In Memoriam - Isabel Alves Costa e o Rivoli
a Há uma fotografia de Isabel Alves Costa que ficará na memória colectiva da Revolução de Abril. Eis que regressam do exílio as vozes do canto libertador. No aeroporto de Lisboa juntam-se, entre outros, José Mário Branco, agarrado a sua mãe, José Afonso e Isabel Alves Costa. Isabel tem os olhos fechados e o seu corpo prolonga-se num punho erguido, como um grito para um novo tempo.A Isabel que eu conheci, nos anos 90, participou activamente, com Manuela de Melo, José Madureira Pinto, Augusto Santos Silva, Paula Aleixo e Júlio Moreira num extraordinário processo de renovação dos mundos da arte e da cultura no Porto. Processo que terminou, abruptamente, com Rui Rio e que conheceu o seu auge, embora no meio de grandes contradições e tensões, durante o Porto 2001. Estou muito à vontade para o dizer: não fui nem sou do Partido Socialista mas entrei ainda jovem (23 anos, recém-licenciado) nesse grupo do qual guardo extraordinárias recordações, "puxado" por Madureira Pinto e Manuela de Melo. Tratou-se, na verdade, de um amplo movimento liderado por uma autarca socialista, com ênfase no apoio à criação, na constituição de uma rede de equipamentos municipais (com o Rivoli a servir de pivot) e no envolvimento das escolas, das associações e da população menos familiarizada com os códigos artísticos (vivendo em bairros desfavorecidos, habitando em prisões, sofrendo em hospitais psiquiátricos.
A marca tão própria da Isabel esteve desde o início presente. Muitas conversas cimentaram entre nós uma relação de cumplicidades e divergências. Mas percebi, desde sempre, como conseguia, coisa rara, conciliar em todos os seus projectos a intransigente busca de qualidade com a formação de públicos e a participação nas artes. Um projecto comum levou-nos, na Porto 2001, sob o pretexto de um espectáculo de Philippe Decouflé no Rivoli, a concebermos e executarmos, com um grupo de crianças de Miragaia, um workshop de novo circo, nessa estimulante mescla de arena popular com teatro e dança contemporâneos. Isabel sabia que, quando abrimos os mundos da percepção a novas linguagens; quando essas linguagens, na sua intrínseca diversidade, deixam de ser consideradas estranhas ou hostis, então as pessoas podem exercer, na plenitude, o direito à cultura, optando. Quem tudo desconhece nunca escolhe. Quem possui chaves de decifração trata os mundos da cultura e da arte sem cerimónia e com à vontade, destruindo coutadas de elites mas também ofertas culturais que não vão além do monolitismo do que rende e vende. Essa é a marca que Isabel deixou e que fazia a "cultura" do Rivoli: trabalhar com os melhores criadores internacionais, nacionais e portuenses, proporcionando-lhes as melhores condições de trabalho, mas abrindo-se sempre às populações e aos públicos "improváveis" (os mais esquecidos); deixando de lado, por decadentes, os salamaleques e rituais dos pomposos teatros, onde é mais importante ser visto do que ver, a bem da honra do tout petit Porto.
Rui Rio não percebeu nada disto e entregou o Rivoli a quem vende, não a quem faz serviço público. Elisa Ferreira parece também não o ter percebido, ao defender uma simples "renegociação" do actual statu quo do Rivoli (mantendo La Féria). Tudo se prepara para esquecer ou fazer adormecer a libertação do Rivoli. Pela minha parte, honrarei a memória de Isabel, lutando, com todas as minhas forças, por um Rivolivre, Teatro Municipal ao serviço de uma cultura urbana plural, de qualidade, cosmopolita, insurgente e participada. Sociólogo, candidato do BE à Câmara do Porto