Lee Fields finalmente é a hora dele
Não se sabe que idade tem Lee Fields mas anda nisto há muito.
Com "My World" já ganhou o ano. Como é que este homem
não tem dezenas de discos gravados? João Bonifácio
Lee Fields pode não ser uma estrela e pode nunca vir a ser uma estrela, mas está há tempo de mais no circuito para não se divertir com o que lhe está a acontecer. Ao fim e ao cabo, este é o tipo que esteve mais de dez anos à espera até gravar o primeiro disco e 13 até ao segundo, que se deu com as gentes da Stax mas nunca capitalizou no sucesso da editora, que foi considerado um émulo de James Brown, que deu dicas em discos de hip-hop, que sobreviveu fazendo segundas vozes, sem que por um segundo o nome dele fosse conhecido para lá de um circuito mínimo de entendidos.
Não é a primeira vez que isto acontece: Bettye LaVette e Sharon Jones são exemplos de divas que andaram séculos perdidas antes de serem redescobertas por miúdos com idade para serem filhos delas, e que as fizeram gravar discos com as canções e condições necessárias.
E agora é a vez de Fields ser entronado neste revivalismo da soul. Fields há-de ter tremendas histórias para contar. Mas há coisas que ele não conta - e diverte-se com isso.
A dada altura, em conversa telefónica para sua casa, fazemos-lhe uma pergunta, uma simples pergunta. A resposta, que não estávamos de todo à espera, vem num tom roufenho, entre o divertido e o muito sério.
"Má pergunta", diz, e não sabemos se o homem está zangado ou não.
"Essa é uma má pergunta", repete e aqui começa a rir-se, indicando que não há zanga da sua parte.
Que assunto será esse que o senhor Fields quer guardar a sete chaves?
Um passado de arrombador de cofres?
Os anos passados como "drag queen" num botequim no Harlem?
Um fetiche zoófilo?
Não, nada disso. A resposta é: a idade.
No que toca à idade Lee Fields é pior do que algumas senhoras e alguns futebolistas que retiram anos ao BI. Ele nem sequer diz em que ano nasceu.
Mas porquê? Porque raio há-de um homem que passou quase toda a sua vida na semi-obscuridade esconder a sua data de nascimento logo agora que começam a olhar para ele?
Muito simples: "Neste momento há muita curiosidade a meu respeito e não me apetece que a curiosidade acabe. Deixa-os continuar a perguntar." E depois, para que não restem dúvidas de que há humor da sua parte, acrescenta a rir: "Desculpe, mas é assim que as coisas são".
É assim que as coisas são, mas não foi sempre assim que as coisas foram. O sucesso, por exemplo, é uma coisa que (parece que) Fields nunca teve. E agora (parece que) está a ter. Tudo por causa de um disco acabado de editar, feito de linhas de baixo dirigidas à espinha, guitarras que fazem cócegas nos pés, órgãos saídos de uma igreja sulista, cordas com arrependimento e metais cheios de pecado.
Chama-se "My Life", é soul à antiga e parece que é apenas o sétimo disco em nome próprio que Fields gravou. Dizemos "parece" porque o próprio Fields não está muito certo da sua discografia.
"Sabe quantas canções gravei em meu nome? Umas sessenta, não mais que isso".
"My Life" é um disco de outro mundo, refinadamente arranjado, soberbamente interpretado. Fields espalha classe em cada canção. Tem o seu número James Brown, o seu número Marvin Gaye, o seu número Smokey Robinson, o seu número Eddie Floyd.
Ouve-se o disco e pensa-se: como é que este homem não tem dezenas de discos gravados?
"Deixei-me explicar-lhe uma coisa, jovem: não gravei mais porque eu não queria gravar o que a indústria me mandava gravar. Eu queria gravar o que eu quisesse gravar. Não estou a dizer que o que fiz era o que tinha mesmo de ser feito, eu só fiz o que eu queria fazer. E foi por isso que gravei poucos discos".
A soul nunca foi negra
Fields fala como se estivesse cheio de vida na boca: começa por responder a uma pergunta e depois, à maneira dos pregadores de igreja, não para. Um assunto leva a outro, por tudo e por nada diz que está cheio de amor por toda a gente, ri-se, volta atrás, faz confissões, jura amor pela mulher, oferece definições para a soul, diz que a "black music" há-de ser "everybody's music", diz que a soul acabou com a segregação porque "é música soul, não é música da soul dos pretos". É tão conversador que a dada altura resolve explicar a génese da música soul. "Primeiro chamaram-lhe blues. E o blues era sobre os altos e baixos da vida das pessoas normais. Quando chegou a soul o canto aproximou-se do gospel. Cantava-se como se se estivesse na igreja. É r'n'b na forma de igreja. E o r'n'b de hoje reflecte o mesmo, é uma canção sobre os altos e baixos do homem comum", diz, embora seja uma tese difícil de aceitar.
Fields não é bem um teórico, é antes um génio do improviso, sacando teorias do bolso à medida que lhe aparecem. Uma das suas melhores teorias é que a soul nunca foi negra.
"Havia brancos na Stax. Havia brancos na audiência. Havia brancos entre os músicos. Eu sei o que estou a dizer: eu estava lá".
E porque é que a soul nunca foi tão "mainstream" quanto poderia ter sido, se havia tantos brancos a apreciá-la? Simples: "O 'mainstream' é o que a grande indústria quiser que seja. É o que está na agenda deles. Pode-se pôr um porco na TV e se o deixarmos tempo suficiente as pessoas acham que é bom."
Com toda a sua proficuidade verbal, com todo o seu humor, Fields está, nitidamente, a divertir-se com o seu "suposto" sucesso. E diz suposto porque, apesar de "My World" andar a ser citado por todo o lado, ele não faz ideia "do que os mais novos acham deste disco" mas sabe que "fazia mais dinheiro a ser músico de sessão".
Para Lee Fields, haja ou não sucesso, seja ou não "My World" um disco de retro-soul, as coisas são simples: "Isto é apenas soul, isto é a mesma coisa que sempre fiz".
Então raios partam a indústria que deixa passar incógnito um talento destes.
"Little James Brown"
O que é que sabemos ao certo de Lee Fields? Nasceu em Wilson, uma pequena terra da Carolina do Norte, informação que ele confirma, bem como a de que tem mais três irmãos. Não conta como aconteceu, mas "já fazia discos em 1969".
Tendo em conta que a sua alcunha era "Little JB", por causa das semelhanças faciais com James Brown, é possível que tenha começado cedo. Ele define essa época como "a altura em que a soul tal como a conhecíamos estava a morrer". O rock e o funk psicadélico, "como o Sly Stone", diz, "estavam a pegar". "Mas eu nunca fui cool", acrescenta, e o seu amor era só um: a soul.
Fields, apesar de imensamente conversador (note-se: nunca ouvimos ninguém falar tanto) não é muito prolixo em relação às suas actividades no circuito. Diz que gravou umas canções, o que quer dizer, em termos antigos, singles. É curioso que ele ainda fala nesses termos, como se nunca tivesse havido LP, CD, EP, mp3.
Era, admitidamente, um James Brown em ponto pequeno. "Eu adoro o James Brown, meu. Ele era um Deus no meu coração e continuo a respeitá-lo. Um dos grandes 'entertainers' que viveram até hoje, ele e o Michael Jackson".
As comparações com o homem mais trabalhador do negócio mantiveram-se o tempo suficiente para a dada altura ele ter sentido que estava na hora "de deixar de ser o pequeno JB". "Lá pelos meus vintes comecei a achar que não era apreciado pelo que era. E ainda por cima era parecido com ele. Sempre desviei a conversa quando se falava disso. Dizia 'Ouve o meu disco'. Mas não me importava porque estava a divertir-me".
É difícil dizer o que Fields andou a fazer desde então. "Estive sempre a trabalhar", diz, de forma incisiva. Fez "muitos coros, muitas segundas vozes", incluindo para os Kool and The Gang; cantou "linhas em discos do Jay-Z". Resumindo: "Sempre estive no circuito".
Há um momento muito engraçado, em que, referindo-se a questões monetárias, Fields diz: "Não preciso de champanhe caro, não é o meu chá". Tendo em conta o peso que o champanhe tem no imaginário e na vida de Jay-Z, parece haver aqui um certo gozo ao rei do hip-hop.
Um disco imprevisto
O dinheiro, note-se, é uma questão importante para Fields. Ele faz questão que fique bem claro que apesar de "nunca ter tido um êxito" também nunca teve problemas. "Nunca fui rico, mas sempre tive dinheiro para viver bem", afirma enfaticamente. "Se vier a minha casa verá que não vivo como um rei mas vivo muito bem. Sempre vivi. Sempre viajei para onde quis e os carros que quis ter pude tê-los".
Claro que um discurso destes tem sempre pequenas falhas e contradições. A certo momento Fields afirma: "Já não tenho um período em baixo desde os anos 80". Nessa altura fazia faixas disco para sobreviver. "Não estou a lutar contra nada, também tenho de pôr pão na mesa", faz questão de dizer.
Mas a sorte do pequeno JB deu-se quando Jeff Silverman and Leon Michels montaram a Truth & Soul records em 2004 e definiram como prioridade fazer um grande disco para Lee. Montaram um banda, os Expressions, com malta dos Dap Kings, dos Antibalas, mas esqueceram-se de lhe dizer que estavam a fazer um disco para ele.
Para nossa surpresa, Lee diz a dada altura: "Não sabia que estava a gravar 'My World'. Não sabia". Compreende-se: o disco foi gravado ao longo de quatro anos. "Chamavam-me para gravar uma canção e eu ia, mas entre cada telefonema passava tanto tempo que nunca me ocorreu que estivéssemos a fazer um disco. Pensei que estivéssemos a gravar uma canção ou outra para um disco dos Expressions, não o meu disco. Talvez eles me tenham dito, mas eu falo com dez pessoas por dia e estou sempre a viajar de um lado para o outro, por isso não decoro tudo o que dizem".
Apesar de estar a gravar sem saber o quê, Fields pôs "tudo o que tinha naquele disco". Que, para ele, "é um regresso à 'sweet soul music' e é lindo".
Penúltimas famosas palavras de Lee Fields, homem de idade incerta e que tornou a soul doce outra vez: "Não tenho arrependimentos. O que me interessava era divertir-me - e diverti-me o mais que pude. Não mudaria a minha vida."
E como bom homem soul acaba a dizer "Diga aí em Portugal que o Lee Fields ama toda a gente".
Ver crítica de discos na pág. 22 e segs.