Quem hoje chegue à porta do Centro de Arte Moderna na Gulbenkian verá o asfalto da rua coberto por círculos pintados de rosa e amarelo. Não se tratam de sinais marcados para umas quaisquer obras no pavimento, mas a recriação de uma acção do grupo ACRE feita para a inauguração de "Anos 70 - Atravessar Fronteiras", a exposição que ocupará o espaço do museu até Janeiro. A acção, que reproduziu uma outra que teve lugar em 74, na Baixa, introduz uma das ideias fortes da arte que se fez nos anos 70: a procura de um utópico casamento entre arte e quotidiano, através da performance, da instalação e da saída da arte do museu para o espaço da rua. A revisitação dos anos 70 é, com efeito, o tema da exposição comissariada por Raquel Henriques da Silva. Como era de esperar de uma historiadora de créditos unanimemente reconhecidos, a selecção de artistas e obras possui um carácter historicista que permitirá ao público compreender, provavelmente pela primeira vez, a extraordinária diversidade de artistas, propostas, obras e acontecimentos que marcaram a arte dessa década. Dividida em três núcleos (paisagens, espaços utópicos e performances), que se completam por uma extensa secção documental apresentada no piso 01 da nave, a exposição dá conta de dezenas de artistas, de obras que raramente foram vistas depois da sua criação, e sobretudo da extraordinária vitalidade que atravessou a década de 70.
Não foi uma década fácil. Balizada pelos anos 60, a montante, que marcaram a entrada em Portugal da arte internacional pela via do exílio; e pelos anos 80, a jusante, data da emergência de uma geração marcada por preocupações diversas das que aqui vemos (e que por isso escolherá as suas imagens de referência entre artistas que também não vemos aqui, como Dacosta), os anos 70 foram quebrados por uma revolução que conseguiu dinamizar a criatividade dos artistas para uma causa comum. É frequente dizer que, na segunda metade da década, os artistas andavam na rua a pintar paredes. Mas o que isso traduz é apenas um dos muitos paradoxos desse tempo: numa década em que as grandes narrativas históricas e artísticas parecem não mobilizar mais ninguém pelo mundo fora, em Portugal dá-se início a uma nova narrativa, a da construção de uma sociedade nova, na qual a arte se faz para o povo.
E os resultados desse paradoxo lá estão: no quadro pintado pelo grupo PUZZLE, obra colectiva brindando os cravos na rua, nos cartazes rasgados por Ana Hatherly e apresentados emoldurados, como nas obras de natureza política que muitos artistas faziam na altura. Ao mesmo tempo, corolário indispensável do pensamento que tudo questiona, a paisagem e o espaço privado são a matéria prima de outras reflexões, que incluem, obviamente, a da própria natureza da obra de arte: das instalações de Alberto Carneiro e Carlos Nogueira às casas de Ana Vieira, das letras de João Vieira à arte feminina e/ou feminista de Isabel Laginha e Túlia Saldanha, das caixas de António Areal às intervenções de Ernesto de Sousa ou ao Citymobil de Costa Pinheiro. E também, porque disso se faz uma década, à interpretação do pós-minimalismo feita por três (na altura) muito jovens artistas: Fernando Calhau, Julião Sarmento e Leonel Moura, que aqui se inserem com justeza.
Uma das obras que maior impacto fará nos visitantes é a escultura "Jaz morto e apodrece, o menino de sua mãe", de Clara Meneres, que em 1973 apresentava assim a imagem hiperrrealista de um soldado do exército português morto. Clara Meneres é uma das artistas mais importantes da época: quatro anos depois, mostrava na Bienal de São Paulo um torso feminino nu feito de terra, no qual a erva crescia à medida que a exposição decorria. A obra fez escândalo mas não foi retirada. Mais tarde, enveredou pelo ensino académico, onde tem feito trabalho notável, mas a sua escultura perdeu boa parte da capacidade de interpelação que possuía na altura. É sabido que a história nunca é simpática nem grata para com os revolucionários. Muitos artistas que aqui estão podem testemunhar isso mesmo.Uma última menção deve ser feita à inclusão feliz de artistas e obras que, embora oriundos de outras gerações que não a que aqui é dominante, estão activos durante os anos 70 e produzem trabalho com sentido. Mencionaremos Pomar, por exemplo, Sá Nogueira e Armando de Azevedo. É que uma década não se faz apenas de inovações, mas também de continuidades. A comissária percebeu-o, e o mérito é todo seu.