Na casa do Gerês, em família

Apareceu nos jornais por ter ganho prémios. Parecia que vinha a sair da natureza, meia suspensa no ar. Quem encomenda uma casa assim?
E como é estar dentro dela? O P2 passou o sábado com a família Ferreira no Gerês. Este texto foi publicado a 8 de Fevereiro de 2008

a Ainda bem que o jipe deles vai à frente. Nunca daríamos com a casa sozinhos - e isto é música para os ouvidos de Eduardo e Maria Celeste. Sobretudo de Eduardo. Que ninguém saiba, que ninguém venha, ninguém-ninguém.Mas primeiro houve um prémio internacional. Depois outro. Notícias nos jornais. Nas revistas. Esse santuário design que é a Wallpaper. Fotógrafos. Gente a querer fazer filmes. O P2 ao telefone.
E Eduardo e Maria Celeste que, acima de tudo, querem sossego.
Por isso, este 2 de Fevereiro demorou a acontecer e daqui a pouco ficará acordado que:
1) Eles os dois não podem ser reconhecidos nas fotografias.
2) Tudo o que diremos sobre a localização é que isto se passa no Gerês, zona da Caniçada, tão perto do Cávado que havemos de meter os pés na água.
E entretanto aqui vamos a descer, tentando acompanhar o rally de Eduardo numa daquelas estradas aos "ssss" onde se respira de alívio por ninguém vir em sentido contrário.
Pior seria se chovesse como choveu ontem e vai chover amanhã. Calhou a meio esta Primavera de sábado - sábado porque Eduardo e Maria Celeste só estão no Gerês ao fim-de-semana e a ideia era a casa com eles lá dentro.
Sem prémios, talvez a casa não tivesse aparecido no meio das notícias, mas ao aparecer parecia sair da natureza, com metade de fora, suspensa no abismo.
Então quem é que encomenda uma casa assim? Como é que se habita nela?
E para a história ficar completa, vêm aí os arquitectos Graça Correia e Roberto Ragazzi, marido e mulher, e amigos dos donos da casa, uma amizade de que a arquitectura tem sido extensão natural. Não começa nesta casa e não vai acabar nela.
Curvas de estimação
Agora Eduardo enfia o jipe por um caminho a pique onde só cabe um carro, depois de avisar que há duas curvas mesmo difíceis. Na primeira, um carro comprido fica com o rabo de fora. Na segunda, um carro baixo fica a patinar. O carro do P2 é comprido e baixo, e todo o mérito vai para o repórter fotográfico, a quem Eduardo tira o chapéu. O acesso à casa não tem muros, cercas ou portões. Estas curvas constituem uma barreira natural. São de estimação. E haviam de as ver, contam Eduardo e Maria Celeste, quando o caminho era de terra, ainda mais estreito e aqui andavam camiões com toneladas de betão, madeira e vidro. Um pensamento para a mão-de-obra, certamente homens do Dakar.
Os carros deixam-se um pouco acima da casa, numa plataforma de terreno. E descendo até à porta abre-se um esplendor de bosque e água com cheiro fundo a terra. Eduardo e Maria Celeste só têm pena que seja Inverno, porque na Primavera, no Verão ou no Outono, acham eles, é que esta paisagem de tantas árvores caducas fica soberba.
- É dos lugares mais bonitos do Gerês, ainda tem vinha - diz Eduardo, apontando as videiras mais acima na colina. Em volta da casa há carvalhos, plátanos, oliveiras, choupos, amieiros, até ao rio. E o Cávado, aqui, brilha num azul-verde cristalino, quieto como se não corresse.
Eduardo faz um arco com os braços.
- Temos sol o dia todo - acompanhando a casa, de uma ponta a outra.
Como há janelas-ecrã nos dois lados da casa mas também na face frontal, a luz vem de vários pontos quando se entra - e com ela árvores e rio.
A grande porta dá para a sala de estar, a meio da casa. Para trás, em direcção à colina, sucedem-se casa de banho, um quarto e outro quarto. Para a frente, em direcção ao rio, está a cozinha-sala de jantar suspensa.
- É o meu laboratório - diz Maria Celeste, a quem toda a gente chama Micé, apoiada na depurada banca de alumínio.
- Como eles fazem muito esqui, tomamos o pequeno-almoço pelas 11 e almoçamos às três, quando muita coisa já está fechada. Então tenho um talho de onde gasto há 20 e tal anos, do sr. Alberto, que tem uma carne barrosã, me mata um porquinho, tem os cabritos, os frangos de Montalegre...
Ficam os leitores mais situados. Primeiro, os "eles" que fazem esqui aquático são Eduardo e João - o filho de 20 anos, que também veio no jipe e agora anda lá para baixo, no mato. Depois, se nesta casa não há um objecto pessoal à vista e tudo, fora e dentro, é de um sofisticado minimalismo, a família gosta de comer bem e além do minimal. Micé, como se verá ao almoço, é um pisco, mas os outros atacam grandes nacos de carne, e ela cozinha cabidelas como boa transmontana crescida no meio rural.
A janela-ecrã da cozinha abre-se num suave deslizar - alumínio importado, muito fino e firme - e são dois pés e meio de terraço até ao abismo. Nas primeiras fotografias em que a casa apareceu ainda não se viam estas barras de metal que visam impedir uma queda. Foi uma imposição posterior, nas inspecções, que Micé e Eduardo aceitaram contrafeitos.
Mas não é preciso abrir a janela para refrescar o ar.
- A D. Apolónia vem cá todos os dias abrir as janelas - explica Micé.
Esta espécie de caseira também deixa ovos frescos no frigorífico e jarros brancos na jarra azul da sala de estar. Recebe um dos dois salários gastos na manutenção da casa. O outro é o do sr. António, que trata da horta, planta árvores, tira as folhas dos filtros, limpa os caminhos e outras tarefas diárias do Gerês, onde, quando chove - e chove muito - a natureza pode ser brutal.
Assim, quando a família chega, sexta à noite, ou sábado de manhã, tudo está como numa casa muito cuidada todos os dias. E para que também já esteja aquecida basta accionar por telemóvel o pavimento radiante.
20 anos à procura
Graça Correia e Roberto Ragazzi acabam de chegar com a crítica de arquitectura do PÚBLICO, e rapidamente se refaz o génesis, ali mesmo.
Graça - O Eduardo telefonou-me a dizer: "Graça, encontrei o sítio dos meus sonhos!"
Eduardo - O meu sonho sempre foi uma casa num sítio sem nada e que tivesse um ribeiro. E foram 20 anos à procura e a ter desilusões.
Ou porque não se podia comprar o terreno ou porque não se podia construir nele. Quando este lugar apareceu, tinha tudo.
Eduardo - Tem um ribeiro, tem o rio, tem um poço, tem carvalhos, tem oliveiras!...
Se quanto a visitas, prefere que não, depois é um anfitrião mais do que cordial, emotivo.
Eduardo - Sabe o que é entrar na água desde casa?
Micé - Porque, atenção, às dez da noite este senhor faz esqui e depois vai direito aos hospitais com pernas partidas.
Eduardo - Pernas partidas, não, o menisco.
Foi isto há quatro anos, quando Eduardo e João se meteram no Cávado à noite, o pai nos esquis, o filho a conduzir o barco e um enganoso reflexo lunar fez com que João entrasse na enseada errada e Eduardo fosse projectado contra as margens.
Eduardo - Encontrei logo a rocha e levantei voo! Aterrei com uma sorte dos diabos entre dois calhaus. Ia pr'aí a 40 à hora.
Micé - Ficou todo rasgado.
Eduardo - Lembro-me de estar com a boca cheia de areia e sentir uma dor horrorosa na perna quando entrei na água, aos berros: "O barco? O barco?" E o João ao longe: "Está bom! Está bom!"
Micé - Depois às quatro da manhã estávamos no hospital de Vieira do Minho.
Logo que ficou bom, Eduardo voltou à água. Só já não se arrisca de noite. De certa forma, a casa do Gerês não existiria sem o esqui, hobby que se transformou em ocupação principal quando este gerente bancário de 58 anos se aposentou.
Micé, 60 anos, continua a tempo inteiro no colégio que fundou no Porto, o Externato S. João de Brito, onde Graça Correia teve uma filha e para o qual arquitectou novos espaços - daí vem a amizade - e onde também trabalha como educadora Ana Manuel, a filha de Eduardo e Micé.
Ora nem de propósito.
Sem grades
A grande porta abre-se e entram Ana, marido e filhos, Guilherme, de três anos, e Manuel, de seis meses, o único elemento da família que tenta comer a misturadora do lava-loiças design e muda a fralda nos sofás italianos de corda-de-navio e espuma-de-fatos-de-surf.
Portanto, assim, de repente, ficam nove adultos e duas crianças num espaço que não chega a 100 m2, todo em comprimento.
Bom momento para uma subdivisão do grupo, com Micé a sair para o terraço do lado nascente, onde a mesa e cadeiras de exterior ainda estão cobertas por um impermeável. Tal como nas restantes janelas da casa, não há qualquer grade ou portada exterior.
- Os vidros são daqueles que não se partem e o alarme está ligado a telemóveis - ressalva Micé.
Mas como isso não resolve o problema da luz que entra de manhã, estão a ser feitas umas coberturas em harmónio, que quando fechadas mal se vêem.
É um dos vários pormenores sempre em curso. Tal como a sapateira que Micé quer que Graça conceba, de modo a toda a gente se poder descalçar quando entra. Porque nesta casa, a família anda de meias antiderrapantes.
A relação de Micé com o Gerês é pragmática. Natureza, sim, mas confortável. E nem pensar em viver sempre aqui.
- O meu filho adora o esqui, o meu marido adora o esqui, o meu neto já adora isto... Mas eu também relaxo num centro comercial.
Agora, com o cão Tintin - que realmente é um Milou -, Eduardo, João e o pequeno Guilherme, as três gerações masculinas da casa, vão em carreirinho até ao rio, enquanto Ana está a mudar o bebé e Micé mostra a casa com Graça.
Na sala, a chaise longue verde-lima ao longo da lareira - parte do tal conjunto italiano corda-de-navio-fato-de-surf - é o lugar de estar de Micé, e o tapete cinza com desenhos negros foi desenhado por Álvaro Siza. Calhou ter a medida que precisavam.
Todas as divisões têm tecto e paredes em bétula, incluindo a casa de banho, primeira divisão logo a seguir à sala para permitir uma vista ampla de rio. Eduardo queria tomar banhos a olhar para o Cávado e Micé tinha uma banheira que foi um coup de foudre.
Graça - Uma vez fomos ver um lavatório para o colégio a uma loja da Foz e estava lá esta banheira. A Micé comprou-a antes de haver casa.
Micé - Ainda nem sabíamos se a íamos construir.
Para que também se pudesse tomar duche, Graça desenhou uma calha em espiral por onde corre uma leve cortina branca - importada, tal como a cortina finlandesa da janela, que tem finas barras de alumínio.
Graça - Reflectem o calor.
Vê-se de dentro para fora, mas muito tenuamente de fora para dentro, o que é relevante, tendo em conta que a janela ocupa toda a parede e a banheira está encostada à janela.
A opção por painéis de bétula em todas as superfícies interiores menos chão e janelas, diz a arquitecta, tem a ver com luminosidade, conforto e manutenção - se um dos painéis se danifica, muda-se, e não é preciso pintar.
No corredor há um armário e o fundo da casa é um grande arrumo: cadeiras de praia, almofadas, uma bóia, um Monopólio, desumidificador, cestos.
Os dois quartos, onde não há qualquer vestígio pessoal visível - nem um livro -, são simétricos: armários de parede, uma cama de casal com uma cama extra por baixo desenhadas por Graça, uma mesa-de-cabeceira desenhada por Siza. E bomboneiras, porque Micé está sempre a tirar da manga chocolates que distribui por toda a gente.
Esta transmontana, conta Graça, cuida do que comem os seus próximos ao ponto de ir levar uns filetes de pescada à arquitecta-amiga num cestinho, quando suspeita que ela não se anda a alimentar bem.
Tal como a casa de banho, os quartos dão para nascente, onde se chegou a pensar fazer uma piscina.
- Mas temos uma praia aqui - diz Micé - E, com os miúdos, foi uma preocupação que me saiu. Agora digo que ali é a minha eira.
Terra batida, folhas caídas, uma pequena laje sob as cadeiras de exterior, como Eduardo pediu.
- Procurámos não fazer coisas artificiais como um relvado, para que esta vegetação voltasse a preencher os espaços - explica Graça.
A esta hora, já perto das três, a sala está cheia de sol, de tanta janela.
- É uma opção radical, porque estes senhores são capazes de se levantar às seis para ver o nascer do sol - diz a arquitecta.
Micé deita-se na chaise longue e anuncia que vai começar a ouvir as rãs.
Na cozinha, o neto Manuel está refastelado ao colo do pai, enquanto a mãe lhe dá colheradas de papa. Guilherme volta de umas aventuras com o tio João, faz festas na cabeça do mano e anuncia:
- Fomos ver um cavalinho.
Praia e horta
Ana, o marido e os filhos dormem na ruína ao lado da casa, que Graça transformou numa suite, usando também betão e bétula. É isto que Micé agora vai mostrar, e logo depois o anexo onde se guarda o material de esqui e há um duche, para os esquiadores não enlamearem a casa-mãe.
Daqui, desce-se até a um terraço natural com uma mesa e bancos corridos feitos de grandes lajes de um lagar de azeite que Eduardo comprou só para usar a pedra antiga.
Saltando entre tufos e troncos, continua-se até à praia, uma pequena orla de água transparente e fundo cor de areia branca, dentro do terreno da casa, portanto só usada pela família.
Por entre as árvores, a casa vai aparecendo como um óculo rectangular, à espreita.
- Durante 20 anos viemos para casas alugadas no Gerês - conta Micé.
Até que o senhorio habitual, o sr. Chico da Ponte, encontrou este lugar.
Eduardo conta o resto da história comparando-a com o momento em que conheceu Micé. Dois segundos antes não se tinham encontrado, tal como dois segundos antes, ia ele de jipe com o sr. Chico, não teria encontrado o homem que lhes falou neste terreno.
- O terreno era da Igreja e estava abandonado há 15 anos. Mas de repente tinha havido um interessado que ia dar um sinal.
Eduardo veio ver. Era Agosto.
- As silvas estavam tão altas que nem tínhamos uma percepção do relevo. Cobriam metade das árvores. Era uma selva impenetrável. E eu fiquei apaixonado.
Diz isto parado no meio dos carvalhos. Micé escuta-o abraçada à filha, e sorriem as duas, com o sol na cara.
O próximo projecto de Micé é que Graça lhe faça uma casa de toda a semana - mas no Porto.
Eduardo - Quem gosta disto sou eu! Estas duas meninas fazem o favor de cá vir. Para vir para o Gerês tenho que andar a semana toda...
Micé - A fazer as vontades...
Eduardo - Pois.
Micé - Por este senhor estávamos aqui 24 horas e não conhecíamos ninguém.
Mais à frente, o sr. António já semeou laranjeiras, limoeiros, ameixoeiras, pinheiros, carvalhos. Há uma fonte de água boa e agriões a crescer por trás, a pedido de Micé.
- E há esquilos! - grita ela, já a trepar a colina.
- Por cada metro quadrado, há 40 plantas que eu nunca tinha visto - acrescenta Eduardo - E venho para o Gerês há 20 anos.
Serões em natureza
Como já passa das três, os donos da casa telefonam para um restaurante onde às vezes vão. Ainda se arranjam uns bifes e umas costeletas e daí a nada o grupo está à lareira, à espera. Depois, Micé almoça uma omeleta com salada, não bebe, e faz com que todos comam e bebam.
No regresso, depois do poente, a casa aparece iluminada no meio do bosque escuro como se tivesse saído do filme Playtime, de Jacques Tati. A esta hora, lá dentro, não se vê nada pela grande janela-ecrã da cozinha a não ser negro. À noite pensa-se mais que por baixo deste chão não há chão?
Micé - Não. Num prédio de cinco ou seis andares não se investe tanto em alicerces como aqui.
Eduardo - Estou aqui como estou no Porto, porque nós assistimos a tudo. Não imagina o que está aqui de aço e de cimento. Nós começámos a ver a casa só ao fim de meio ano!
Micé - Não há ventos, não há infiltrações, não entra uma corrente de ar...
Também não há televisão, nem telefone, nem Internet. Que fazem ao serão?
- Às vezes estamos aqui a jogar Monopólio até às duas da manhã - conta Ana, com o bebé ao colo - Nunca é uma seca.
- O Eduardo traz livros, eu trago o meu tijolo para as notícias - continua Micé.
- Há dois autores com que ando sempre às voltas, o Graham Green e o John Le Carré - concretiza Eduardo - Adoro o Cardoso Pires. E banda desenhada. A conversa salta para há quanto tempo não vão ao cinema, e quando iam a sessões triplas e depois saíam às três da manhã, com Micé grávida, e comiam caldo verde e feijoada no Big Ben.
- Homossexuais, prostitutas... - descreve ela alegremente.
De resto, podem não querer muitas visitas, mas dão-se com a gente do lugar. E isso é melhor que muros e cercas.
- Há quem se preocupa com o que é nosso. Também nos preocupámos, quando estávamos a fazer a casa, em não trazer de outro lado o que houvesse na região. E agora vem um trazer salsa, outro um franguinho...

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