Música pela dignidade humana
Anne Sofie von Otter (meio-soprano)Daniel Hope (violino)Bengt Forsberg (piano)Bebe Risenfors (contrabaixo, acordeão e guitarra)Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian2 de Outubro, às 19h.Sala cheia
Há artistas cuja qualidade e estatuto lhes permitem apostar em repertórios pouco conhecidos e em projectos que se afastam domainstreamsem prejuízo da adesão do público. Anne Sofie von Otter poderia vir à Gulbenkian cantar qualquer coisa, que teria sempre sala cheia. Assim sucedeu com o recitalCanções de Theresienstadt na sexta-feira, que retoma em parte o programa de um dos seus últimos discos e compreende música escrita por compositores judeus no campo de concentração que os nazis estabeleceram em 1941 no forte de Theresienstadt (Terezín em checo), a 60 km de Praga. Neste campo de passagem estiveram cativos numerosos músicos e outros artistas antes de serem transportados para Auschwitz.
Apresentado por motivos de propaganda como "gueto modelo", Theresienstadt permitia e fomentava as actividades culturais dos prisioneiros, pelo que a música funcionou também como uma âncora da dignidade humana. O repertório ligado a Theresienstadt tem sido objecto de crescente atenção nos últimos anos, mas a obra de compositores como Viktor Ullmann (1898-1944), Ilse Weber (1903-1944), Karel Svenk (1917-1945), Emmerich Kálmán (1882-1953), Robert Dauber (1922-1945), Karel Berman (1919-1995), Erwin Schulhoff (1894-1942) e Pavel Haas (1899-1944), quase todos mortos pelos nazis, permanece ainda pouco conhecida da maioria dos melómanos.
Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg (piano), Daniel Hope (violino) e Bebe Risenfors (contrabaixo, acordeão e guitarra) revelaram algumas obras de grande consistência escritas por compositores talentosos - especialmente a música de Ullmann, Schulhoff, Haas e Berman -, mas quiseram também mostrar o quadro mais ecléctico dos músicos de Theresienstadt e das suas vivências e fazer-lhe uma sentida homenagem. A forma inteligente como encadearam as inspiradas canções de embalar de Ilse Weber (que foi enfermeira das crianças do campo e viria a morrer com elas na câmara de gás de Aushwitz), peças ligeiras marcadas por um humor mordaz como a Marcha de Terezín, de Svenk, ou oTerezín-Lied(da operetaGräfin Mariza), de Kálmán, com páginas de maior profundidade foi uma das chaves de sucesso do concerto. A cantora, o violinista e o pianista contextualizaram oralmente o repertório e os seus autores e recordaram o sofrimento dos seus últimos anos de vida.
A sensibilidade e o profissionalismo da meio-soprano sueca contribuíram para enriquecer os trechos mais despretensiosos, alguns próximos da música de cabaret, mas o alto nível técnico dos instrumentistas ficou também bem patente na interpretação envolvente de Daniel Hope das exigentes Sonatas de Schulhoff e na prestação de Bengt Forsberg nos excertos das Suites para piano de Haas e Berman. No seio de uma forte cumplicidade de conjunto emergiu o belo timbre de Anne Sofie von Otter e a sua interpretação sempre inteligente e cuidada, bem atenta à diversidade de estilos e ao conteúdo do texto. A versatilidade da cantora permite-lhe ser convincente numa grande variedade de registos, mas foram as canções mais densas de Ullmann (Clere Vénus, op. 34/V,Immer inmitten) e Schulhoff (Drei Stimmungsbilder, op. 12, n.ºs 1 e 3), detentoras de maior modernidade e poder expressivo, que mais nos ficaram na memória, bem como o comovente "mundo silencioso" deWiegala, de Ilse Weber, no final do recital.
Cristina Fernandes