"É preciso amar a dança para continuar a dançar. Não nos devolve nada, nenhuns manuscritos para guardar, nenhumas pinturas para pendurar nos museus, nenhuns poemas para serem impressos e vendidos, nada a não ser aquele momento fugaz em que nos sentimos vivos. Não é para almas instáveis." Merce Cunningham
Primeiro foi a surpresa, o choque, depois veio o pânico, com a mesma pergunta a passar pela cabeça de toda a gente: e agora?
Afinal, a quem pertence e como se preserva um tipo de legado que, por definição, é imaterial, um património como a dança, que existe apenas no momento em que o corpo de alguém a recebe?
A dança é uma questão de apropriação e, por isso mesmo, de constante contaminação e transformação. Uma dinâmica de vida. O contrário de morte. E, contudo...
26 de Julho de 2009: Merce Cunningham, um dos génios maiores da transformação da dança numa forma de arte moderna, morre em casa, em Nova Iorque, aos 90 anos.
30 de Junho de 2009: Pina Bausch, a voz mais transformadora e influente da dança europeia das últimas três décadas, morre inesperadamente em Wuppertal, na Alemanha, aos 68 anos, apenas cinco dias depois de se saber doente com um cancro.
21 de Novembro de 2007: Maurice Béjart, o último grande coreógrafo dos revolucionários Ballets Russes e ele próprio um dos mais influentes autores da Europa das décadas de 1960 e 1970, morre em Lausanne, na Suíça, aos 80 anos, depois de um mês de tratamentos cardíacos e renais intensivos.
Todos eles. E antes deles tantos outros. Martha Graham, José Limón, Alvin Ailey, Kurt Joos, Dominique Bagouet... É a nossa memória a empalidecer, a desaparecer aos poucos, e tentar travar esse processo tem sido como tentar segurar um punhado de areia demasiado volumoso para a nossa mão. Tudo a escapar-se-nos por entre os dedos.
"A tragédia da dança é que 99 por cento das peças produzidas desaparecem passados cinco anos [sobre a estreia]", dizia-nos a historiadora de dança norte-americana Lynn Garafola há apenas três meses, por altura do centenário do nascimento do Ballets Russes, a companhia-revolução criada por Sergei Diaghilev na Paris de 1909. "Quantas peças sobrevivem a uma temporada? Como se passam reportórios quando as instituições estão permanentemente a colapsar?", perguntava-se Garafola. Foi depois que começaram as mortes.
Merce foi previdente e taxativo. Com cada vez menos energia, confinado a uma cadeira de rodas devido aos problemas de artrite que tinha há décadas e longe da figura alta e esguia de longo pescoço cuja invulgar graciosidade de movimento foi em tempos comparada à de Nijinsky, sabia que o fim estava próximo. Organizou tudo.
Dois meses antes da sua morte anunciou uma estratégia de preservação patrimonial sem precedentes. Um chamado Living Legacy Plan segundo o qual deverão ser angariados junto de mecenas oito milhões de dólares a aplicar em acções metodicamente delineadas: a elaboração de um centro de documentação do seu percurso dos anos 1940 à actualidade; a remontagem de trabalhos seminais; uma última digressão mundial da Merce Cunningham Dance Company ao longo dos próximos dois anos; o encerramento da companhia no regresso a casa, com um plano de reconversão de carreiras; e, por fim, a transferência de todos os bens para o Merce Cunningham Trust, que fica com a gestão do legado do coreógrafo.
"O Living Legacy Plan é abrangente, multifacetado e - como o próprio Merce - pioneiro. Oferece um novo modelo para companhias de dança e outras organizações dirigidas por artistas que estejam em trânsito para uma existência pós-fundador", dizia em Abril, Trevor Carlson, director executivo da Cunningham Dance Foundation.
Agora, sem Merce, há quem diga que vai ser difícil conseguir fundos para um projecto a três anos. Mas, com 3,5 milhões de dólares reunidos, os directamente envolvidos mostram-se (infundadamente?) optimistas. "A companhia já tem perspectivas e está confiante de que vai conseguir os fundos necessários", dizia-nos há três semanas Leah Sandals, assessora de imprensa da fundação.
Segundo Leah, os 14 bailarinos neste momento no activo estudaram com Merce e estão preparados para continuar a ensinar a sua técnica, dando continuidade a uma linguagem de excelência extrema, enraizada numa ideia de movimento puro, seco de qualquer teatralidade ou pesquisa psicológica. É a estes bailarinos que caberá também assegurar a digressão já em curso e que em Novembro chega à Europa, incluindo a apresentação de peças como "Suite for Five" (1956-1958), a mais antiga do reportório da companhia e com figurinos de Robert Rauschenberg (Mónaco, dias 14 e 15 de Abril) e "Squaregame", (1976), uma obra muito raramente vista, estando por remontar quase desde a data da sua criação (Charleroi, Bélgica, 12 a 14 de Novembro).
Foi o plano de Merce, o visionário que deixou tudo o que pôde - textos, registos videográficos de espectáculos, aulas, ensaios e até uma série documental a ser difundida via Internet em que as suas motivações e técnicas são explicadas quer em testemunho directo quer pela voz de especialistas.
Palavras dele: "É de facto um problema como preservar os elementos de uma forma de arte que é realmente evanescente, que é realmente como a água."
Como a água, pois: perante as sucessivas mortes, a conhecida crítica de dança Judith Mackrell encontrou palavras particularmente clarividentes para expressar essa espécie de evaporação em que a dança sistematicamente se dissolve: "É imaginar a situação em que as pinturas de [Robert] Rauschenberg ou [Francis] Bacon fossem descidas das paredes no momento da morte desses artistas; é imaginar a situação em que os romances de Saul Bellow fossem retirados das estantes ou a música de Stravinsky fosse silenciada. Nenhuma outra forma de arte aceitaria por um segundo que a morte [de um autor] implicasse a possível morte da sua obra."
Da criação ao reportório
Poderá parecer um exagero falar em silêncio perante um plano como o deixado por Merce, mas parece bem menos um exagero perante a incerteza que paira sobre o Tanztheater Wuppertal desde a morte de Pina. "A única coisa que sabemos é que vamos manter as datas agendadas", dizia-nos há dias Ursula Popp, porta-voz da companhia, explicando que "nada do resto está decidido".
Depois de semanas em que a companhia teve a sua página na Internet suspensa, nesta vê-se agora um plano de espectáculos até Julho de 2010. Segundo Popp, Pina não deixou qualquer testamento ou vontade escrita no que toca ao seu legado: "É difícil dizer. Ela sempre quis que [a companhia] continuasse, mas não havia qualquer indicação específica."
Entre os bailarinos, o francês Dominique Mercy e a espanhola Nazareth Panadero são os mais velhos, estando em Wuppertal praticamente desde a fundação da companhia, em 1973; conhecedores profundos das metodologias e motivações da coreógrafa, seriam sucessores possíveis. Mas à frente de quê? De uma companhia de autor feita de reportório? Para esse cenário, há o exemplo do Béjart Ballet Lausanne onde nos últimos dois anos tem assumido as rédeas o bailarino francês Gil Roman, que esteve ao lado do seu mestre desde os anos 1960 até ao fim.
"As novas peças serão assinadas por ele, como já aconteceu em Dezembro de 2008, e o reportório será uma mistura entre herança e novas produções", diz-nos uma porta-voz da companhia. No site, contudo, há datas marcadas apenas até Outubro deste ano - o que resta da companhia de um autor que nos últimos tempos era visto como pouco mais do que "kitsch" mas que assinou obras de referência como "Sinfonia para um Homem Só" (1955), o primeiro "ballet" de sempre a utilizar música concreta.
José Sasportes, historiador de dança próximo de Wuppertal, traça um quadro igualmente negro para a companhia de Pina: considera "bastante provável" que não resista à falta de novas produções, base primeira da sua subsistência. "Durante um ano, dois, é natural que o interesse do público se mantenha [em relação às peças antigas], até como homenagem [à figura da coreógrafa], depois, quando não houver 'tournées' [com novas produções], a companhia acaba."
Optimismo zero: na opinião de Sasportes, encerrada a companhia, das cerca de 40 obras assinadas por Bausch ao longo dos últimos 36 anos, o mais expectável é que apenas três subsistam - "Orfeu e Eurídice" e "A Sagração da Primavera", ambas de 1975 e ambas oferecidas à Ópera de Paris, cuja companhia Pina instruiu pessoalmente e que em qualquer altura as poderá ter em cena, e "Kontakthof", uma peça de 1978 que a coreógrafa foi montando com diferentes grupos de intérpretes de diferentes idades em diferentes cidades.
Quase quatro dezenas de peças votadas ao desaparecimento, incluindo verdadeiros marcos da contemporaneidade como "Café Müller", de 1978 e a única peça em que vimos Pina dançar, ou "Palermo, Palermo", de 1989, a primeira da longa série de peças sobre cidades que acabaria por incluir Lisboa, com "Mazurca Fogo", em 1998. Chocante? É o que tem vindo a acontecer desde sempre. Afinal, quantas peças de Marius Petipa chegaram até nós?
À frente do Teatro Mariinsky, o "ballet" imperial de São Petersburgo, entre 1871 e 1903, onde ensinou e dirigiu bailarinos míticos como Nijinsky e Anna Pavlova, Petipa assinou mais de cinquenta produções, trabalhos financiados com milhões de rublos pela corte russa, à época a mais rica da Europa. Se o "ballet" é hoje entendido como uma forma de arte russa é, precisamente, devido a Petipa, que resgatou da decadência a tradição francesa e italiana, elevando-a ao nível de excelência e de fausto que hoje identificamos como o apogeu do clássico. E, contudo, para além de versões de "Giselle", "Coppélia" e "O Lago dos Cisnes", remontagens de obras pré-existentes, dos trabalhos de Petipa o público de hoje identificará pouco mais do que "A Bela Adormecida", de 1890, "O Quebra-Nozes", de 1892, e "Raimunda", de 1898.
Mais: apenas uma excepção entre autores do século XIX - a constituída por August Bournonville, à frente do Royal Danish Ballet entre 1828 e 1879 onde coreografou cerca de 50 peças, das quais à volta de 12 continuam hoje a ser interpretadas pela companhia, uma das mais antigas do mundo.
É ainda José Sasportes quem alerta: "A história da dança sempre se construiu sobre o efémero, sempre se deitou fora o que se fazia. Até ao fim do século XIX o que interessava era o novo. Mas os coreógrafos tinham discípulos, mantinha-se o modo de fazer."
Começar do zero
Discípulos, uma tradição passada de geração em geração: era a lógica anterior à hoje omnipresente estratégia das companhias centradas num autor e seus produtores que, para conter custos, contratam intérpretes apenas no momento das novas criações; é a lógica que começou a morrer com as grandes companhias de reportório, uma figura hoje em extinção perante a carência de apoios. O tipo de carência que levou, entre outras, à dissolução do Frankfurt Ballet, fundado em 1984 por William Forsythe, talvez o mais brilhante dos coreógrafos que continuam a trabalhar e reinventar o vocabulário clássico.
Depois de 20 anos à frente do Frankfurt Ballet, em 2004 Forsythe entendeu que os cortes de financiamentos estatais com que se confrontava comprometiam irremediavelmente a qualidade do seu projecto artístico. Optou por abandonar a companhia, criando outra, a Forsythe Company, com apenas 18 bailarinos, contra os 42 com que o Ballet de Frankfurt começou e os 34 a que estava reduzido na altura da dissolução.
"O que lamento é a falta de continuidade numa estrutura que estava tão bem organizada", disse à época o coreógrafo. Explicando: "Ao longo dos últimos 20 anos, passaram pela companhia 130 bailarinos. O conhecimento foi passado. A quebra disso é devastadora."
Vera Mantero, uma das mais consideradas autoras da chamada Nova Dança Portuguesa, talvez o único movimento artístico português de grande impacto internacional, menciona uma das consequências mais desconcertantes da falta de passagem de conhecimento na sua área: a permanente sensação de se estar a começar do zero (perspectiva dos criadores); isso ou o sentimento cíclico de estar a viver um "déjà vu" tendencialmente mais pobre do que a experiência original, acrescentaríamos nós (perspectiva do público).
Uma simples biblioteca: "Quando fui para Nova Iorque [nos anos 1980], no fim, quando já nem estava a fazer aulas de dança, passava a vida na biblioteca de artes performativas do Lincoln Center, a ver todas aquelas peças fantásticas dos arquivos de vídeo. Não há transmissão de conhecimento, não há ensino sem este tipo de ferramenta. Desaparece tudo o que foi feito sem que as coisas novas fiquem também registadas."
Em Nova Iorque há o Licoln Center e a Public Library, em Paris o arquivo do Centre National de La Danse, com fundos que vão do espólio de Lisa Ullman, colaboradora de Kurt Jooss e Rudolf Laban, a material de coreógrafos de hoje como Jérôme Bel, o Fundo Rodolf Noureyev e o Arquivo Isabelle Ginot, sobre Dominique Bagouet. Em Portugal, o Fórum Dança tem tentado manter um pequeno arquivo videográfico de novas produções, mas que nem sempre consegue actualizar, sobretudo em termos internacionais. De resto, o registo de algumas obras importantes da história da dança contemporânea portuguesa pode estar definitivamente perdido. Como acontece com "Gust", de Francisco Camacho.
Estreada em 1997 e considerada como uma das melhores produções de sempre da dança portuguesa independente, "Gust" acabou por ficar registada apenas num plano geral de qualidade fraca, imagem de "régie" sem pormenores individuais e, em termos logísticos, a ideia de uma reposição, ainda que apenas para filmagens, é complexa. Para além dos custos, há que ter em conta os 12 anos entretanto decorridos: com a morte da bailarina Paula Castro, há dois anos e meio, dos restantes 13 intérpretes originais - os que mais facilmente retomariam o espírito da produção -, dois, os mais velhos, estão retirados, e, das duas bailarinas mais jovens, uma não deu continuidade à carreira que estava então a começar.
Um problema de memória
Quando fazemos as coisas nunca pensamos que elas vão se vão tornar história", diz João Fiadeiro. A Re.Al, a produtora deste coreógrafo, revela algumas das marcas da história de precariedade da dança, em geral, e da dança portuguesa, em particular. Em caixas fechadas há anos, Fiadeiro tem cerca de duas mil cassetes - sobretudo VHS e Hi8 - de ensaios, "workshops", conferências-demonstração e peças ("o próprio impulso de filmar foi pensar: o.k., não sei para que é que isto serve, mas se não existir não fica nada", diz o coreógrafo), só que muito desse material, correspondente a cinco ou seis anos de actividade até 1998, pode estar (talvez irremediavelmente) corrompido: ficou submerso quando o Tejo inundou o Espaço Ginjal, onde a companhia teve sede, e continua guardado desde então. Da mesma forma, ao longo do tempo "desapareceu quase tudo" no que toca a figurinos e cenários, nomeadamente com o encerramento do Espaço A Capital, no Bairro Alto, onde a 29 de Agosto de 2002 a polícia entrou e deu ordem de encerramento imediato alegando falta de condições de segurança do velho edifício onde uma série de estruturas tentaram criar um centro artístico multidisciplinar. Nesse dia, os responsáveis pelo colectivo teatral Artistas Unidos abriram a bagageira de um Honda Civic e enfiaram lá dentro o essencial - dossiers, computadores e impressoras. No fim entraram eles e arrancaram. A Eira, a Re.Al e os outros fizeram o mesmo.
"Se não preservarmos as coisas agora, de facto, tudo se perde. É o problema da não inscrição da história, um problema de memória. Eu acho que as minhas peças têm uma autoria, são do João Fiadeiro, mas pertencem também à comunidade. É um património colectivo. Não pensei muito no que acontece ao meu trabalho quando eu morrer; mais do que o que lhe vai acontecer quando morrer, interessa-me o que lhe acontece enquanto estou vivo. Porque mesmo que eu não morra, esqueço-me. É um património que acho que compete também às escolas, à universidade, manter, preservar. De preferência enquanto estamos vivos."
Em Maio, Francisco Camacho deu um passo nesse sentido, quando teve oportunidade de dirigir uma reposição de uma das suas peças iniciais com alunos do Fórum Dança - "O Rei no Exílio", feito para a Europália, em 1992. Tal como com outras peças - "Com a Morte Me Enganas" (1994), "Dom São Sebastião" (1996)... - havia elementos de cenário e figurinos já perdidos. "Eu próprio tive que a aprender a peça de novo, porque já não me lembrava", explica o coreógrafo, dizendo ser um trabalho que considera não fazer sentido retomar ele próprio como intérprete: "Já não tenho idade, não tenho a energia jovem nem o perfil."
É outro problema que se levanta: a relação umbilical entre a linguagem dos coreógrafos e bailarinos contemporâneos e o seu próprio corpo e história ou a fisicalidade e bagagem referencial dos seus cúmplices. Ao contrário do que acontece com o clássico, com vocábulos específicos, que podem ser treinados todos os dias, passados 100 anos sobre o nascimento da dança moderna, a maioria dos autores de hoje usa nas suas criações um cruzamento extremamente multifacetado e idiossincrático de linguagens, um universo que acaba por ter mais a ver com uma posição na arte e no mundo do que com uma tradição propriamente dita.
Martha Graham, Cunningham e Limón desenvolveram técnicas de movimento. Já não é o caso de Pina, a quem devemos esse extraordinário facto de os bailarinos terem ganho voz, falarem e cantarem em cena. Não é também o caso da maioria dos autores portugueses. José Sasportes compara, aliás, Vera Mantero a Isadora Duncan, de tal forma a sua linguagem é pessoal: "A Vera é ela, aqui. É um caso de destruição natural."
É também, contudo, um caso raro de preservação de material: "Mantenho até todas as cassetes de ensaios, dos processos de trabalho. É impensável, para mim, apagar, gravar por cima. Tenho a noção de que vai ser preciso perceber como se chegou ali, saber porque é que [uma peça] existe assim. Cadernos, notas... Guardo tudo. Até diários de adolescência: têm coisas que são já a formação de ideias para o que queria fazer."
Tudo ali. E, contudo, será material morto se ninguém o retomar. Martha Graham costumava dizer: "Nenhum artista está à frente do seu tempo. Ele é o seu tempo; são os outros que estão atrasados." No caso da dança é fundamental que não nos deixemos atrasar demais. Ela não fica à espera. Foi.