Os filmes "levam-nos para o inferno", sentenciava a avó de Hana Makhmalbaf ao seu pai, antes de ele se tornar num dos mais célebres realizadores do Irão. "Ela era uma mulher simples, sem uma perspectiva política, mas se hoje fosse viva pegava num telemóvel e enviava mensagens para todo o mundo a mostrar as atrocidades dos ‘mullahs'", diz a filha de Mohsen e irmã de Samira. "Ela era contra os filmes sem conteúdo feitos em Hollywood, mas, se estivesse viva, gostaria de ver os filmes que mostram as dores da sociedade iraniana."
É o caso de "Green Days", que o DocLisboa passa dia 22 no S. Jorge. "No Irão, o meu filme é como um espelho posto à frente da sociedade, que a faz ver nele a sua imagem", explica Hana ao Ípsilon por "e-mail". "É um espelho que mostra a realidade, mas quando o filme é exibido fora do Irão é uma carta escrita. Felizmente, este filme foi exibido no Irão, duas vezes, pelo serviço persa da BBC. O povo viu-o, para não esquecer qual era o seu sonho de democracia antes da eleição [presidencial de Junho]. E, vendo este filme fora do Irão, vocês conseguem ver a diferença entre um povo que quer a liberdade e um presidente ditador [Mahmoud Ahmadinejad]."
Ava, a protagonista do filme, "é um símbolo de um povo que havia perdido as suas esperanças e as recuperou com o ‘movimento verde'" da candidatura de Mir-Hossein Mousavi, adianta Hana, a cineasta de 21 anos que, aos 8, fez a sua primeira curta, "The Day My Aunt Was Ill", aos 14 o documentário "Joy of Madness" e aos 17 ganhou notoriedade com a longa "Buddha Collapsed Out of Shame". Em "Green Days", Ava "não é uma pessoa, é o símbolo de uma nova geração sem esperança, porque não há mudanças".
"Por ser jovem e mulher, percebo a situação destes dois grupos", salienta Hana. "Há 30 anos, quando aconteceu a revolução, o Irão tinha 30 milhões de habitantes. Agora são 70 milhões, e 65 por cento têm menos de 30 anos. Os jovens precisam de amor e de liberdade, mas estas duas coisas são proibidas no Irão. Prendem as raparigas e os rapazes por se apaixonarem. Um poeta iraniano [o defunto Ahmad Shamloo, autor de ‘Ketab-e Koucheh'/‘O Livro das Ruas'] escreveu: ‘Eles cheiram a tua boca, não vás tu alguma vez ter dito: ‘Gosto de ti.' Matam as pessoas que defendem a liberdade, torturam-nas e violam-nas. As mulheres, nestes últimos 30 anos, sofreram o dobro da injustiça de qualquer homem - primeiro como qualquer iraniano injustiçado e depois por causa das leis do país, que são patriarcais."
Sobre a sua experiência nos "dias verdes" de Junho conta: "Antes das eleições, quando ainda não tinham começado as detenções [em massa], fui várias vezes detida, e os meus filmes confiscados. Depois, expulsaram os jornalistas estrangeiros e começaram à procura dos iranianos que tinham visto a filmar. Para me apanharem, atacaram três sítios diferentes, mas eu mudava de sítio. Além de filmar, cometi outra ‘infracção': sou filha do meu pai, que havia por duas vezes falado no Parlamento Europeu contra as autoridades iranianas."
Tentativa de assassínio
Os sacrifícios sofridos pelo cinema não são uma novidade para o "clã" que em 1996 fundou a Makhmalbaf Film School. "Desde os 13 anos que viajo para o Afeganistão para filmar", lembra Hana. "Com esta idade, fui raptada duas vezes, mas fui salva pelo povo. Há dois anos, quando a minha irmã, Samira, estava a fazer ‘Two-Legged Horse', atacaram-nos com uma bomba: 21 pessoas ficaram feridas e outra morreu. O indivíduo que detonou a bomba era um agente do Irão. O Governo iraniano queria matar a nossa família e culpar os afegãos. O Governo faz estas coisas para não fazermos filmes contra a sua ditadura, mas estes actos só nos encorajam. A nossa família sabe que todos iremos morrer um dia - esta morte pode ser provocada por uma bomba ou um acidente, mas o importante é que, enquanto estivermos vivos, façamos algo pelos sonhos da humanidade. Arriscamo-nos cada vez mais."
Como é que os Makhmalbaf, que foram apoiantes da revolução de Khomeini, se tornaram opositores? "Quando o meu pai tinha 15 anos, iniciou a sua luta contra o Xá, e aos 17 levou um tiro no estômago, enquanto gritava contra a ditadura", relata Hana. "Ele e os jovens daquela geração lutavam por liberdade e justiça, e pensavam que com a queda do Xá a ditadura iria acabar. O meu pai esteve preso durante quatro-cinco anos, após os quais ficou vários meses hospitalizado por ter sido torturado. Quando finalmente saiu, cedo percebeu que a ditadura tem as suas raízes na cultura iraniana."
Foi então, continua, que Mohsen "optou por ser escritor e fazer filmes para ser capaz de mudar esta cultura". Desde há 25 anos, cinco dos quais no exílio, "todos os seus livros e filmes são para criticar o Governo islâmico e muitos desses filmes foram proibidos no Irão. Na Índia, no Afeganistão e no Tajiquistão, tem filmado contra os ‘ayatollahs' e os taliban. Na nossa opinião o governo ideal é um governo laico. A religião deve estar separada da política. Devemos ter o direito de eleger o nosso Presidente da República com nossos votos a cada quatro anos."
Hana insiste: "A religião é um assunto pessoal, e o governo um assunto colectivo. Numa sociedade pode haver várias religiões, mas não vários presidentes para várias circunscrições. Nos últimos 30 anos, muita gente abandonou a religião por causa da mistura com a política. Com um governo religioso que insiste em obrigar o povo a ter a mesma religião, o povo perde a fé. Religião e política têm funções diferentes."
"Tenho a certeza que um dia o Irão terá um governo secular", conclui a filha de Mohsen. "Nesse dia, a liberdade não será decapitada em nome de Deus, e a beleza não será aprisionada, nem nos cheirarão as bocas incessantemente para verem se alguma vez dissemos: ‘Gosto de ti.'"