Geração perdida

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Rodagem de "O Sangue"

A 7 de Dezembro de 1990, um ano depois da sua apresentação no festival de Veneza, "O Sangue" chegava às salas portuguesas. Nos doze meses que se seguiriam, seria a vez de "A Idade Maior", de Teresa Villaverde (Setembro de 1991), e "Nuvem", de Ana Luísa Guimarães (Janeiro de 1992). Três primeiras obras cuja recepção veio "quebrar o enguiço" que parecia rodear a geração de jovens cineastas que chegaram ao cinema na década de 1980, essa "década prodigiosa" onde Portugal fervilhava com gente nova que se mexia na música, nas artes, na cultura. Uma geração contemporânea da "movida" madrilena e da nova vaga do rock feito em Portugal, que tinha maioritariamente estudado na Escola Superior de Teatro e Cinema (o antigo Conservatório, então na Travessa dos Inglesinhos, Bairro Alto), com realizadores do Cinema Novo como professores. Mas uma geração cuja história ficou por contar. Porque muitos dos filmes que se fizeram nessa década pouco ou nada foram vistos na altura (daí o "enguiço") e mesmo hoje dificilmente se encontram, porque houve tantos realizadores a seguir carreira como a ficar pelo caminho. Porque há uma sensação de que a força criativa desta geração se dispersou sem ter sido explorada.

A verdade, contudo, é que os anos 80 são muito mais uma "baliza" temporal durante a qual gente que estudara na Escola de Cinema em períodos diferentes (ou não, como Villaverde ou João Canijo, que fizeram o percurso pelo lado "prático" da assistência) assinou a sua primeira longa. Manuel Mozos, 50 anos, aluno da Escola entre 1981 e 1984, colega de curso de Edgar Pêra, Ana Luísa Guimarães e Susana Sousa Dias, confirma que a ideia de geração é uma construção "a posteriori" embora existisse uma "teia" de relações, porque "havia um grande cruzamento nas noites do Bairro Alto, e porque acabávamos por colaborar nos filmes uns dos outros."

Joaquim Leitão, 53 anos, aluno entre 1975 e 1979, reforça a ideia dessa "rede" ao evocar o período em que estudou, logo a seguir ao 25 de Abril - "o meu ano é também o do Vítor Gonçalves, do Daniel del Negro, do José Bogalheiro, depois o ano a seguir, com o Leandro Ferreira, o Pedro Costa, o Joaquim Pinto....". E fala com ternura de "Uma Rapariga no Verão" (1986), a única longa do seu colega Vítor Gonçalves, para ele o filme-chave desse período "pela maneira como foi feito, pelo envolvimento de toda aquela geração". "Uma Rapariga no Verão" é o exemplo perfeito dessa rede, com uma equipa composta por colegas da Escola: Del Negro na imagem, Pedro Caldas no som, Ana Luísa Guimarães na montagem, Bogalheiro na produção, Pedro Costa como assistente de realização, Leitão como actor num papel secundário...

A rede

Uma rede que acaba por explicar os pontos comuns de um grupo de pessoas que tinham algo de "não-alinhamento" segundo Leitão, gente que vivera os rescaldos do Maio de 68, do 25 de Abril, "e sobretudo o momento do rock, com esse lado de paixão pela música e pelo que lhe está à volta". Teresa Villaverde, 43 anos, que se sentia "outsider" - "porque não estudei no conservatório nem conhecia ninguém" -lembra-se que "se trabalhava quase 24 horas por dia", "cada um na sua coisa. Havia pouco tempo para reflectir sobre o que se ia fazendo ao nosso lado. Passávamos de cinéfilos a cineastas, era um passo enorme..."

Mozos diz que "não havia um lado teórico, de manifesto, mas havia uma ideia de tentar abrir as coisas, fazer de maneira diferente. Isso tem a ver com o nosso lado mais desenraizado, mais despolitizado. E todos tínhamos grande bagagem cinéfila, que está nos filmes mas não de maneira sublinhada. Havia uma vontade de fazer coisas, grande troca de ideias, mas não havia um programa concreto."

O facto de muitos destes filmes estarem centrados em personagens em busca do seu lugar no mundo, em filhos e pais em rota de colisão ou conflito, acaba por ser, para todos, algo de mais casual do que propositado. Leitão recorda que "muitos destes realizadores eram filhos de pais carismáticos", alguns dos quais com carreira feita no cinema, e aponta que as limitações financeiras forçavam um certo tipo de drama intimista; Teresa Villaverde acha que é normal que a "coisa mágica" do primeiro filme vá buscar coisas à infância; António Pires, 46 anos, aluno entre 1986 e 1989, acha que seria natural que a família como núcleo fundamental surgisse em filmes feitos numa sociedade pós-25 de Abril "com a desagregação da família, os divórcios a aumentarem...".

Como outros colegas que nunca fizeram carreira no cinema, Pires optaria pelo jornalismo (foi editor do "Blitz"), mas recorda que a cinefilia era de rigor para todos os alunos. "Todos chegámos lá por adorarmos cinema, mas não necessariamente por querermos vir a fazer cinema. E já éramos todos cinéfilos - eu passava dias no Cine-Clube do Barreiro, na Cinemateca, no Quarteto, um colega tinha vivido no Canadá e tinha visto lá muito do cinema clássico..." Teresa Villaverde recorda a sala da Barata Salgueiro como a sua "escola maior. Passei a minha adolescência na Cinemateca, na Gulbenkian, a correr de um filme para o outro, fizesse chuva ou sol." Alguns vinham dos poucos cine-clubes que ainda existiam, outros cresceram com o circuito comercial de salas - Leitão diz que "já tinha um gosto formado antes de entrar na escola. Tínhamos vontade de ver tudo [o que estreava] e não líamos as críticas antes de ir ver os filmes."

Os mestres

No entanto, a ausência de uma cinefilia "ortodoxa" causava em alguns casos fricções com os professores - Pires recorda que os realizadores de referência eram os portugueses, os franceses, os soviéticos e alguns americanos, "havia quem idolatrasse o Ford, o Hitchcock e o Welles, outros o Eisenstein, outros a Nouvelle Vague. Houve um colega meu que disse que o realizador preferido era o Steven Spielberg, e quase o iam matando..." Leitão confirma: "A geração anterior tinha um programa - havia um cinema que era o ‘bom', e o resto não presta. Gostar do Stanley Kubrick e do Sergio Leone era um anátema!" Daí que o cinema feito pelos alunos fosse sempre, segundo Mozos, "uma tentativa de fazer diferente, mesmo por oposição", mesmo que muitos dos filmes, como António Pires diz, "não fossem feitos contra, mas sim na continuação. Havia um amor grande, uma espécie de filhos que queriam tomar um caminho próprio. Se calhar a questão da família também pode vir daí."

Inevitável, quando os professores incluiam nomes-chave do Cinema Novo dos anos 1960: Paulo Rocha, António Reis, Alberto Seixas Santos - grupo que, nas palavras de Villaverde, "nos deixou uma auto-estrada aberta, um exemplo de filmes livres e feitos pela vontade do seu autor". Reis, o realizador de "Trás os Montes", falecido em 1991 e ele próprio um dos nomes mais injustamente esquecidos do cinema português, é o cineasta que quase todos apontam como o mestre - Joaquim Leitão defende que "é o professor que mais marcou toda esta geração. Ele passou as coisas muito em termos de paixão, e isso é uma coisa que me tocava e com a qual aprendi algo que não sabia que podia ser assim."

Mas Villaverde fala desses mestres (pelos quais sempre sentiu carinho, embora não se tivesse sentido acarinhada, "talvez porque não viesse da Escola, não me conheciam") como tendo tido de "batalhar" por essa liberdade, procurando trazer algo de novo a um país espartilhado por um regime sufocante. E Leitão nota que esses antecessores pertenciam a uma geração que, em parte por isso, tinha "um lado de derrota, uma impossibilidade de fazer uma carreira... Para eles, isso era um dado adquirido que parte de nós nunca aceitou." Mas, apesar das ambições e dos idealismos, "a nossa geração não terá sido assim tão diferente. Parte do nosso problema foi que todos criámos produtoras para produzir os nossos filmes" - Azul, Trópico Filmes, G. E. R., Produções Off... "Achámos que chegávamos lá rapidamente, que era possível, mas uma produtora precisa de muitos projectos para se aguentar. Não é possível sustentá-la só com um filme de dois em dois anos. E alguns destes projectos levaram muito tempo a fazer, em alguns casos anos."

O público

Quase todos os filmes desta década foram produzidos por essas estruturas incipientes, com os parcos apoios da RTP e os raros subsídios atribuídos pelo Instituto Português do Cinema. Mozos: "Os concursos eram muito fechados, só uma ou duas primeiras obras por ano." E, numa década que ficou marcada pelo encerramento das grandes salas de cinema (a demolição do Monumental foi em 1984) e pela inexistência de um circuito de distribuição e exibição alternativo, reduzido ao Quarteto de Pedro Bandeira Freire (só no final dos anos 80 é que Paulo Branco arrancaria com a estrutura de distribuição e exibição da Atalanta/Medeia no Forum Picoas), a maior parte dos filmes realizados pelos alunos da Escola acabou por não ser vista no grande écrã.

"Atlântida: Do Outro Lado do Espelho" (Daniel del Negro, 1985), "Uma Rapariga no Verão", "Contactos" (Leandro Ferreira, 1986), "Um Passo, Outro Passo e Depois..." (Manuel Mozos, 1989), "Transparências em Prata" (João Brehm, 1990), "O Som da Terra a Tremer" (Rita Azevedo Gomes, 1990) tiveram exibições pontuais, sem entrar em distribuição comercial. Dos que estrearam, "Três Menos Eu" (João Canijo, 1987) e "Uma Pedra no Bolso" (Joaquim Pinto, 1988), passaram sem deixar rasto, "Repórter X" (primeira ficção do documentarista e professor de montagem José Nascimento, 1986) deu que falar, mas só "Duma Vez Por Todas", de Joaquim Leitão (1986), obteve o que se pode chamar um êxito comercial.

O que tornava tudo mais difícil é que estes filmes não tinham sido feitos para os amigos. Mozos diz que "na geração de 60, havia um lado, quase ‘statement', de não se importarem que os filmes não fossem vistos" - o que Leitão descreve como "uma espécie de pureza. O facto de um filme ser exibido já era algo um bocadinho sujo" -, "mas a nossa geração já era diferente. Havia uma intenção de ganhar público, de ter visibilidade, mas havia muito mais dificuldades para mostrar filmes do que hoje". As coisas só começaram a ter proporções precisamente com "O Sangue", "A Idade Maior" e "Nuvem"" - todos estreados no então embriónico circuito de Paulo Branco, que se tornaria na década de 1990 essencial para a produção nacional.

A estreia de "O Sangue", na sua invocação superiormente formal de uma filiação a meio caminho entre o cinema de autor europeu e os grandes clássicos americanos, acabou por ser uma "divisória" entre o que ficara para trás e o que viria a seguir, marcando o fim de um período em que, como António Pires refere, a repercussão do cinema português fora mais pontual do que sustentada.

Teresa Villaverde lembra-se da ante-estreia na Cinemateca: "Lembro-me do preto e branco lindíssimo, da Inês de Medeiros e do Pedro Hestnes, os dois fantásticos. Lembro-me de um plano em que alguém punha Vick numa criança, lembro-me de um fogo de artifício." Para Mozos ainda hoje é o seu Pedro Costa preferido. E a amplitude das reacções confirmou que estava aqui um cineasta capaz de falar a gerações e gostos muito diferentes como talvez nenhum outro seu contemporâneo fora capaz até então - e como poucos o conseguiriam daí para a frente. E, de caminho, tornando-se num dos cineastas de referência de uma geração que talvez nunca tenha cumprido as suas promessas.

Uma geração "perdida"? Talvez sim, para Villaverde: "Houve anos em que quase todos os filmes que se faziam no país estreavam nos grandes festivais, uma percentagem incrível. Os espanhóis souberam aproveitar quando isso lhes aconteceu, os portugueses não. Houve muita gente que desapareceu e muitos mereciam uma segunda oportunidade." Ana Luísa Guimarães, Daniel del Negro, Vítor Gonçalves não voltaram a dirigir; Joaquim Pinto dedicou-se ao trabalho de som e Manuel Mozos ingressou no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, assinando filmes espaçadamente.

Talvez não, para Joaquim Leitão: "Não sei se somos muito diferentes das outras gerações. Em todas as gerações há um grupo de pessoas que inicia carreira e depois não segue, até porque há pouco dinheiro para tanta gente." Leitão foi um dos que continuou a filmar, a par de Pêra, Canijo, José Nascimento, Costa, Villaverde, mesmo que em condições diferentes para cada um.

Mas, certamente, uma geração cuja história, estilhaçada nas memórias daqueles que viveram e filmaram nesses tempos, continua por contar. Afinal, "o cinema é mesmo assim," diz Teresa Villaverde, "estilhaça-se na nossa memória feita de estilhaços de tudo."

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