Resistentes da RDA contam a sua história
Duas décadas antes de o Muro de Berlim cair, já havia movimentos na RDA a lutar por uma mudança. Havia punks a fotografar-se em quartos com papéis de parede desbotados, tipografias clandestinas e igrejas onde se ouvia música ocidental. Esta é a nossa revolução, dizem hoje os dissidentes da antiga Alemanha de Leste. Terceira de uma série de seis reportagens. Por Alexandra Prado Coelho, em Berlim
a O cabelo comprido e as músicas esquisitas ainda passavam. Enfim, o rapaz era novo e todos atravessam essas fases. Mas opor-se à intervenção soviética na Checoslováquia? Recusar-se a assinar o documento a dar o seu apoio, como faziam todos os bons comunistas da República Democrática Alemã (RDA)? E, no fim disso tudo, não querer cumprir o serviço militar? O pai de Uwe Dähn tentou convencê-lo por todos os meios. Até que, cansado de discussões, usou o argumento que deveria acabar com todos os argumentos: "Lê Karl Marx, lê O Capital, e depois podemos falar". "Os meus pais eram 150 por cento comunistas, e membros do partido [SED, o partido comunista da RDA], e era normal que eu, como jovem, quisesse reagir contra isso", conta Dähn, um homem grande, de traços largos e um cabelo completamente branco, encaracolado, caindo-lhe sobre os ombros. Mas se houve um momento em que as coisas se tornaram para ele algo mais do que rebelião juvenil talvez tenha sido em 1968, com essas notícias vindas da Checoslováquia de tanques russos a esmagar a abertura política conseguida com a Primavera de Praga. "Não falei com os meus pais durante duas semanas e quando, na escola, me quiseram fazer assinar o tal documento a dizer que concordava, recusei-me. Durante dois ou três meses, o director da escola chamava-me todos os dias, para me tentar fazer assinar."
Apesar disso, fez o que o pai lhe pedia, e pôs-se a estudar marxismo. Mas não resultou como o pai esperava. "Percebi que havia uma grande diferença entre a teoria e a vida real", explica Dähn, sentado num banco no meio de Alexanderplatz, a grande praça de Berlim onde, neste ano de comemorações do vigésimo aniversário da queda do Muro, está uma grande exposição a contar como foi a "Revolução Pacífica 1989/90" e o papel que os dissidentes da RDA tiveram nos anos que a antecederam.
Uwe Dähn, que hoje está ligado ao Arquivo Robert Havemann da Oposição da RDA, foi, ao longo das décadas de 70 e 80, um desses dissidentes - e são as suas memórias desses tempos que agora partilha com grupos que vêm ver a exposição (www.mauerfall09.de ou www.revolution89.de). Nas vitrinas, há velhas máquinas de impressão muito básicas nas quais os grupos de oposição imprimiam os folhetos que depois distribuíam clandestinamente ou reproduziam os livros que o regime proibia na RDA.
Livros e impressoras que entravam com grande dificuldade no Leste graças à ajuda de amigos no Ocidente. O grupo clandestino que Dähn formou com alguns amigos ainda nos anos 70 era um dos que tinham estabelecido essas ligações e conseguiam fazer entrar no país algum material proibido. Mas, no início, os debates ainda eram sobre como melhorar o socialismo e aproximar a prática da teoria. "Para as nossas discussões, precisávamos de livros históricos e organizávamos o transporte do Ocidente através de grupos de esquerda não estalinistas em Berlim Ocidental."
O aniversário e o vinho
Ninguém sabia o nome de ninguém, tudo funcionava por códigos, era preciso iludir a Stasi, a polícia secreta da RDA, que tinha olhos, ouvidos e informadores por todo o lado. "Ao telefone, dizíamos 'vem ao meu aniversário', e isso queria dizer, por exemplo, que nos encontrávamos na segunda-feira. Depois dizíamos 'traz três garrafas de vinho', e isso significava que nos encontrávamos não às três horas mas às três mais duas, ou seja, às cinco. Tínhamos dez lugares diferentes para nos encontrarmos em Berlim Leste e outro código para dizer em qual deles seria."
Por estranho que pareça, durante dois anos, tudo correu bem. "Até que cometemos um erro: convidámos uma pessoa para o nosso grupo, porque queríamos tentar alargá-lo, e ele era membro da Stasi."
A partir daí, o jovem que na universidade fazia perguntas incómodas passou a ser oficialmente um problema para o regime. "E, um dia, em 1977, acabou." A Stasi chamou-o para informá-lo de que podia esquecer os planos para uma carreira científica. Se queria ganhar dinheiro, tinha de ser numa fábrica. Foi isso que Dähn fez, ao mesmo tempo que se juntou a um grupo de teatro e continuou com as actividades clandestinas.
Teve sorte, apesar de tudo. Quando, depois da queda do Muro, pôde consultar os seus arquivos na Stasi, soube que tinha estado sempre sob vigilância, mas que a polícia secreta decidira não prender os líderes do grupo porque através deles podia chegar a outros, que iam sendo atraídos pela oposição - e era nestes, entre os quais filhos de importantes responsáveis do partido, que a Stasi concentrava os seus esforços. "Infelizmente, conseguiram convencer alguns", lamenta Dähn.
No início, o movimento de resistência na RDA era sobretudo pacifista e ecologista, e tinha o apoio das igrejas protestantes, que abriam as suas portas aos diferentes grupos e permitiam que se realizassem concertos com música ocidental ou outras manifestações culturais que o regime considerava "degeneradas".
A revolta possível
Por trás das imagens dos sorridentes jovens pioneiros do partido havia outras imagens da juventude da RDA que naquele tempo ninguém via - hoje podem ser vistas numa exposição na Academia das Artes, junto às Portas de Brandeburgo (Kunst und Revolte '89, até 11 de Outubro). São punks, de cabelo em crista e alfinetes na roupa, fotografados pelos amigos à noite em ruas escondidas, ou nos seus quartos, com palavras de ordem pintadas nas paredes por cima do papel desbotado. Era a revolta possível do lado de lá do Muro.
Dähn tira do bolso um postal sobre a exposição e lê a lista das exigências que tinham: "Poder ler o que quero ler, dizer o que quero dizer, escrever o que quero escrever, ouvir a música que quero ouvir, poder encontrar-me com os seus amigos de outros países." Andar à boleia pelos países do antigo Bloco de Leste, por exemplo, era uma forma de resistência - este foi um movimento que atingiu o auge em meados dos anos 70, tornando-se uma espécie de Flower Power da RDA.
Nos anos 80, tudo acelerou. As igrejas enchiam-se cada vez mais, os sermões misturavam-se com concertos e discussões críticas sobre a RDA. Dähn tinha chegado ao fim de uma fase. "Cansei-me das discussões teóricas sobre o verdadeiro socialismo, o capitalismo de Estado e tudo isso. Estava interessado em seguir o meu caminho como homem livre." Juntou-se à Biblioteca Ambiental, que, a partir de 1986, passou a funcionar numa igreja de Berlim Leste, tornando-se (no meio das rusgas da Stasi) um dos locais onde as pessoas iam procurar informação e onde se imprimiam algumas das publicações clandestinas de maior circulação no país.
No final da década de 80, ter amigos no Ocidente era já, para quem vivia em Berlim Leste, uma garantia de segurança. "Se fôssemos presos, havia a possibilidade de sermos mandados para o Ocidente", explica. E a Stasi chegou a fazer-lhe essa proposta. "Mas eu pensei: 'Se eles querem que eu vá, agora é que quero ficar'." Percebia que a saída de um número cada vez maior de dissidentes - um terço dos seus amigos partiu durante os anos 80 - enfraquecia a resistência.
Mas, ao mesmo tempo, os grupos no interior do país estavam cada vez mais organizados e exerciam uma pressão crescente sobre o SED. Em Fevereiro de 1988, a revista da Alemanha Ocidental Der Spiegel publicava uma história de capa intitulada "Rebelião por trás do Muro". Um ano e meio depois, o Muro caía.
"Nós somos o povo!"
A exposição na Alexanderplatz conta a história desses dias em que as manifestações se foram tornando cada vez maiores, imensas, esmagadoras - 70 mil pessoas em Leipzig a 9 de Outubro de 1989 aos gritos de "Nós somos o povo!", e a decisão, surpreendente, de as forças policiais não reagirem. O sinal era claro, o regime não resistiria muito mais.
Dähn tem atrás de si as fotografias de toda essa história: os resistentes em reuniões clandestinas nas igrejas, ou a imprimirem folhetos, um punk sentado ao lado de um polícia no metro, milhares de pessoas a saírem pela fronteira entretanto aberta entre a Hungria e a Áustria (a partir de Maio de 1989). "Mesmo que essa exposição seja um recontar da história, ela é também um acto político no contexto actual: pretende mostrar que estas pessoas conseguiram, foram os cidadãos da antiga Alemanha de Leste que derrubaram o sistema, e isso é uma coisa que tem de ser mostrada, relembrada".
Só lamenta uma coisa. Que o antigo SED se tenha reinventado como PDS e hoje faça parte do governo da cidade de Berlim. "Não houve uma limpeza ideológica dentro do partido", avisa. "Mas acho que se ele não existisse tinha de ser inventado. Senão onde se juntaria todo o ranço reaccionário da antiga RDA?"
Amanhã: A nova arquitectura de Berlim