Sejam bem-vindos ao interior de um tanque de guerra
Samuel Maoz, soldado israelita, "morreu" na primeira guerra do Líbano, em 1982, e só "renasceu" quando realizou este filme: Lebanon. Um acontecimento. Vasco Câmara, em Veneza
a Quando o israelita Samuel Maoz voltou da sua campanha na primeira guerra do Líbano, que rebentou em Junho de 1982, a mãe abraçou-o, estava agradecida. Mas ela não sabia que o filho tinha morrido. E que o que ela abraçava não era Samuel mas um grande vazio. Em 1987 Samuel completou os estudos de cinema. Mas só 28 anos depois, conta ele, é que regressou finalmente a casa. Vivo. Isso aconteceu quando, aos 47 anos, realizou Lebanon, o filme que se tornou o acontecimento da competição do Festival de Veneza.
Foram necessárias quase três décadas para Samuel suspender o medo e conseguir "distância" para "seleccionar eventos, a ordem por que eles aparecem no filme, dosear a sua força, combinar hiper-realismo e surrealismo"- o renascido Samuel fala delicadamente -, enfim, utilizar o "doloroso" filtro da memória para, "calculadamente, levar o espectador para uma viagem emocional".
Senhoras e senhores, sejam então bem-vindos ao interior de um tanque de guerra que tem pintado orgulhosamente nas paredes: "Este tanque é de metal, mas o soldado é de ferro." Dentro dele vão ficar nos próximos 90 minutos. Abandonados à mesma sorte de quatro soldados, imobilizados algures numa aldeia libanesa devastada. No inferno visual e sonoro só vemos o que Shmulik, Assi, Herzi e Yigal vêem e ouvem - embora haja testemunhos de espectadores que juram ter sentido também cheiro, o cheiro a carne queimada, na sala de cinema.
É uma experiência alucinada. Calculada para assim ser. Não cede um milímetro, não faz favores ao espectador, só entra aqui luz quando alguém entra ou sai do tanque (um prisioneiro sírio; um falangista prestes a atirar-se para o apocalipse de Sabra e Chatila); e só se sai do escuro quando se olha pelo periscópio, lá para fora, para disparar, fazer explodir, matar. (Houve um momento em que os produtores pediram ao realizador que domasse a sua tenacidade, de outra forma a claustrofobia podia tornar o filme insuportável.)
Noventa minutos de caras, olhos, olhos muito abertos, medo, escuro. O ranger metálico do periscópio. E, juram alguns, de cheio a carne queimada. A excepção: um plano luminoso no início e essa mesma fantasmagoria luminosa no fim, e não vamos dizer mais.... (Uma curiosidade: essa proposta tenaz de manter o espectador no lugar do soldado está a fazer com que o realizador questione a legendagem, na versão comercial do filme, dos diálogos com o prisioneiro sírio, já que os soldados israelitas naquele tanque não entendem o árabe.)
A catarse serviu a Samuel Maoz para arrancar de si próprio um grande filme de guerra que transcende o "filme de guerra". E não é preciso falar, como alguns já falam, de "um novo género" para embarcar no entusiasmo que a experiência de Lebanon está a provocar. A componente autobiográfica, que satura cada imagem, retira-lhe o virtuosismo do exercício de estilo. Sem deixar de ser uma virtuosa achega para o estilo do género. Pode-se perguntar: mas então A Valsa com Bashir, de Ari Folman? Sim, há uma geração que se está a chegar à frente no cinema israelita e que traz consigo uma memória que questiona tabus da História do seu país. Mas A Valsa com Bashir ainda era um filme sobre... Não era ainda a experiência de...
"Não podia contar esta história na forma tradicional, clássica", diz o realizador, e não está a pedir desculpas por meter o espectador no inferno; era a sua vida que estava em jogo: ou era cineasta, ou continuava com a alma perdida na guerra do Líbano. "Não queria que o espectador percebesse, quero que o espectador sinta. As sensações são conhecimento. Não queria que tivesse alguma coisa a ver com o documentário, é uma experiência emocional."
É isto a guerra, Samuel? Há uma guerra justa, ou a guerra é sempre a guerra? "Na guerra lutamos pela nossa vida. São os nossos básicos instintos. Não temos tempo para pensar assim, se estamos certos ou errados..." E conta como em vez de explicar aos actores factos, para eles construírem as personagens, pediu-lhes que entrassem para a escuridão de pequenos contentores. Que eram poderosamente vergastados, como se fossem bazucas a chocar com a carcaça de um tanque... E Samuel faz uma pausa: "Eu poderia explicar o que é a guerra. Vocês iriam compreender. Mas não saberiam o que é a guerra."
Vasco Câmara é crítico de cinema