O sobrevivente Karzai pede ajuda ao velho Afeganistão
Há um candidato taliban chamado Rocketi. Outro vive numa tenda e denuncia a corrupção. Um tem um assessor americano que o pôs a escrever no Twitter. Outro pode obrigar o Presidente a ir a uma segunda volta. E há o homem de quem o Ocidente gostava e que agora se aliou aos velhos senhores da guerra
a Abdullah Abdullah arrastou multidões e levou-as ao rubro com slogans simples e elogios a Ahmad Shah Massoud, herói da resistência anti-soviética e antitaliban. Ashraf Ghani impressionou nos debates com ideias para revitalizar a economia e combater o desemprego - demasiadas propostas, "provavelmente demasiado inteligentes" para conquistar o eleitorado afegão, notou a revista Time. Ramazan Bashardost, que tem uma tenda como sede de campanha e viaja pelo país num pequeno Suzuki preto com um enorme buraco no chão, que apesar não ser um Mini é frequentemente chamado "o carro do Mr. Bean", surpreendeu com o seu discurso contra a corrupção e contra os senhores da guerra.Candidatos às dezenas, cartazes nas paredes das principais cidades e nos postes das aldeias mais remotas, anúncios na rádio e na televisão, debates pela primeira vez na história do país transmitidos em directo e discutidos nos cafés, comícios com milhares de pessoas e helicópteros a largar panfletos sobre as multidões. Sondagens e, mais impressionante, incerteza quanto aos resultados. Nas últimas semanas, o Afeganistão não deixou de ser um país em guerra, mas uma frenética campanha fez-se à estrada, gerou um ambiente de festa e foi capaz de se impor à violência.
As eleições de amanhã são as segundas presidenciais de sempre no país e as primeiras organizadas pelos afegãos - apesar do financiamento internacional, dos inúmeros conselheiros da ONU e de ONG e dos 100 mil soldados estrangeiros que vão tentar impedir atentados dos taliban. Há cinco anos, o pashtun Hamid Karzai, membro da etnia maioritária e escolhido pelos norte-americanos para assumir o poder com o derrube dos taliban, era um vencedor anunciado. Agora, está na iminência de ser forçado a disputar uma segunda volta. Sinais de democracia no antigo Estado falhado, em guerra há 30 anos, ou nem tanto?
Há muito de novo nestas eleições, mas também muito de velho, do Afeganistão das Kalashnikov e das disputas étnicas. E, acima de tudo, com excepção das propostas de Ashraf Ghani, que trabalhou dez anos no Banco Mundial e que fora do Afeganistão é um reputado economista, há muito pouca política nesta nova política afegã. Não será por acaso que Ghani, pashtun como Karzai, aparece apenas em quarto lugar nas sondagens, atrás de Ramazan Bashardost, que, para além do discurso anticorrupção e das 52 medidas do seu programa, tem a vantagem de ser o mais mediático dos candidatos hazaras, a segunda maior minoria do país.
As alianças do Presidente
É com votos que esta eleição se vai decidir, mas para lá dos relatos de compra de cartões de eleitor, nomeadamente por parte de Karzai, e dos receios de fraude que podem ensombrar o resultado, a campanha fez-se mais para os líderes religiosos, tribais e étnicos do que para os afegãos comuns. E foi Karzai, mais do que ninguém, a cortejar todos os chefes que pôde, todos os que lhe podem render votos, dos antigos mujahedin que combateram os soviéticos aos radicais religiosos.
Entre os cartazes que se atropelam pelas paredes de Cabul, há um especialmente simbólico: aquele em que Karzai aparece rodeado pelos seus dois candidatos a vice-presidentes, Mohammad Qasim Fahim, tajique, e Karim Khalili, hazara. Não faziam falta palavras, mas mesmo assim há uma frase a acompanhar a imagem: "Um Afeganistão avançado e unido merece ter estes três políticos." Fahim e Khalili, mais o primeiro do que o segundo, foram destacados chefes militares e ambos são referidos em relatórios da Human Rights Watch como responsáveis por crimes de guerra. Fahim, aliás, é um velho inimigo de Karzai, que tentou prender o actual Presidente quando os dois integraram o governo formado pelos mujahedin depois da retirada soviética.
Aliou-se a um hazara e a um tajique com sangue nas mãos. Aprovou uma lei que autoriza os maridos xiitas a violar as mulheres para assegurar o apoio dos fundamentalistas. E na recta final da campanha, a cereja em cima do bolo, Karzai promoveu o regresso ao país do general uzbeque Rashid Dostum, que o próprio quisera prender (e só não o fez porque os aliados turcos de Dostum não deixaram), depois de este se envolver numa guerra com um rival há dois anos. O sanguinário apreciador de whisky, senhor do Norte e dos uzbeques cuja milícia foi usada pelos soviéticos como tropa de assalto contra os mujahedin, que depois traiu os soviéticos e terá trocado de lado mais vezes do que nenhum outro durante a guerra civil que destruiu Cabul no início dos anos 1990. Dostum voltou da Turquia para ser recebido por uma multidão de apoiantes e dizer-lhes: "É com Karzai que temos futuro."
Ameaça do oftalmologista
Abdullah, o tajique (com pai pashtun) oftalmologista que foi conselheiro de Massoud e porta-voz da Aliança do Norte quando os Estados Unidos entraram na guerra depois do 11 de Setembro, também não se esforçou por explicar exactamente como vai promover a "mudança" que os seus cartazes referem e contou mais com o carisma pessoal e o reconhecimento público do que com propostas políticas. Mas pelo menos fez comícios, os maiores desta campanha, e tentou ganhar nas ruas o apoio com que conta forçar Karzai a uma segunda volta. O Presidente mal se mostrou, e quando o fez foi em recintos fechados, com medo de ataques. Em vez disso, por ele fizeram campanha todos os líderes locais, suspeitos traficantes de droga ou radicais a quem prometeu algo em troca.
O homem que nos primeiros anos depois do 11 de Setembro era o afegão preferido de todas as capitais ocidentais, com quem George W. Bush falava ao telefone semana sim semana não e que o estilista Tom Ford nomeou o "mais elegante do mundo", parece agarrado ao poder e disposto a tudo para ali ficar. Ou talvez acredite mesmo que é único afegão capaz de unir e governar o país e os anos no poder lhe tenham mostrado que vale tudo. Amigos do Presidente ouvidos por Elizabeth Rubin, analista do Council on Foreign Relations que assinou um longo perfil de Karzai na revista do New York Times, explicam que ele sabe como hoje a sua reputação é má e quer ficar para redimir o seu legado.
"Não imagina tudo o que eu tolerei. Eu era como alguém que segurava uma jarra muito delicada nas mãos, muito preciosa, delicada, tão valiosa que não queremos deixá-la cair, e andamos pelo meio de tempestades, através da chuva, através do vento, através de excessos de todo o tipo. Caímos mas mantemos a jarra, segurando-a delicadamente para que não se parta. Era assim que o Afeganistão estava. Carregá-lo durante tanto tempo obrigou a acomodar muita coisa. E isso enfraquece-nos", admitiu Karzai a Rubin, "alongando-se nas vogais e entusiasmando-se com o drama da sua metáfora." Os afegãos têm tendência para a teatralidade e Karzai não é excepção. "Acomodar o quê? Os senhores da guerra? Os estrangeiros?", questionou Rubin. "Tudo. Tudo, tudo, tudo! Eu tive de equilibrar os EUA e o Irão. Outros países. Tive de equilibrar a Europa. O mundo muçulmano. Tive de fazer do Afeganistão uma nação onde todos trabalhassem juntos em nome do país. E consegui. Felizmente. Mas com grande stress e custo pessoal."
O tecnocrata sem hipóteses
Nada disso é mentira. Karzai começou por ser um Presidente sem poder real: o dinheiro era estrangeiro, americano e britânico mais do que outra coisa, e quem dava dinheiro queria ter aliados nos postos de poder, e quem dava dinheiro também tinha tropas no terreno e aliava-se a senhores da guerra, mesmo que Karzai estivesse contra essas alianças. Só quando a violência aumentou e ficou claro que os taliban tinham aproveitado a distracção do Iraque e o desinvestimento militar e de ajuda para se fortalecerem e rearmarem é que os antigos aliados americanos de Karzai começaram a descrever o seu Governo como corrupto e a responsabilizá-lo pela falta de progressos. O seu Governo é corrupto, ninguém o nega, mas os poderes estrangeiros que passaram a apontar-lhe o dedo partilham a culpa.
Demasiadas guerras, demasiados senhores da guerra, demasiada influência estrangeira, uma missão demasiado difícil. Karzai tornou-se apenas mais um sobrevivente. Sobreviveu a quatro tentativas de assassínio nos últimos anos. Sobreviveu aos americanos e britânicos, com os seus preferidos, as suas alianças, os seus homens no seu Governo. Hoje, os americanos não apoiam abertamente um candidato. Mas todos os afegãos sabem que eles não estão com Karzai. A Administração Obama começou por ser muito crítica do Presidente para depois o tratar com a distância possível. E antes do início da campanha, enviados e diplomatas fizeram questão de se mostrar em conferências de imprensa com Ashraf Ghani e também com Abdullah Abdullah.
O tecnocrata Ghani é o verdadeiro candidato dos americanos. Mas como não tem obviamente hipóteses de vencer, Washington tem apostado em negociar com Karzai a sua entrada num futuro governo. O economista, que conta entre os seus assessores de campanha com o estratego democrata James Carville (que pôs Ghani a fazer campanha no Twitter, um conselho de eficácia duvidosa num país em que 70 por cento da população não sabe ler), recusou abandonar a corrida, mas já deixou escapar que "se for necessário" considerará a entrada "num governo nacional".
Que acabe depressa
A campanha afegã não se fez só das alianças de Karzai, dos comícios de Abdullah, das propostas de Ghani e da atenção provocada pelas tiradas de Bashardost, que fala de si na terceira pessoa e explica que "quando se é Bashardost não se pode casar, porque as mulheres querem dinheiro para ir ao restaurante, comprar roupas". "Mas eu não posso, quando os meus compatriotas morrem de fome", explicou à AFP.
Entre os 37 candidatos (vão aparecer 41 nos boletins, mas quatro retiraram-se da corrida) e os seus vices, "há gente muito boa - mulheres, jovens que nunca tinham entrado na política", garante Ahmed Rashid, um dos mais reputados especialistas na turbulenta história afegã, numa entrevista ao think tank Council on Foreign Relations. Mas também houve taliban a fazer campanha pela abstenção e até há um candidato taliban, Rocketi, o mullah que deve o seu nome de guerra à pontaria demonstrada ao longo dos anos de lança-rockets ao ombro e que é um dos "moderados" envolvidos nos esforços de negociação com os fundamentalistas que o Governo de Karzai começou a promover nos últimos anos.
Entre os ataques diários dos taliban, já é extraordinário que tenha havido campanha. E será outro milagre se um número significativo de afegãos sair de casa para votar, apesar das ameaças de facções rebeldes que prometem lançar atentados contra centros de voto em todo o país. Outro ainda se os resultados não forem contestados nas ruas - um assessor de Abdullah, que reúne 26 por cento dos votos nas sondagens, chegou a ameaçar com protestos violentos, se Karzai vencer à primeira. Para isso, o líder afegão precisa de 51 por cento e nenhuma sondagem lhe deu mais do que 46.
Na eventualidade de uma segunda volta, Abdullah terá a oportunidade de unir a oposição. Mas Abdullah só teria hipóteses reais de vencer se muitos pashtun, concentrados nas regiões de maior violência do Sul e do Leste, não pudessem votar. E nesse caso, notam vários analistas, seriam os pashtun a não reconhecer a sua vitória e a sair à rua. Sem o dizerem, Nações Unidas, Estados Unidos e os países com tropas no terreno, gostem ou não de Karzai, cruzam os dedos na esperança de evitar uma segunda volta. As eleições já sugaram demasiada energia e todos têm medo do que pode acontecer no período entre a divulgação dos resultados, esperados para meados de Setembro, e a segunda ida às urnas, marcada para Outubro.
"Será um período de acusações, conspirações, contra-acusações, vácuo de liderança. Pode ser uma situação política muito arriscada. Tudo pode acontecer", antecipa Ahmed Rashid.
Campanha, eleições, um vencedor com o mínimo de legitimidade é o melhor que se pode esperar da eleição que animou os afegãos nas últimas semanas. Quanto ao resto, a democracia e a política limpa, é cedo para isso no Afeganistão.