela violência mas também pela fantasia, é o terreno ideal para a pesquisa de ambientes urbanos de que Hassell é um mestre reprodutor.
Considerado um dos maiores estetas de sempre no design de ambientes sonoros, o músico que está de visita ao Teatro Municipal Maria Matos, Lisboa, na próxima quarta-feira, estudou com Karlheinz Stockhausen e Pandit Pran Nath, colaborou com os pioneiros do minimalismo La Monte Young e Terry Riley, e participou em discos históricos de artistas tão importantes como Talking Heads (no seminal "Remain in Light"), David Sylvian, Peter Gabriel, Kronos Quartet ou Ry Cooder. Pelo caminho, construiu uma discografia fascinante que atravessa o espectro do minimalismo, da música experimental, do "ambient", da fusão étnica e do jazz atmosférico, e desenvolveu uma colaboração de grande cumplicidade com Brian Eno, seu amigo e conspirador de longa data, talvez o maior "ambient maker" de sempre.
Até custa imaginar que a pessoa que se encontra do outro lado da linha seja realmente amigo de Brian Eno. Como é possível alguém ser amigo de uma figura intocável, quase um deus, que pertence ao imaginário mais profundo da magia musical? Hassell conversa, passeia, e partilha projectos com ele. Numa carta aberta escrita recentemente, Eno refere: "Devo muito ao Jon. Na verdade, muita gente deve muito ao Jon. Ele semeou uma poderosa e fértil semente cujos frutos ainda hoje colhemos."
Tentando ampliar a ressonância dessa semente, os dois mantêm o projecto "Conversation Piece", uma série de diálogos públicos em que debatem ideias e pontos de vista em torno de temas como arte, sexo, religião e música. Sem censura e sem qualquer tipo de barreiras. Um encontro de mentes que teve a sua origem em 1978, ano em que Brian Eno, acabado de chegar a Nova Iorque, se deslumbra com "Vernal Equinox", obra notável de Hassell em que este dá forma, pela primeira vez, àquilo a que chama quarto mundo: "Fiz a divisão, na altura com base num mapa mental e político do planeta, em que os outros mundos eram representados pelos Estados Unidos e o Ocidente, a União Soviética, e o resto do mundo. No fundo, idealizei um mundo imaginário onde se cruzavam o tecnológico e o espiritual/tradicional." Um mundo a que Miles Davis também parecia pertencer, diz: "Sempre utilizei como referência um tema de Miles Davis, "Black Satin" do álbum ‘On The Corner'. Se Miles tivesse continuado naquela direcção, estaria a fazer esta música."
Dois anos mais tarde, em 1980, Eno e Hassell viriam a colaborar em "Fourth Worlds Vol.1 - Possible Musics", um marco na "ambient music" que viria a influenciar gerações de artistas dos mais diversos quadrantes. Das reflexões de "Conversation Piece" irá ainda sair "The North and South of You", livro que Hassell está prestes a terminar e que integra um conjunto de pensamentos e ideias coleccionados ao longo de anos. Uma espécie de "blueprint" de toda a sua actividade.
Do Futurismo à pré-história
Uma das características mais fortes da obra de Hassell é a ligação entre elementos futuristas, conceitos sonoros que ainda hoje soam estranhamente vanguardistas, e uma vibração primordial que ecoa as origens mais longínquas do som. Hassell é claro quando lhe perguntamos qual o aspecto-chave da sua música, aquele de que gostaria que falássemos quando falamos dele: "Os ambientes. Vejo a minha música como uma combinação de diferentes ingredientes sonoros, de diferentes aspectos que me interessam, como os arranjos de Gil Evans, a música indiana, a electrónica experimental, o ‘live sampling', a música dos pigmeus... conjugadas de diferentes formas para criar um ambiente novo, um novo contexto sonoro onde nunca tenhamos estado." Procurando aprofundar um pouco este aspecto, Hassell continua: "Sempre me senti atraído por formas de música não ocidentais. Música de origem ancestral, pré-rádio, pré-indústria, em que não exista uma divisão clara entre o popular e o erudito. Uma música ouvida e tocada por novos e velhos, com uma componente grande de improvisação, de puro instinto. Interessam-me cada vez mais os aspectos básicos. Nunca quis fazer música deliberadamente vanguardista. Quando estudei com Stockhausen, éramos um grupo de compositores a compor para outros compositores, talvez daí a exigência e a complexidade de alguns dos meus trabalhos iniciais."
Com "Last Night The Moon Came Dropping Its Clothes On The Street", editado no início deste ano, Jon Hassell regressa à ECM, 23 anos depois de "Power Spot", e assina um disco de uma beleza intensa, uma gravação marcada pelo silêncio e pela contenção, feita de movimentos subtis que não escondem a força avassaladora do todo. É assim que se faz, explica: "No estúdio, faço inúmeras sessões de gravação, básicamente improvisações. Depois de ouvir, escolho excertos que me captam a atenção e torno a trabalhá-los. É um processo que não pode ser visto de forma isolada, pois trata-se de uma cadeia de acontecimentos. Gravo todas as músicas tocadas nos concertos, que, por sua vez, são já versões transformadas de anteriores músicas de estúdio, sempre com grande espaço para a improvisação."
Um "work-in-progress", portanto: "Há uma continuidade de elementos, uma transformação gradual. Neste último disco, não utilizei apenas o trabalho que foi feito em estúdio no Sul de França. Integrei também excertos de um concerto que fizemos em Londres." Uma continuidade que vai ser encarnada em palco, no próximo dia 28, por Hassell (trompete e teclados), Jan Bang (sampler), Eivind Aarset (guitarra e baixo) e Kheir-Eddine M'Kachiche (violino).