Portugueses dizem que sucesso no país depende da reconstrução
Três cidadãos nacionais que estão ou passaram pelo país contaram ao PÚBLICO as suas experiências e falaram dos grandes desafios que o Afeganistão enfrenta
a Trinta anos de guerra e invasões, uma sociedade assente no tribalismo e o conservadorismo religioso fazem do Afeganistão um dos países mais complicados para a intervenção estrangeira. Esta é a visão partilhada por três portugueses que passaram nos últimos anos pelo país - um militar, uma funcionária da ONU e o dirigente de uma organização humanitária. São diferentes experiências que resultam em diagnósticos diferentes, mas que voltam a coincidir quando se fala do futuro: só com a reconstrução será possível conquistar a população afegã e vencer a guerra.O tenente-coronel Gonçalves Soares, segundo comandante do Centro de Tropas Comandos, esteve duas vezes no país. A primeira, em 2006, ao comando do segundo contingente do Exército a integrar a ISAF, a força internacional sob comando da NATO. A última em 2008, integrando uma equipa de assessoria das forças aliadas ao Exército afegão.
"Notei enormes diferenças em Cabul", conta, numa entrevista por telefone ao PÚBLICO. A capital, onde decorreu a segunda missão, "está completamente diferente em termos de vias de comunicação", "há muitas empresas em terrenos que antes eram baldios" e "começa a ver-se construção de luxo" - sinais, diz, "de que as pessoas se sentem mais seguras" e que não estão interessadas no regresso da instabilidade.
Da primeira missão, em que chefiou uma unidade destacada para Farah (Oeste), recorda a hostilidade de alguns dirigentes - "Um chefe da polícia, quando fomos ter com ele, disse-nos: 'Odiamos os americanos e não gostamos de vocês'" - e o receio da população, em contactar com os militares. "Mesmo os garotos, a quem costumamos levar rebuçados e canetas não vinham ter connosco", lembra, explicando que os contactos eram mais difíceis nas zonas "onde havia probabilidade de regresso dos fundamentalistas".
Risco controlados
Mas houve também boas surpresas, como o dia em que a população ajudou os militares a tirarem um Humvee que caíra numa vala. "Claro que isto representa um risco para nós. Não sabemos o que as pessoas trazem debaixo das túnicas", mas "quem faz ataques não os faz de improviso".
É também de riscos controlados que fala Carla Lopes, funcionária das Nações Unidas a trabalhar há três meses como oficial para os assuntos civis em Kunar (Nordeste), junto à porosa fronteira paquistanesa. Numa província com forte actividade rebelde "a segurança é sempre uma preocupação", mas como vive e trabalha "dentro de um compound o risco é mais colateral", diz a portuguesa, já na sua terceira missão no país, acrescentando que as viagens são feitas sob fortes medidas de segurança.
Na província, "com uma base tribal muito forte" e uma visão "muito conservadora" do islão, é rara a presença de mulheres na vida pública. Mas a portuguesa - que apoia as autoridades locais na criação de uma estrutura de serviços públicos e faz a ligação com os militares e organizações internacionais - encontrou formas de superar os constrangimentos: "Visto-me sempre com roupas afegãs para eles verem que eu estou a respeitar as tradições [e] há sempre a relação de que tudo pode ser discutido connosco."
Mais breve, mas não menos arriscada, foi a passagem de Fernando Nobre, presidente da AMI, pelo Afeganistão: "Estive lá duas vezes, a última em Julho do ano passado para a inauguração da escola e do posto clínico que ajudámos a construir na região de Jalalabad [Leste]." A viagem foi feita de jipe através da fronteira paquistanesa, sem escolta, na companhia dos dirigentes da Hope of Mother, a ONG que gere a escola.
Um ano antes, visitou o país pela primeira vez, viajando de carro de Cabul a Jalalabad. "Foram viagens de apreensão", confessa. "Enquanto ocidentais, e nós portugueses que aparecemos numa certa fotografia, não somos benquistos na região." Apesar de estar situada numa das províncias mais instáveis do país, Fernando Nobre diz que a escola, para 450 meninas e meninos, "tem boas condições de segurança". "Todos os chefes tribais assistiram à inauguração, porque estão conscientes de que aquela escola vai permitir educar os seus filhos."
Necessidade de reconstruir
O presidente da AMI é mais pessimista sobre o futuro do país, que diz ser "um barril de pólvora", por causa da ameaça taliban e dos senhores da guerra, da cultura do ópio e "também das graves carências alimentares" da população. "A política de reconstrução [da Administração Obama] já vem tarde. O Afeganistão foi bombardeado desde finais de 2001 e o esforço de reabilitação foi pouco ou nenhum" - o que, diz, permitiu a reorganização dos taliban.
Uma avaliação que Carla Lopes não partilha. Em Kunar, "houve muito investimento nas infra-estruturas" e "há estradas onde elas nunca tinham existido". Mas admite que o dinheiro não se traduziu na criação de emprego, "um dos principais problemas do país", onde 88 por cento da população terá menos de 25 anos e a indústria é quase inexistente. "Muita da actividade rebelde tem a ver com a pobreza", diz.
E por que não foram ainda os taliban derrotados? O tenente-coronel Gonçalves Soares explica que, numa guerra não convencional como é a afegã, "a vantagem está sempre do lado deles". "Podem andar seis meses sem fazer nada e depois lançar uma operação espectacular", desaparecendo em seguida entre a população. E aos taliban basta, de tempos a tempos, "conquistar terreno para mostrar força" - "uma espécie de marketing" a que os militares não podem responder com todos os meios ao seu dispor porque a ISAF "é uma força de assistência". "A vantagem só será nossa quando tivermos a confiança da população" e isso, diz, passa por mais segurança e investimento.