"Justiça seria não ter passado anos no corredor da morte"
Justiça? Justiça seria não o terem feito passar cinco anos na Prisão Estadual da Florida, incluindo três no corredor da morte, disse ao PÚBLICO, em Lisboa, onde veio falar, a convite da Amnistia Internacional Portugal.
Fala do que passou, dos amigos que lá deixou, mortos, da angústia que enganava lendo cartas, muitas de portugueses, das noites em que, às escuras, sussurrava com os companheiros das celas ao lado.
Hoje, aos 39 anos, é um adversário da pena de morte, luta de que fez uma espécie de profissão para ver se tira da Florida os amigos que ainda lá deixou vivos. Ao princípio perdeu a esperança. Hoje sobra dela: acredita que mais cedo do que tarde os Estados Unidos passarão para a lista dos países abolicionistas. Já dorme melhor. Mas qualquer tilintar de noite o faz saltar na cama, quando às vezes é só o fio que Mónica, a actual companheira, traz ao pescoço.
Olha com impressão para o número 202, da porta do quarto do hotel, o mesmo da cela onde esperou por um milagre. Mas abraça com entusiasmo os dias que faltam para o fim da pena de morte no mundo.
PÚBLICO - Teve mesmo a vida por um fio...Joaquín José Martínez- Estive muitas vezes na minha vida perto da morte. Mas a experiência do corredor da morte da Prisão Estadual da Florida superou realmente tudo.
Foi vítima de uma cabala?Fui um bode expiatório. Precisavam de encontrar um responsável pelo crime de que me acusaram. Fui o décimo segundo. Havia mais suspeitos. As vítimas foram um rapaz, Douglas Lawson, que traficava droga, e umastripteaserde umcabaret de Brandon. Acontece que ele era filho do xerife da cidade onde as coisas aconteceram...
Sim, mas também teve contra si pessoas muito próximas, como a sua ex-mulher e a sua noiva na altura.Ao princípio foi só a minha ex-mulher. Dois dias antes telefonou ao procurador para mudar o seu testemunho contra mim.
Pressionada a isso?Sim.
O que sentiu quando ouviu a sentença de morte?Senti-me traído. E também uma agonia muito grande.
Traído?Sim, pelo país que apoiava, pelo país em que acreditava. Eu até era a favor da pena capital, veja lá!
A circunstância de ser imigrante e equatoriano pesou?Pesou. Eu era um hispânico. Dizem muitas vezes que a questão racial não é importante, mas é.
Como foi consigo?No meu passaporte, eu não aparecia como equatoriano mas como espanhol. Eles comentavam: "Mais um espanhol!" Sei lá quantas vezes ouvi isso! Mas disseram coisas muito piores de "assassino" em diante...
E quem é que lhe chamava isso?A polícia, os guardas.
Mas o segundo julgamento esclareceu tudo.Sim. A minha ex-mulher voltou atrás. A minha noiva também. E o mesmo aconteceu com doze presos que tinham assinado declarações contra mim.
Também constrangidos?Todos escreveram nos testemunhos que tinham sido aliciados com a promessa de uma redução das penas. Um dos que acabaram por dizer a verdade foi morto depois. Chamava-se Neil Ebling.
Morto, como?Ele cumpria quatro anos. Disseram-lhe que se testemunhasse contra mim lhe reduziam a pena, que faria só quatro anos, numa prisão do Alasca, e seria solto. Mas ele enviou uma carta a contar tudo. Foi morto, a tiro, no dia 1 de Janeiro de 2001, quando, segundo a polícia, tentava escapar.
No segundo julgamento declararam-no "não culpado". Por que não "inocente"?Nunca o fariam. Porque com isso reconheceriam que tinham cometido um erro. Ora, os norte-americanos não cometem erros... [Ri-se] Muita gente pergunta porque é que falo assim. Acontece que vivi muitos anos nos Estados Unidos e sei como são os americanos. Fui um deles, sabe? Não, eles não cometem erros...
Mas não sente que acabou por se fazer justiça?Não. Isso é o que dizem os diplomatas. Estendem-me a mão, sorriem e dizem que se fez justiça, de outro modo não estaria livre.
O que é justiça para si?Olhe: é dar a cada um o que cada um merece, e eu não merecia cinco anos e meio na prisão, incluindo três no corredor da morte.
Pelo meio teve um mundo inteiro a seu lado, os reis de Espanha, o Parlamento Europeu, o Papa...É verdade.
A certa altura, o que teve foi muita sorte.Ah, sim, mais sorte do que outra coisa! Houve uma combinação perfeita para me livrar, os meus pais, que se esgotaram em sensibilizar as pessoas, e osmedia, sem os quais o meu caso não seria conhecido, foram decisivos.
Recebia muitas cartas?Muitas! Cartas e postais, que partilhava com os outros. Recebi também muitas daqui, de Portugal, de grupos da Amnistia Internacional de Lisboa, do Porto. Impressionante, o que fizeram por mim! Chegavam aos montes! Às vezes perguntam-me para que é que isso serviu na prática. Para quê? Faziam-me sentir forte! As pessoas cá fora não podem entender.
Como é o corredor da morte? É assim um piso frio, comprido e de luzes mortiças?É pior. Quando lá cheguei tinham queimado um homem, um ou dois meses antes, na cadeira eléctrica, e o caso estava no Supremo Tribunal do estado. Todas as semanas testavam o sistema. A gente via as lâmpadas do corredor a apagarem-se e a acenderem, e tudo outra vez, como se estivesse a haver uma execução. Uma, duas, três vezes... Os juízes tinham que decidir se a cadeira eléctrica era um castigo justo e humano, ou desumano, porque nessa execução tinham saído chamas do capacete de metal do condenado.
Houve execuções enquanto lá esteve?Logo na primeira semana, três. Numa delas, a cadeira voltou a funcionar mal. Foi então que o tribunal ordenou a sua substituição pela injecção letal.
Que era o que o esperava...Que era o que me esperava.
Como eram as últimas horas dos condenados?Nos filmes perguntam-lhes o que é que querem para a sua última refeição, não é? Na realidade, não querem nem comer.
Quando tempo esteve no corredor?Três anos.
E durante esse tempo quantas pessoas foram mortas?Oito.
Via-as da sua cela a caminho da sala de execução?Via-as, sim. Choravam e tremiam. Urinavam-se enquanto caminhavam. A minha cela ficava na esquina em que se virava para a sala - nos dois primeiros anos estive na 202, o mesmo número deste quarto [de hotel] em que estamos a falar. Na da direita estava um árabe, Akeem Muhamed, e na da esquerda, um cubano, Rigoberto Sánchez. Mas via mais: do outro lado havia uma janela para o pátio e via os familiares dos condenados a chegarem. E a seguir, a partirem.
Como passava os dias? Lia? Rezava? É crente?Lia muitas cartas, estudava o mais que pudesse. Sim, sou crente.
O que é que estudava?Ciência Política.
Os presos conviviam uns com os outros?Éramos, no nosso pavilhão, cada um na sua cela. Ao todo, em todos os pavilhões, uns cinquenta. Saíamos duas vezes por semana para o pátio, umas ou duas horas de cada vez. Mas se estivesse a chover, não saíamos. E se o céu estivesse nublado, também não.
Quem eram os seus companheiros?A mim, como era um dos piores casos, puseram-me junto de assassinos em série e outros muito violentos. Três converteram-se nos meus melhores amigos.
De todos os dias que lá passou, qual foi o pior?Aquele em que mataram o meu melhor amigo, Benny Temps. Tinha-o visto antes com a sua família, os seus filhos, a despedirem-se. Foi ainda na cadeira eléctrica. Estávamos todos a olhar para as lâmpadas, em silêncio, eram sete da manhã. Elas piscaram três vezes, apagaram-se e voltaram a acender-se.
Como uma tortura...Era uma tortura. Desde que saí, e em minha casa, não uso lâmpadas dessas. Só de halogénio.
Perdeu a esperança alguma vez?Sim, logo no primeiro mês. Estava só, sem cartas, nem visitas, nem nada. Era só o medo. Estás só e vais-te abaixo porque não sabes o que te espera. Era só o medo.