O mundo explode outra vez nas mãos do Teatro Praga

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Nas mãos dos Praga, o teatro parece uma daquelas personagens que se recusam a morrer. Podem atirá-lo de um precipício, crivar-lhe o peito de balas, atropelá-lo com um cilindro - ele acaba sempre por levantar-se. Eles também não querem propriamente matar o teatro. É mais ver o que é que ele aguenta.

Em mais de uma década de não-teatro (está bem assim, Pedro Penim?), usaram textos não-dramáticos em palco, enxertaram semiótica nos espectáculos (a lista de influências apresentada no Facebook é ocupada quase exclusivamente por nomes da filosofia: Guy Debord, Jacques Rancière, Slavoj Zizek, Peter Sloterdijk, Deleuze e outros), fizeram trinta por uma linha com autores mais mortos do que vivos (Noël Coward, Agatha Christie, Turgueniev, Nuno Bragança, só para citar alguns) e só pegaram no teatro clássico - "O Avarento" de Molière - para o dinamitar. Para que serve o teatro? Eles não parecem ter respostas seguras e continuam à procura. Cada espectáculo, à sua maneira, reflecte essa inquietação.

"Padam Padam", que vai estrear na próxima quarta-feira no Pequeno Auditório do CCB, em Lisboa, parece quase destituído de teatro: todas as referências convocadas vêm de outras áreas. Do cinema de série B, da literatura, da banda desenhada. Argumento de defesa: "Sempre vimos o teatro como uma arte que pode ser muita coisa." Argumento de (auto)acusação: o autor, José Maria Vieira Mendes, não chama ao que escreveu "uma peça", mas "um texto".

Há um meteorito a aproximar-se da terra, explosões, alguns "Aaaaah!", o primeiro-ministro na linha um a fazer "ultimatuns" - o mundo é reduzido a cinzas em "Padam Padam", à excepção de alguns sobreviventes. Não é certo que isto não seja o delírio (ou o sonho de vingança) de um puto que foi mandado para o quarto por indisciplina ("o puto especial que se dá ao luxo de", diz o pai), mas até parece que os Praga andaram a ver filmes-catástrofe em demasia. Pelo menos, o autor do texto andou.

O Teatro Praga sempre teve apetite pela destruição, mas parece ter encontrado em Vieira Mendes um detonador. Em "Super-Gorila", espectáculo co-escrito com André e. Teodósio [apresentado no Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo, 2005], havia um bombista que tentava rebentar o teatro. Na comédia em cinco actos "O Avarento ou A Última Festa", escrita a solo [Teatro Nacional de S. João, Porto, Junho de 2007; CCB, Lisboa, Janeiro de 2008], Molière ia pelos ares. "Padam Padam" é o título de uma canção de Piaf que se ouve e se dança no espectáculo (a professora de valsa está nos créditos), mas isso deve ter contado menos do que o facto de ser uma estrondosa onomatopeia - o nome do espectáculo é, ele próprio, o som de uma ou duas explosões.

A isto os Praga chamam "teatro-catástrofe". É uma ideia inaugurada com "O Avarento", um género reclamado ao cinema para classificar espectáculos em que vai tudo pelos ares. Mas em "O Avarento" havia, apesar de tudo, qualquer coisa para rebentar: um património, um cânone (a peça de Molière); a explosão só acontecia mais tarde. Em "Padam Padam" já só parece haver estilhaços.

José Maria Vieira Mendes (JMVM): A explosão já aconteceu antes de o espectáculo começar. O que acontece no "Padam Padam" é uma frase do Heiner Müller que serviu de epígrafe para o texto, em que ele diz qualquer coisa do género: o momento mais feliz da minha vida foi o dia em que acabou a Segunda Guerra Mundial porque não havia nada para trás nem nada para a frente. É o chamado ano zero. O espectáculo já não começa, como "O Avarento", antes do ano zero, com a explosão a meio e nós a vermos o que é que vai acontecer a seguir. Neste caso, já foi - já não precisamos de rebentar.

Em "Padam Padam" há uma história, se quiserem histórias, com princípio, meio e fim, mas não necessariamente por essa ordem, como dizia Godard. Uma família parte para o campo para passar o fim-de-semana e, com uma catástrofe à porta, refugia-se numa caverna platónica. Vão-se perder, vamo-nos perder. O herói, que pode ser um messias ou um monstro, foge da humanidade para as montanhas, junta-se aos animais. Não se pode, portanto, contar com ele. Não vai ser fácil: vai ser lindo.

Mas ficarmos pela história é perder tudo o resto (uma personagem de "Padam Padam" diria: isso só mostra que vos falta capacidade especulativa). No limite, "Padam Padam" é como a Arca de Noé. Não é por acaso que o palco é grande mas os cinco actores estão metidos dentro de um espaço exíguo. E depois há uma enxurrada de referências, subtexto que nunca mais acaba. Parece uma peça escrita para falarem deles próprios, para fazerem o discurso do método (ou do não-método) dos Praga. Um palimpsesto.

Pedro Penim, fundador e ideólogo do colectivo, admite: "Sem dúvida que a peça reflecte sobre o percurso e o momento em que estamos." De resto, e para acabar de vez com as explosões: a brincar, a brincar (ao teatro, naturalmente), o Teatro Praga sempre praticou uma política da destruição.

Pedro Penim (PP): No espectáculo "Agatha Christie" [Culturgest, Lisboa, 2005], usávamos uma música da Rita Pavone que se chama "Datemi un martello", em que ela diz: dêem-me um martelo porque eu quero partir tudo. Só porque sim, porque tenho 18 anos e quero partir a loiça toda...

Penim descreve o processo como "uma desconstrução" para saber quem eram. Os espectadores, que os acompanharam, talvez fossem como aquela personagem de "Padam Padam" que diz: "Se vem aí tudo, quero ficar para ver." À conta disso, ou apesar disso, criaram uma identidade, como crianças que estão a crescer. Isto é a criança a falar:

PP: Começamos a criar os nossos sins e os nossos nãos, os nossos amigos e os nossos inimigos, a nossa família e a nossa comunidade. Criar comunidade é também criar balizas, estreitar o caminho. Eu próprio, hoje, digo "Teatro Praga" e há não sei quantas imagens e clichés que me vêm à cabeça. Isso pressupõe que se construiu algum universo. Explodir já não é propriamente rebentar sem objectivo, como acontecia no "Agatha Christie". "Padam Padam" é um espectáculo onde se põe a "máquina" em funcionamento: precisamos já só de pensar, ler e fazer. Já não há tanto a necessidade de destruir para criar. Nesse sentido, não é tão adolescente. Nem tão furioso.

Subitamente, em 2008, José Maria Vieira Mendes anunciou que tinha passado a membro efectivo do Teatro Praga. Não era o lugar nem o momento para esmiuçar razões: o tema da conversa era a peça "Onde Vamos Morar", escrita para os Artistas Unidos [Convento das Mónicas, Lisboa, Abril de 2008], e não se podia dizer que não havia antecedentes - "Super-Gorila" e "O Avarento ou A Última Festa". Neste último caso, os mais atentos, ou os mais desconfiados, terão pressentido que alguma coisa estava a mudar no Teatro Praga. O colectivo que chegou a ser acusado de querer matar o autor (Tiago Bartolomeu Costa atirou-lhes isso à cara, numa entrevista para a revista "Obscena"), por causa das liberdades que se permitiam ao pegar em textos alheios, aceitava pela primeira vez - oh ironia - executar uma peça entregue pelo autor.

PP: A ideia de termos uma peça escrita que nos é apresentada ou que é discutida connosco mas que ainda assim é escrita sem a nossa presença, como aconteceu agora com o "Padam Padam", é uma novidade. Mas acho que a experiência de "O Avarento" foi uma espécie de preparação para isso. [Para José Maria Vieira Mendes:] No "Avarento" acho que te mandava e-mails a dizer: "Não sei como é que isto se faz, ter uma peça aqui escrita, ter uma personagem para interpretar..." E agora isso já nem sequer é uma questão para mim.

O Teatro Praga é um núcleo duro sem a figura do encenador. Actualmente, são cinco elementos, mas as suas produções evidenciam uma teia de afinidades e cumplicidades que ultrapassa o grupo. Frequentemente, recorrem a colaboradores exteriores, com um papel específico que por vezes se prolonga por mais do que um espectáculo ou uma temporada. É o caso de Daniel Worm D'Assumpção no desenho de luzes, de André Godinho no vídeo, ou do artista plástico Vasco Araújo. José Maria Vieira Mendes podia ter sido mais um, mas foi admitido no clube. E numa altura em que tanto ele como o Teatro Praga tinham um universo mais ou menos solidificado. Em teoria, pareciam inconciliáveis, ou pelo menos mundos à parte: Vieira Mendes tinha um "background" dramatúrgico muito associado aos Artistas Unidos, com quem dera os primeiros passos, traduzindo e adaptando pesos-pesados (Beckett, Kafka, Dostoiévski, Pinter) ou escrevendo sob a sua influência. Um edifício onde, já se viu, o Teatro Praga provavelmente colocaria uma bomba-relógio.

PP: Isto aconteceu de uma forma muito natural e orgânica. Não andávamos à procura de um dramaturgo nem o Zé Maria andava à procura de uma companhia.

JMVM: A minha ideia sempre foi a de experimentar. "Já descobri isto, vou para outra, já descobri isto, vou para outra..." Nesse sentido, acho que estou próximo do universo do Teatro Praga. A maior diferença que nós tínhamos é que eu venho completamente do lado narrativo - da literatura, e mesmo da escrita para teatro. Eles têm muito mais um lado teórico, que vem da filosofia, e uma relação com o cinema, a música... Eu tinha um secreto desejo de conhecer esse lado, ou de explorar esse lado, e eles o contrario. Portanto, já estava lá em potência o entendimento. Mas há uma coisa importante: o entendimento não é imprescindível sempre. É bom haver visões diferentes. Muitas vezes é isso que permite chegarmos a situações a que nunca tínhamos chegado.

"Padam Padam" é um texto que reflecte o ideário do colectivo. Um texto que só podia ter sido escrito para o Teatro Praga. Um texto do apocalipse, onde nenhuma frase é mais importante do que outra.

JMVM: Isso tem que ver connosco. Não temos hierarquias na nossa maneira de trabalhar. Não temos encenador, portanto temos uma maneira de trabalhar muito igual.

Há a história de uma família "que não interessa para nada", e que é só um pretexto para abordar a ideia do colectivo, da comunidade, do "que é isso de fazer teatro com mais pessoas", resume o autor. Em "Padam Padam", o herói isola-se do mundo e por isso transforma-se num monstro. O Ípsilon assistiu a um ensaio do espectáculo do dia 18. Na ausência de um encenador, todos os actores, à vez, saem de cena para olhar para o que se está a passar em palco e comentar. Vieira Mendes também lá está, mas é uma presença discreta, quase silenciosa. Perguntámos-lhe se o trabalho dele termina a partir do momento em que entrega uma peça, e se por causa disso intervém o menos possível no processo em palco.

JMVM: No "Avarento" estive bastante mais retirado dos ensaios. Estive sobretudo nos ensaios para definirmos como é que ia ser a última meia hora do espectáculo que não tinha ainda escrito. Neste caso, não, estive sempre desde o princípio. De qualquer das formas, retiro-me sempre um pouco. E tento que a minha participação nas discussões seja no sentido de não facilitar a coisa. Ser um bocadinho "bitchy". Até porque eles não iriam nunca aceitar eu dizer: "Isto é assim...". A tentação que há é de colocar obstáculos. A nossa ideia é usar o processo de ensaios como experimentação, como meio de chegar a algum lado que não sabemos qual é. Sendo essa a ideia, só fazia sentido escrever textos que desafiassem de alguma forma o Teatro Praga. E apresentar coisas no texto que não vejo como é que podem ser feitas.

PP: No "Avarento" isso era claríssimo. Tudo aquilo aparecia como uma espécie de "Survivor" teatral. Eram coisas com as quais não sabíamos lidar e tínhamos de arranjar soluções e esquemas, repensar-nos. Muitas vezes, nos primeiros ensaios e leituras, parávamos e pensávamos: "Porque estamos a fazer esta peça? O que é que há aqui? Por que é que estamos a fazer isto - uma peça?" Isso obrigou-nos constantemente a não nos deixarmos cristalizar.

É um despique.

JMVM: Sim, mas também existe uma integração muito natural. Não sou o autor deste texto mas mais uma pessoa que está na sala de ensaios a tentar resolver este espectáculo. Uma pessoa que está lá como as outras.

"Gosto disto. Porque é que o mundo não acaba mais vezes?", pergunta uma personagem de "Padam Padam". Não vai ser fácil: vai ser lindo.

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