É, salvo erro, a primeira vez que um filme de Claire Denis tem estreia comercial em Portugal - o que é, no mínimo, surpreendente face a uma carreira que já leva 20 anos e ao estatuto de culto de filmes como "Nénette et Boni" (1996) e "Trouble Every Day" (2001), que chegaram a ter exibições pontuais em sessões especiais. Mas ainda bem que é "35 Shots de Rum" a revelar a cineasta francesa, antiga assistente de Wenders e Jarmusch, ao público mais "desatento". Este é, na sua melhor acepção, um filme "de família" ? feito "em família", com muita da equipa e do elenco regulares do cinema de Claire Denis (desde os Tindersticks na banda-sonora à presença granítica e sólida do grande Alex Descas no elenco), mas também sobre "a família", à volta de um pai e de uma filha (Descas e Mati Diop) cuja vida rotineira e quotidiana um belo dia rebenta pelas costuras, em surdina e sem razão aparente.
Filme sobre os tempos que mudam quase sem darmos por isso, marcados pelos pormenores mais banais (um carro que avaria, um colega que se reforma, um vizinho que parte), usando os túneis do metro e o vaivém dos comboios como metáforas de tudo o que nos percorre por dentro sem dar sinal à superfície, "35 Shots de Rum" constrói-se pela acumulação de pequenos pormenores apenas aparentemente banais mas que, tomados em conjunto, revelam um mosaico singularmente atento. E, até, pontualmente tocante ? veja-se a cena absolutamente de estarrecer do nocturno no café ao som de "Nightshift" dos Commodores, exemplo perfeito da elegância de que Denis é capaz no seu melhor. Mas lamenta-se que o resto do filme, apesar de tudo, não esteja à altura dessa cena, um dos momentos mais notáveis de cinema que vimos em 2009, e se retraia mais do que seria desejável ou se perca em desvios laterais ao que realmente interessa (o interlúdio alemão com Ingrid Caven parece-nos razoavelmente supérfluo). Ainda assim, é muito provavelmente o melhor filme de Claire Denis, e ainda bem que é este o seu primeiro filme a estrear cá.
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