Orgulhosamente únicos
Estamos cada vez menos sozinhos no mundo, mas não queremos ser apenas mais um. Queremos um personal trainer só para nós, um fashion adviser só para nós, um coach só para nós. "Vivemos uma espécie de neonarcisismo." Este texto foi publicado a 18 de Dezembro de 2007
a Se quisermos mesmo, muito, mesmo muito arranjar um bode expiatório, atiremos tudo para cima do neonarcisismo - ele tem bom corpo para aguentar.É disso que se fala: do corpo, e este corpo é um corpo feito de corpo e mente. Estamos cada vez menos sozinhos no mundo e cada vez mais queremos sentir-nos únicos. Queremos um personal trainer (PT) só para nós, um personal fashion adviser só para nós, um coach só para nós.
Nas linhas que se seguem temos isto tudo - e também uma socióloga só para nós.
Eles que nos perdoem, mas eles, os PT, já são mais corriqueiros. Ginásio que se preze tem uma carteira deles e, cada vez mais, atleta que se preze também tem um. Ana Luísa Pereira, professora auxiliar de Sociologia do Desporto na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, confirma que o fenómeno chegou e criou raízes: "O grande boom em Portugal aconteceu na década de 90. E eu acho que são cada vez mais procurados."
Os personal fashion advisers são em menor número, mas também parecem estar para ficar - há até centros comerciais que oferecem os seus serviços. Mas a grande coqueluche parece ser os coachs. Para quem não sabe (haverá mesmo quem não saiba?), o coaching é "uma forma de desenvolvimento pessoal que fornece ao cliente ajuda na procura interior e pretende ajudá-lo a ajustar o que tem dentro de si àquilo que o rodeia", define Alexandra Barosa Pereira, coach e autora do livro Coaching em Portugal - Teoria e Prática.
Vamos lá pôr os pontos nos i, que esta definição não é daquelas que se apanha à primeira. Quem procura um coach tem de cumprir um requisito básico: "ter um objectivo", explica ao P2 Alexandra Barosa Pereira. E o coach, por seu turno, tem de obedecer a um princípio básico: "O especialista é o cliente, porque é ele que se conhece melhor a si próprio." Salvaguardadas estas premissas, vamos ao trabalho.
De volta a Alexandra Barosa Pereira: "O coaching não ensina nada, não transmite conhecimento. Ajuda apenas o indivíduo na sua autodescoberta e a construir o seu projecto futuro. Não resolve os problemas todos, mas resolve seguramente alguns."
Pode resumir-se tudo a isto: quem procura um coach não deve esperar que ele lhe arranje soluções. "Nós é que temos de arranjar soluções para nós próprios", diz Alexandra, que aprendeu isto com a experiência de trabalho no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Esteve lá seis anos e meio e a dada altura decidiu despedir-se. "Pensei assim: 'Sou dona da minha vida e sou eu que vou decidir o que fazer dela.'"
Licenciada em Sociologia, com um mestrado em Psicologia do Desenvolvimento Profissional na mão, Alexandra Barosa Pereira agora ganha a vida a ajudar - "ajudar, não ensinar" - pessoas a sentirem-se mais realizadas consigo próprias. Ela investe em "coachings de liderança, porque é com os líderes" que quer trabalhar. Os seus serviços são sobretudo requisitados por empresas. Há uns meses, começou a trabalhar com a Mercer, em Lisboa.
Nisto do coaching o céu é praticamente o limite. "Há coaching de carreira, coaching espiritual, mais em voga nos EUA, que dá respostas para o dia-a-dia familiar..." Será que eles não resolvem mesmo todos os nossos problemas?
"Nós somos apenas o guia do nosso cliente", esclarece a coach. E à pergunta sobre se qualquer pessoa pode exercer a actividade, responde "nim". "É uma actividade que não está regulamentada, nem a nível nacional nem internacional." Há empresas que oferecem formação para coachs de apenas uma semana. A partir daí, qualquer um pode ser coach e cobrar por uma hora "400 ou 500 euros". Em média, explica ainda Alexandra Barosa Pereira, o processo de coaching exige dez sessões.
"Na investigação de que resultou o meu livro, fiz várias buscas na Internet para tentar perceber a dimensão da actividade em Portugal. Pesquisei em 440 sites e encontrei 49 contactos de coachs. Enviei a todos questionários e recebi apenas 34 respostas", conta. É claro que o número peca por defeito. "Agora praticamente todas as empresas de consultoria oferecem o serviço, porque viram que era uma área de negócio espectacular", reforça Alexandra Barosa Pereira.
Há coisas que faz um coach que não somos capazes de fazer sozinhos? Ana Luísa Pereira acha que a questão é outra. Esta: "Muitas vezes as pessoas sentem necessidade de um estímulo exterior para fazer uma determinada actividade. Precisam de alguém que os impulsione."
"Horas a suar juntos"
O mesmo também é válido para quem contrata os serviços de um PT. Diz quem sabe - no caso, Pedro Cruz, 28 anos, gerente do Holmes Place Arrábida, em Gaia. "Quem procura um PT pode fazê-lo por várias razões: porque tem a auto-estima em baixo, falta de motivação para o exercício físico a solo ou certas patologias que obrigam ao exercício supervisionado." É precisamente este o caso de António Pires de Lima. "Estou cá não para ficar com um corpo de body builder, mas sim para manter a forma. Precisava de exercício acompanhado por causa de problemas na coluna. Fazia ginástica regularmente há dez anos, julgava que estava a fazer bem a mim próprio, mas tinha menos benefícios do que vantagens", conta, quase ao mesmo tempo que Pedro Cruz lhe pergunta se pode aumentar a velocidade do tapete onde o ex-deputado do CDS-PP e actual presidente da Unicer está a correr.
Depois do tapete, Pires de Lima passa à musculação. Pedro, equipamento Susana Gateiro vermelho e preto, segue-lhe todos os passos. (Um, dois três, quatro, cinco... - quantos PT estão a esta hora, 20h15, no Holmes Place Arrábida?)
Pires de Lima solta uns esgares de esforço, Pedro segura-lhe nas costas e incentiva-o: "Descansar. Ombrinhos para trás. Isso, espectacular."
"Ele acompanha-me sempre. Pode entrar aqui a miúda mais gira que ele nem se mexe", provoca António Pires de Lima. Pedro ri-se e explica que chegou a hora de "trabalhar os abdominais" em cima de uma bola vermelha. Os treinos são pagos à hora - "47 euros, acho, mais a mensalidade do ginásio" -, mas Pires de Lima dá o dinheiro por bem empregado (Pedro há-de confessar depois que a actividade é "financeiramente compensadora"). Além de todas as outras, tem ainda mais esta vantagem: "Falta-se muito menos ao ginásio porque há um compromisso prévio com o PT", explica. Pedro, licenciado em Desporto e Educação Física, concorda: "O treino acompanhado mostra resultados eficazes, se feito com regularidade, claro - o ideal é que seja três vezes por semana - e consegue motivar muito mais as pessoas."
Pires de Lima converteu-se aos PT há um ano e diz ainda que aquele convívio acaba por gerar "cumplicidades". "São muitas horas a suar juntos."
"Há cada vez mais falta de afectividade e de redes sociais. O PT faz por estabelecer essa relação de amizade para que se crie quase uma dependência", analisa Ana Luísa Pereira. Em alguns casos, diz ainda, o conceito PT terá vingado por razões ligadas "ao estatuto social". "Ainda vivemos muito na base das aparências. É importante mostrar que se tem um PT, que se tem capacidade para ter um PT. O pensamento é este: 'Se preciso de ter uma imagem, tenho de investir.' E o corpo aparece como sede de investimento."
Mais uma achega: "Vivemos uma espécie de neonarcisismo. Eu não estou a ver-me só ao espelho, estou a ver o que os outros estão a ver. Vivemos numa sociedade da imagem", acrescenta a professora.
É mesmo isso: a imagem manda cada vez mais em nós. E até já se dão prendas de imagem. Foi o que fez o namorado de Ana Marques, advogada de 27 anos, quando percebeu que o centro comercial Dolce Vita, no Porto, oferecia o serviço de personal fashion adviser.
A roupa
"O meu namorado é uma pessoa muito à frente. Sabe que eu gosto deste tipo de coisas, deste tipo de mimos femininos", conta, minutos depois de ter conhecido Jocelina Ferreira, que a há-de aconselhar nas compras nas próximas duas horas. Jocelina é designer de moda e faz fashion adviser em part-time. "É muito enriquecedor para a minha profissão. Chego aqui e pego em diferentes tipos de pessoas. Tento ajudá-las a escolher a roupa que não seja aquela que toda a gente veste e dar ideias. Às vezes, basta sobrepor uma peça para dar um toque diferente a uma roupa normal. E isso é possível fazer a preços acessíveis."
Apesar de a profissão exigir um determinado dress code, Ana faz questão de dizer que não tem "muitos formalismos". Entra na Massimo Dutti e vai direitinha aos vestidos. Pega num preto rendado, num vermelho e noutras peças e enfia-se no provador.
"Com este fico assim com ar de grávida, não é?", pergunta a Jocelina. "Mas olhe que se usa assim... E já pensou pôr-lhe umas meias de outra cor, para dar realce?" Meia hora e não sei quantas provas depois, Ana sai da loja com dois vestidos - o preto e o vermelho, voilà! - e com dois casacos cinzentos.
A Mango é na porta ao lado. Ana experimenta algumas, peças mas não resiste apenas a um bolero - mínimo, mínimo - castanho. "Não hesite, é um miminho", impulsiona Jocelina. "Precisar até nem preciso de nada, tenho roupa que chegue. Se estivesse sozinha, acho que não o compraria, mas a Jocelina convenceu-me."
Ela está lá para isso mesmo. "Cada vez mais as pessoas procuram este serviço. Valorizam muito a imagem, querem um caminho que as distinga dos outros. A roupa faz-nos pertencer a um determinado grupo, não nos vestimos para nós, mas também para os outros."
E isto dá novo link para Ana Luísa Pereira: "Também podemos invocar para esta análise os conceitos de campo social e campo simbólico de Pierre Bourdieu. As pessoas pensam assim: 'Se faço parte deste campo, tenho de estar de acordo com este campo.' É por isso que investem cada vez mais em si próprias."
Isto acaba por ter um efeito bola de neve, explica. É também por este motivo que "a tendência de personalização de serviços está a aumentar". "Cada vez mais, as pessoas querem serviços em que possam sentir-se únicas, sentir que quem está a prestar-lhes o serviço está a tratar delas e de mais ninguém. Pagam, em alguns casos bem, mas não são apenas mais um, não estão no meio de toda a gente."
Não era bem assim que dizia o outro, mas para o caso até serve: sentem-se orgulhosamente únicos.