Dá vontade de ir directo à hipérbole: "Estado de Guerra" é o melhor filme de guerra em muitos anos. É uma trip impressionista pelo "lado escuro", uma injecção de adrenalina directa para a veia, uma "walk on the wild side" para citar a canção de Lou Reed. Porque - ao contrário da recente vaga de filmes americanos sobre o Iraque e as suas sequelas, ou de muito do cinema que se fez sobre o Vietname, por muito bons que alguns deles sejam - não é um filme que questione razões, motivos, psicologias. "Estado de Guerra" não pede desculpa por olhar para as coisas de frente e pegar o touro pelos cornos: sim, a guerra é um inferno (não são poucas as cenas onde o choque surdo da morte mesmo aqui ao lado bate com violência), mas para quem está lá no meio é também um vício, uma necessidade, uma maneira de estar vivo.
Tudo se passa numa unidade de minas e armadilhas, acompanhando os desafios quotidianos de um sapador-mineiro viciado nos riscos de desactivar os (progressivamente mais complexos) engenhos explosivos improvisados que os insurgentes constantemente plantam nas ruas de Bagdad, numa "escalada" em que cada bomba neutralizada abre caminho a um desafio mais elaborado e exigente. (Há, é verdade, algo de video-jogo aqui pelo meio, mas é uma leitura necessariamente a posteriori - e nunca um filme inspirado num jogo conseguiu o crescendo de tensão que Bigelow constrói aqui com virtuosismo.) Mas outra faena que "Estado de Guerra" faz ao touro é explicar que Iraque, Afeganistão, Vietname, Coreia, Balcãs, etc., são nomes diferentes para um mesmo território. O "onde" perde a sua relevância. A única ideologia é o pragmatismo. A guerras são todas iguais, há inocentes e culpados, entre mortos e vivos alguém se há-de safar.
Sim, este é um mundo de homens (as únicas mulheres aqui estão longe, em casa, mas esta camaradagem masculina é tão poderosa como frágil, ameaçada a cada momento), mas, paradoxo irónico, foi preciso uma mulher para fazer o melhor filme de guerra em muitos anos. É verdade que não é uma mulher qualquer - Kathryn Bigelow, ex-mulher de James Cameron, uma das poucas cineastas femininas que se impôs no mundo codificado do filme de género. Mas nada na sua obra anterior - que vai de "Ruptura Explosiva" a "Estranhos Prazeres", nem sempre conseguida, mas sempre estimulante - daria a entender que seria capaz de conseguir o que muitos outros têm procurado fazer sem lá chegar: um "statement" praticamente definitivo sobre viver a guerra, com todas as amplitudes térmicas emocionais que isso implica.
Não é, atenção, proeza exclusiva de Bigelow: tire-se o chapéu ao jornalista Mark Boal, que baseou o argumento nas suas próprias experiências acompanhando as tropas no Iraque, e à sua capacidade de desenhar personagens com dois ou três traços; à justeza de um elenco notável encabeçado por um Jeremy Renner na medida certa de obsessão; à "vérité" poeirenta da imagem de Barry Ackroyd (cúmplice habitual de Ken Loach). Mas foi Bigelow quem conseguiu a improvável alquimia de pegar numa história que tinha tudo para se tornar em mais um "statement" neo-liberal sobre a futilidade da guerra e transformá-la, primeiro, num filme de acção que envergonha 95 por cento dos "blockbusters" americanos produzidos nos últimos dez anos e, segundo, num dos olhares mais lúcidos e inteligentes sobre os homens que fazem a guerra sem precisar de recorrer a explicações freudianas.
Houve quem olhasse para "Estado de Guerra" como um filme paredes-meias com o exercício de recrutamento, mas Bigelow limita-se a admitir que há qualquer coisa de primitivo no nosso fascínio pela guerra, que a experiência é tão radical e limite que nada, mas nada, consegue equiparar-se-lhe - e que mais vale aceitar que isso é algo que não consegumos explicar verbalmente, e que transcende políticas e atitudes para ser, apenas, algo de intensamente pessoal e intransmissível. "Estado de Guerra" não explica: observa e constata.
E - milagre! - quem o quiser ver, apenas, como um "thriller" de acção pode fazê-lo que continua a ter direito a um filme notável.
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