Dinheiro Felicidade com efeitos secundários
Horácio Roque, uma das grandes fortunas do país, já viu algumas amizades quebradas por causa do dinheiro. Luís Ribeiro, um jovem de Barcelos que ganhou o Euromilhões, perdeu a namorada. Não se entenderam na partilha de 15 milhões de euros. Peter Villax, presidente da associação das empresas familiares, diz que muitos negócios acabam assim. Será que o dinheiro enlouquece?
Com o sino da igreja a informar que são seis da tarde, Luís Ribeiro, estudante universitário de 25 anos, já despiu "a roupa de domingo" - camisa branca, calça escura impecável - e vestiu a de trabalho - t-shirt clara, botas altas d e borracha. As galinhas depenicam nas gaiolas, um cão coxo ladra aos estranhos. É hora de "ir tirar o leite às vacas", explica o jovem que em 2007 ganhou o Euromilhões, 15 milhões de euros de prémio, numa aposta feita com a namorada da altura. Foi a 19 de Janeiro. Nessa noite, estava com os pais nesta mesma casa onde recebe a Pública, na pacata freguesia de Courel, concelho de Barcelos. A televisão estava ligada, como costuma estar nas noites de sexta-feira quando a TVI emite o sorteio dos números do Euromilhões. E os números foram saindo: 27, 5, 13, 33, 42, por esta ordem, mais as estrelas 2 e 4. Luís percebeu que estava rico. Não deu pulos de alegria. Longe disso. O rapaz que tem a tranquilidade estampada no rosto teve o sangue frio suficiente para ficar calado. Guardou o boletim milionário numa chávena dentro do armário da cozinha e só contou ao pai o que lhe tinha acontecido dois dias depois.
Sentado à sombra de um telheiro que dá abrigo a baldes cheios de batatas e a ferramentas agrícolas várias, confessa que naquela noite ficou "um bocadinho nervoso" e não dormiu muito bem. Por esses dias, a namorada terá chegado a comentar que a afligia tanto dinheiro... "'Eh! Ainda se fosse um prémio mais pequeno!' - disse-me ela uma vez, toda a tremer, ali junto ao fogão", recorda Joaquim Ribeiro, 61 anos, o pai de Luís.
Depois disso, meteram-se todos no carro para ir ter com a família da rapariga. "Foi numa noite em que estava a chover, depois de tirar o leite", recorda Joaquim Ribeiro. "Tínhamos que combinar com eles como era para irmos a Lisboa confirmar o prémio... A preocupação de que aquilo não se soubesse aqui à volta era tal que fomos todos de carro dar uma volta e fomos falando dentro do carro, sempre com o carro a andar... os cinco dentro do carro."
Desde que ganhou o prémio milionário, Luís comprou "umas roupas" para ele e para os sobrinhos, um computador portátil e pagou algumas mensalidades na Universidade Lusíada de Famalicão, onde frequenta o curso de Ciências Económicas. E é isso. Apenas isso. Tira leite às vacas de manhã e à noite, mesmo aos domingos, como hoje. Conduz o carro dos pais. Nada de substancial na sua vida mudou. Foi em Courel que nasceu, toda a gente na terra o conhece e já era assim antes dos jornalistas terem começado a aparecer para entrevistá-lo. O super-prémio, esse, foi congelado por ordem do tribunal. Não lhe pode tocar.
O caso é conhecido: os namorados que se separaram porque não se entenderam na divisão dos 15 milhões esperam até hoje que a justiça decida por eles. E até que haja sentença não podem gastar um tostão. A primeira sessão do julgamento foi marcada para 20 de Novembro. E a pergunta que fazem muitos dos que vão acompanhado a novela do ex-casal de Barcelos que até era suposto vir a casar-se, não fosse terem saído aqueles números, é esta: mas por que é que o dinheiro enlouquece as pessoas?
Horácio Roque mudou pouco
"O dinheiro enlouquece? Às vezes sim", admite Horácio Roque, empresário e banqueiro português, uma das grandes fortunas do país (a 12.ª maior, segundo o último ranking da revista Exame dos 25 mais ricos de Portugal).
A ele nunca enlouqueceu. Fascinou? Sim. Atraiu? Sim. Fê-lo orgulhar-se? Também. Mas o homem que tem uma fortuna da ordem dos 586,4 milhões de euros (detém, entre outros, 72,2 por cento da Rentipar Financeira que controla 65,97 por cento do grupo Banif) nunca perdeu o controlo.
O dinheiro está condenado a ser um foco de conflitos? Não. É o que acha Horácio Roque. Aliás, para ele o dinheiro é uma fonte de "bem-estar". E o mesmo diz Peter Villax, membro do conselho de administração da Hovione - empresa químico-farmacêutica fundada em 1959 pelos seus pais, Ivan Villax, um engenheiro químico de origem húngara, e Diane de Lancastre du Boulay. Se o dinheiro fosse sempre um foco de conflitos "a raça humana já se teria extinto", nota.
Ainda assim, Horácio Roque reconhece que já perdeu uma ou outra amizade por causa do dinheiro ("desonestidade", "abuso de confiança", não entra em detalhes). "Tive dois ou três casos apenas em que o dinheiro acabou por quebrar um relacionamento. Não queria dizer que houve traição, houve desonestidade, houve uma amizade usada para me enganar..." Mas o banqueiro parece viver em paz com o que tem. Aliás: "As pessoas que me conhecem há muitos anos dizem que eu mudei pouco com a riqueza." Qual é o segredo?
As semelhanças entre o ambicioso jovem Horácio Roque, de há 50 anos atrás, quando tudo começou, e Luís Ribeiro, o rapaz do Euromilhões que não se imagina a viver muito longe do sítio onde nasceu, não serão muitas mais do que esta: ambos cresceram numa aldeia.
Aos 14 anos, Horácio Roque saiu sozinho de Mogadouro, distrito de Castelo Branco, para ir para Angola. Em Luanda, começou a trabalhar numa charcutaria, com a promessa de um ordenado mensal de 800 escudos (quatro euros). Era um salário razoável para a altura, mas, no final do primeiro mês, o patrão pagou-lhe mil escudos. "Achou que eu merecia", conta na sala de reuniões da sede do Banif, em Lisboa, sentado à cabeça de uma enorme mesa preta, vazia, onde muitos negócios já terão sido fechados.
"Peguei nos 200 de sobra e guardei-os religiosamente, não disse nada a ninguém. Naquela altura guardava o dinheiro em casa, não havia os savings que há hoje". O banqueiro nem sequer conta no banco tinha. "Guardava os 200 escudos muito escondidinhos. E no fim do ano tinha juntado dois contos e 400."
Foi com esse dinheiro que comprou uma mota. "O primeiro meio de transporte que tive na vida. Paguei a pronto pagamento, com a primeira poupança. Aquela mota foi também o primeiro objecto que quis muito ter. E comprá-lo foi mais importante do que comprar hoje um Ferrari" - sim, já comprou mais do que um Ferrari. "Era uma questão de necessidade, porque libertava-me dos transportes públicos e precisava dela para poder estudar, para trabalhar. E dava-me uma noção de liberdade que para mim era muito importante."
Ir ao fundo e voltar
Ainda não era maior de idade quando foi convidado para ser sócio de uma cervejaria. "Tive que pedir ao meu pai [que estava em Portugal] para me emancipar." A charcutaria ficava para trás.
Nunca pensou propriamente que queria juntar muitos milhões. Mas queria ser reconhecido. "E não há dúvida de que o dinheiro ajuda a que isso aconteça." Resultado: trabalhava muito, com um enorme "amor" - e esta é primeira lição do empresário bilionário para construir fortuna sem perder a cabeça pelo meio: "Um dos segredos para fazer obra é a dedicação."
E a sorte? "Não acredito na sorte. Acredito no trabalho, na vontade permanente de saber como é que as coisas funcionam, no sabermo-nos rodear de pessoas que sabem mais do que nós." Ele traçava metas e cumpria-as. Não gastava em extravagâncias. Hoje, considera que as pessoas dão pouco valor ao dinheiro.
Os negócios correram bem. E quando tinha vinte e poucos anos, Horácio Roque tinha o suficiente para considerar que era rico, conta a sorrir com uma simplicidade desconsertante. "Tinha um património que era já muito importante, tinha muitos e bons investimentos, um negócio no ensino privado que tinha prestígio, com dezenas de professores a trabalhar comigo. Enfim, era um homem feliz e tinha um sentimento de riqueza: 'Isto é meu, aquilo é meu, aquilo também.' Hoje, já não tenho esse sentimento de posse."
Com os anos 70 (do século XX) e a chegada da independência de Angola, a vida mudou. Perdeu "tudo o que era bens materiais", porque "tudo o que tinha estava investido em Angola". Até a casa onde vivia "foi ocupada" e aos 32 anos partiu para a África do Sul, com a família, onde alugou um apartamento mobilado em Joanesburgo - "Porque nem mobília própria tinha." Foi preciso alterar profundamente o estilo de vida conquistado nos anos anteriores. E começar de novo.
Em momentos destes, quando se vai ao fundo, quando não se sabe se é possível voltar, pode ser fácil ser dominado pelo desespero. Recentemente, a alta finança foi notícia pelos suicídios associados à perda abrupta de fortunas. Foi o que aconteceu com Adolf Merckle, 74 anos, milionário alemão, a 94.ª pessoa mais rica do mundo em 2008.
Roque, o "senhor Banif", como já lhe chamaram na imprensa, pelo contrário, sempre se sentiu forte. "Lembro-me de naquela altura, quando perdi tudo, dizer a alguns amigos: 'Quando cheguei a Angola não tinha nem dinheiro, nem experiência; agora tenho experiência, muitos conhecimentos e alguns amigos'. As pessoas não devem nunca perder a esperança. Os momentos difíceis acontecem periodicamente, mas passam. É preciso é ter confiança em nós próprios."
"É tanto uma questão de preparação como de feitio", diz Peter Villax. "Há pessoas que estão melhor preparadas para fazer face tanto a grandes aumentos como a grandes reduções de rendimento, e tendem a ser as pessoas que são por natureza frugais. Há outras, ao contrário, que por mais que ganhem, nunca lhes chega o dinheiro."
75 mil euros em vestidos
"No outro dia apareceu aqui um senhor reformado com uma pensão de cerca de mil euros, que tinha 115 mil euros em créditos pessoais; escondeu a dívida da mulher, escondeu de toda a gente. E nem ele conseguia explicar no que é que tinha gasto 115 mil euros", diz Natália Nunes, responsável pelo Gabinete de Apoio ao Sobreendividado, na Associação de Defesa do Consumidor (Deco), em Lisboa.
"Houve também uma senhora de 70 anos que veio ter connosco para explicar que tinha encargos de 75 mil euros em créditos pessoais em sociedades financeiras... dinheiro que tinha gasto todo em sapatos e vestidos", continua Natália Nunes. "Queria perguntar-nos o que é que lhe podia acontecer se não pagasse."
Nenhum destes casos conta para a estatística dos 1669 processos abertos, só este ano, neste gabinete. Porque aqui só se presta apoio aos "sobreendividados passivos" - ou seja, àqueles que não conseguem fazer face às dívidas porque algo de inesperado aconteceu (o desemprego, uma doença, algo do género). E não aos que foram simplesmente "negligentes". Mas mesmo entre os primeiros é frequente encontrar alguma resistência inicial. "A primeira reacção para fazer face a uma situação de sobreendividamento costuma ser tentar ter acesso a mais crédito...", em vez de, por exemplo, traçar um orçamento rigoroso das despesas mensais para saber onde se pode cortar - uma das dicas que os técnicos dão a quem não controla o que gasta.
Não há como negar: há qualquer coisa neste discurso de Natália Nunes que remete para certos comportamentos viciosos. Américo Baptista, psicólogo, professor universitário, representante em Portugal da Stress and Anxiety Research Society, explica: tal como alguns medicamentos (tranquilizantes e antidepressivos), algumas drogas (como o tabaco, o álcool, a cocaína), algumas actividades (o jogo, por exemplo), o dinheiro é uma fonte de prazer. E "quanto mais se tem..."
Virá daí o facto de uma vez preenchido um nível básico de necessidade, não existir uma relação entre os recursos económicos e os indicadores de bem-estar e felicidade - não se é tão mais feliz quanto mais dinheiro se tem, dizem os estudos. "Os cem mais ricos do mundo pela revista Forbes são apenas ligeiramente mais felizes que o cidadãos médio."
De resto, como o caso de Luís Ribeiro mostra, o dinheiro pode mesmo ser uma fonte de tristeza e rupturas. E quantas vezes a disputa de pequenas e grandes fortunas conquistadas a pulso não fez famílias zangarem-se irremediavelmente? E quantas zangas deste tipo deitaram por terra negócios de gerações? Quantas amizades de anos se desvaneceram como se nunca tivessem existido? Os ex-namorados de Barcelos não estão, seguramente, sozinhos.
Uma questão genética
A verdade é que não existe uma única explicação para o facto de diferentes pessoas se relacionarem de forma distinta com "esse bem escasso", como lhe chama Américo Baptista, que por isso mesmo é susceptível de ser disputado com agressividade. Por que razão há pessoas que não dão muita importância aos recursos materiais e outras que entram na categoria das "Donas Brancas e dos Madoffs deste mundo" não se sabe ao certo. "Existem factores genéticos que explicam o nível de activação óptimo que necessito para me sentir bem. Há factores relacionados com a minha educação e com os valores que os meus pais me transmitiram. Há factores relacionados com a sociedade e com o ambiente em que vivo, nomeadamente se encoraja valores de competição ou de cooperação", continua o psicólogo.
Certo é que os resultados das disputas podem ser devastadores. "As disputas por dinheiro entre membros da mesma família são muito mais usuais do que se poderia pensar", diz João Afonso Fialho, da sociedade de advogados Miranda Correia Amendoeira & Associados. Aliás, "as famílias são o terreno quase natural das mais violentas batalhas judiciais a que temos oportunidade de assistir, em muitos casos com consequências trágicas, a vários níveis, para todos os envolvidos". Não é assim tão surpreendente: a violência é, por regra, tanto maior quanto mais as pessoas sentem que a sua confiança foi traída, diz.
A liderar a tabela dos litígios, continua o advogado, "estão claramente os processos de inventário e partilha de heranças, as partilhas de bens comuns em processos de divórcio e os inevitáveis litígios nas sociedades comerciais ou negócios de cariz familiar".
Dados da Associação Portuguesa das Empresas Familiares, a que Peter Villax preside, apontam para que apenas 30 por cento das empresas como a sua - familiares - sobrevivam à morte do seu fundador. "O caso da Vista Alegre é a história de uma grande família que não soube gerir as suas diferenças", exemplifica. Os problemas começaram há mais de 20 anos. "Em 1997, um ramo da família conseguiu comprar a totalidade da empresa aos outros ramos. Infelizmente não foi possível recuperar a empresa e esta foi adquirida pela Visabeira."
Contudo, não tem que ser assim. É possível as famílias prepararem-se de antemão "como, aliás, os namorados [de Barcelos] podiam ter feito em vez de levar a tribunal uma questão que era sua obrigação resolverem sozinhos", diz Villax. Como? "Com um documento chamado protocolo familiar", tão mais essencial quanto maior for o património da família. Na prática, é um documento "onde os membros da família decidem, por escrito, a forma como vão resolver os problemas quando eles surgirem".
Irmãos de costas voltadas
No caso da Hovione (125,5 mil milhões de euros de volume de negócios consolidados no último ano fiscal), Ivan Villax tratou de tudo (morreu em 2003). "Estes documentos têm muito maior probabilidade de ter sucesso se são feitos pelo fundador porque ele tem uma autoridade moral muito grande", explica. O mais velho dos quatro filhos dos fundadores da Hovione não quer dar pormenores sobre o protocolo que rege a sua família. Mas, entre uma reunião e outra numa pequena sala da fábrica, em Loures, explica cuidadosamente que estes documentos costumam definir, por exemplo, as regras que determinam quais são os órgãos de governo da família. "Tal como as empresas têm os seus órgãos de governo (o conselho de administração, a comissão executiva, o conselho fiscal...) também as famílias têm os seus órgãos de governo, como é o conselho de família ou a assembleia familiar. Há vantagem em criar estes organismos para haver uma abordagem formal para a questão da gestão do património." O conselho de família, continua, deve ser composto pelo representantes mais experientes e competentes.
"Outra coisa importante é o relacionamento com os órgãos de governo da empresa, o que também tem que ser formalizado. A família não pode entrar pela porta da empresa e dizer isto é meu. Tudo obedece a regras." Estes protocolos devem definir, igualmente, as regras para recrutamento. "Os meus filhos, os meus sobrinhos sabem que fasquias têm que ultrapassar para poderem escrever aos recursos humanos e submeter o seu currículo", diz Villax.
As regras de despedimento também deve ser claras. "Estamos a falar de coisas que normalmente põem dois irmãos a nunca mais falar um com o outro: se um tio despede o sobrinho, por exemplo, havendo procedimentos estabelecidos para isso (e não estou a dizer nem que há nem que não há no nosso caso), as decisões difíceis tornam-se mais fáceis, menos dolorosas, digamos assim."
Peter Villax diz que todas as grandes famílias patrimoniais europeias, e também portuguesas, têm regras de conduta interna com um só objectivo: assegurar a paz, promover a competência, evitar o esbanjamento ou o desaparecimento desse património.
Ter uma vida normal
Com o 2.º ano do curso de Ciências Económicas já feito, não é certo que Luís Ribeiro, o jovem do Euromilhões, tenha ouvido falar de "protocolos familiares".
Para ele, a promessa de fortuna não lhe chegou com uma vida de trabalho, nem sob a forma de herança. Custou-lhe seis euros - que foi quanto apostou naquela sexta-feira de Janeiro de 2007. E custou-lhe também a relação de três anos que tinha com a namorada.
Na altura, trabalhava numa loja de ferragens em Barcelos e parava habitualmente num café a caminho de casa para preencher e entregar o boletim do Euromilhões. Era um jogo a dois. Geralmente a namorada pagava-lhe mais tarde a parte dela da aposta. Outras vezes nem isso. Mas não importava. "O prémio que saísse era para os dois" - era esse o espírito, diz Luís.
A ex-namorada vive perto de Courel, numa casa à beira de uma estrada estreita onde quem passa olha desconfiado para os jornalistas que rondam a casa. "Olhe que não está aí ninguém", grita uma mulher vestida de preto. A Pública falou com uma tia que não quis fazer comentários ao caso. Deixados os contactos com o pedido de entrevista, a jovem não respondeu até ao fecho desta edição. Esta história é contada pois pela boca de Luís que diz que naquele dia escolheu os números à sorte, pagou a aposta, seguiu caminho para casa. E que, pouco depois do sorteio, como acontecia todas as noites, a namorada telefonou-lhe. "Disse-lhe que tínhamos acertado. No dia seguinte, fui mostrar-lhe o talão e dei-lho."
Nunca comemoraram a sério porque não tardaram a surgir as divergências. O cheque que uma representante da Santa Casa da Misericórdia (que gere o Euromilhões) lhes foi entregar um dia, num banco, em Lisboa, era "um cheque igual aos outros", só que com muitos zeros, "no nome do pai da Cristina." A ex-namorada terá argumentado que era melhor dessa forma. "Acho que o cheque só pode vir no nome de uma pessoa e nós éramos muito novos... e também era estranho vir no meu nome e não vir no dela... ficou assim."
Em pouco tempo o clima azedou. Abriram-se contas bancárias (o grande bolo numa conta dele, dela, e dos pais dela, alguma verba para uma conta conjunta só do casal, poucos milhares para as contas individuais...), discutiram-se valores, mas nunca houve consenso sobre como seria feita a divisão. "A partir de certa altura tínhamos que resolver aquilo, porque não estávamos a conseguir resolver a bem." Luís recorreu à Justiça. A namorada acabou o namoro. "A última vez que falámos foi em Abril do ano passado." A santa Casa nunca comentou o caso.
"Não, nunca pensei: 'Quem me dera não ter ganho nada'", diz Luís Ribeiro. "Mas aprendi que não devemos confiar tanto nas pessoas."
Pena ter ficado milionário
Já houve, contudo, quem pensasse mesmo qualquer coisa como "pena ter ficado milionário". A mulher de Jack Whittaker, um empresário da construção civil norte-americano que, em 2002, ganhou o maior prémio individual jamais atribuído numa lotaria até então (314,9 milhões de dólares, sendo que Whittaker levou menos do que isso para casa porque recusou receber o bolo em mais do que uma tranche), desabafou um dia: "Quem me dera ter rasgado o bilhete."
A sucessão de problemas e tragédias é esclarecedora: a vida do empresário de 55 anos foi devassada pela imprensa; pouco depois de receber o dinheiro foi agredido e assaltado à porta de um clube de striptease (levava consigo uma mala com mais de 500 mil dólares); a mulher separou-se dele; a neta começou a consumir drogas e morreu; a filha foi encontrada morta há poucas semanas; Whittaker está hoje envolvido numa série de processos judiciais - nuns é o acusado, noutros o queixoso.
"Só queria que nunca tivesse acontecido", disse também William Post, um homem da Pensilvânia (EUA) que em 1998 ganhou um prémio de 16 milhões de dólares. Gastou tudo.
O tema tem sido alvo de estudos. Já em 1978 o Journal of Personality and Social Psychology publicava um artigo onde comparava uma amostra de 22 grandes vencedores da lotaria com um grupo de 22 indivíduos que não tinham recebido prémio algum e ainda com um terceiro, de 29 pessoas paralisadas na sequência de acidentes. Resultado: "Por estranho que possa parecer, quando lhes perguntaram acerca da sua felicidade (passada, presente e futura esperada) e sobre o prazer nas actividades que tinham no dia-a-dia, e compararam as suas respostas com pessoas da vizinhança e com indivíduos que estavam paralisados devido a acidentes, os ganhadores da lotaria não eram muito mais felizes que todos os outros, sendo até menos felizes nas actividades do dia-a-dia do que os que não tinham ganho nada", diz Américo Baptista.
Em Portugal, também há histórias que não terminaram bem. Em 2004, a revista Visão entrevistou um homem que ganhara anos antes 375 mil euros. Tinham-lhe bastado três anos para perder tudo. Naquela altura andava a arrumar carros nas ruas de Espinho. E José Afonso Fialho, da Miranda Correia Amendoeira & Associados, lembra um outro caso de namorados que não se entenderam na divisão de um prémio. Apostaram no Totobola, foram para tribunal.
A lei equipara os acordos entre apostadores às sociedades civis, em que duas ou mais pessoas unem esforços, seja capital, seja trabalho, para desenvolverem uma actividade com o objectivo de obter lucro. Ora no caso dos namorados do Totobola não ficou provado que os dois membros do casal se comportassem como tendo um "contrato de sociedade civil" com vista ao lucro. "A autora apenas conseguiu provar em juízo que 'dava palpites' no preenchimento dos boletins." E o tribunal negou-lhe o direito de partilhar o prémio com o namorado ("nesta fase, já muito provavelmente, ex-namorado").
Conselhos para evitar que cenas deste género se repitam? "Pode até nem lembrar ao diabo", admite Afonso Fialho, mas caso alguém queira fazer uma 'vaquinha' para apostar no Totoloto ou no Euromilhões, nada melhor do que rabiscar os termos essenciais do acordo entre os co-apostadores na primeira folha de papel que encontrar, fazendo-a assinar por todos. "E já agora, nunca é demais pedir uma cópia do talão das apostas a quem fica obrigado a guardá-lo. É que a confiança não se apregoa, protege-se."
"Invenção extraordinária"
Paulo Malo tem 47 anos e começou a sua carreira como dentista num pequeno consultório. Em 15 anos construiu um grupo internacional em 11 países, nos cinco continentes, e factura cem milhões de euros por ano. Em Lisboa, tem a maior clínica de medicina dentária do mundo (60 mil metros quadrados em 19 pisos, cerca de 500 colaboradores, explica). "Hoje, para além de cirurgião oral, sou empresário e investigador. Passo a vida a viajar em trabalho e 99 por cento do meu tempo é passado a trabalhar."
O dinheiro? Diz que nunca lhe trouxe más experiências, que "ajuda a conquistar a felicidade, mas não é sinónimo de felicidade", que nunca sentiu que dominasse a sua vida. "Não sou dominado pelo dinheiro, sou dominado pela vontade de fazer coisas, por desafios e por uma vontade permanente de fazer sempre melhor e com mais qualidade." É essa vontade de sucesso que o faz ter hoje menos tempo para a família e para os amigos. E, como "a obra nunca está acabada", diz que usa o dinheiro que lucra para... investir mais no crescimento da empresa.
Horácio Roque não fala do dinheiro de uma forma muito diferente. "Gosto muito do que é bom na vida. Para mim e para as pessoas que me rodeiam. Não sou unha de fome." Mas o dinheiro sempre foi, sobretudo, um meio para investir. "O conceito não é acumular milhões, é o de que o dinheiro tem uma utilidade e essa utilidade, para mim, é a utilidade do investimento para produzir riqueza, para produzir mais bens. Foi assim que consegui chegar onde cheguei."
Faz mesmo esta declaração surpreendente: "Não me sinto rico." Como? "Sinto o peso da responsabilidade por aquilo que criei. Tenho responsabilidade por milhares de famílias que trabalham no grupo." Por isso, quando vê as suas empresas perderem dinheiro - o que tem acontecido recentemente como, de resto, com muitas outras empresas por esse mundo fora -, já não contabiliza as perdas como um corte no seu património. "É a riqueza das empresas."
Peter Villax também recusa diabolizar o dinheiro. "O homem criou uma economia altamente especializada, com um sem fim de profissões como jardineiros, médicos e canalizadores. É a existência do dinheiro que permite que o jardineiro cuide do jardim do médico, que trata da doença do filho do canalizador, que instala uma caldeira em casa do jardineiro."
E vai mais longe: "O dinheiro é a invenção mais extraordinária do homem. Nas sociedades onde ele não existe, só é possível a economia de subsistência, em que o homem caça ou cultiva um terreno para a alimentação da sua família ou do seu grupo. E nessas sociedades, sobre as quais Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, escreveu com grande eloquência, não é possível haver especialização de funções: não há médicos, nem jardineiros, nem riqueza." Uma "invenção extraordinária", portanto. a
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