FICÇÃO
A vida modern
Cantata em tom maior
A cadência melódica e o tom visionário sublinham o ajuste de contas. Eduardo Pitta
Beloved
Toni Morrison
(Trad. Maia João Freire de Andrade)
Dom Quixote
mmmmm
Há três anos, um inquérito a escritores, críticos e editores, patrocinado pelo "New York Times", com enfoque em obras de Philip Roth, Cormac McCarthy, John Updike, Don DeLillo, Thomas Pynchon, etc., deu o primeiro lugar a "Beloved" (1987), de Toni Morrison, considerando-o o melhor romance dos últimos 25 anos. A decisão, controversa, não impediu "Beloved" de continuar a ser citado nos primeiros lugares de todas as listas que se fizeram dos dois lados do Atlântico. Morrison, nascida em 1931, professora na Universidade de Princeton, recebeu todos os prémios que há para receber, incluindo (em 1993) o Nobel da Literatura. Foi a primeira escritora negra a conseguir a proeza. Quando comparada com Virginia Woolf, ficou famosa a resposta que deu: "Prefiro identificar-me como uma escritora mulher e negra mesmo." Na ocasião aproveitou para lembrar que à outra (a Virginia) ninguém suscitaria questões de género.
No espaço de dois meses, é a segunda obra de Morrison a chegar às livrarias portuguesas, embora "Beloved" estivesse traduzido no nosso país desde 1989. Mas Maria João Freire de Andrade fez agora uma tradução nova, devidamente anotada nos detalhes da guerra civil americana. "Beloved" abre a trilogia da condição negra, que inclui "Jazz" (1992) e "Paradise" (1999), que não têm o fôlego do primeiro: "Durante, antes e depois da Guerra, vira negros tão atordoados, ou famintos, ou cansados [...] que, como ele, se tinham escondido em grutas e lutado com mochos por comida; que, como ele, a roubavam dos porcos [...] Vira uma negra atrasada mental ser enforcada por roubar patos que acreditava serem os seus filhos." Convém ter estômago forte, porque a citação é benigna.
Dependendo do ângulo de observação, e pondo de lado a vastíssima bibliografia histórica, a Guerra da Secessão americana (1861-65) cristalizou em dois romances escritos com meio século de intervalo: "E Tudo o Vento Levou" (1936), de Margaret Mitchell, e "Beloved" (1987), de Toni Morrison. Ambos receberam o Pulitzer. Mitchell dá o ponto de vista dos sulistas, celebrizado no filme de Victor Fleming, ainda hoje um clássico. Morrison não teve a mesma sorte com Jonathan Demme, incapaz de captar o lado "poltergeist" da história: "O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno infantil. As mulheres da casa sabiam-no e as crianças também. Durante anos cada um aguentara o rancor à sua maneira..." A intriga baseia-se em factos reais e a escrita de Morrison flui à velocidade dos leitores omnívoros.
Estamos em 1873, oito anos passados sobre o fim da guerra. A decisão de Lincoln de libertar os escravos (1862) persiste como um anátema. Alimentada de sucessivos "flashbacks", a narrativa das sequelas do conflito tem epicentro no 124 de Bluestone Road, onde vive Sethe, a escrava em fuga que degolou a filha bebé para a poupar ao abuso de terceiros. Mas o regresso da criança morta, "reincarnada" no corpo de Beloved, faz com que tenha de exorcizar o recalcado. Paul D. é que não se conforma: "Ele que comera carne crua acabada de matar, que sob ameixoeiras a irromperem em botão comera o peito de uma pomba antes que o coração parasse de bater. Porque era um homem e um homem podia fazer o que tinha de fazer..." Episódios que não são para contar.
A despeito da sua cadência melódica, o tom visionário do discurso (centrado na segregação racial) assenta na tradição oral: "O resto é o tempo. Não a respiração dos esquecidos e não mencionados, mas o vento nos beirais, ou a Primavera que derrete o gelo com demasiada rapidez. Apenas o tempo. Decerto nenhum grito por um beijo." Não vejo aqui, como acusa Harold Bloom, a mínima "coloratura" marxista e feminista. O prefácio que a autora escreveu para a edição original, omisso desta tradução, ajudaria, provavelmente, a esclarecer o ponto de vista. Uma coisa é certa: Sethe não é Scarlett O'Hara.
O pacifista contra o traficante
Com um traficante de armas perfeito, nenhum Governo se quis meter. Só um estudante de filosofia pacifista o conseguiu deter. Paulo Moura
Mercador da Morte
Douglas Farah e Stephen Braun
(trad. Maria Georgina Segurado)
Livros d'Hoje
mmmnn
Viktor Bout é um dos mais poderosos e perigosos traficantes de armas que alguma vez existiram. Fornecia-se nos Exércitos decadentes e indisciplinados da URSS e dos países da Europa de Leste após a queda do conunismo, para abastecer rebeldes e Governos (ao mesmo tempo) em África, as FARC da Colômbia, os muçulmanos da Bósnia, os hutus do Ruanda ou os talibans no Afeganistão. Ea um homem temível e impune, que ajudou a matar milhares de civis e tratava os Presidentes por tu.
Durante décadas, ninguém lhe fez frente. Porque era exímio em operar sempre dentro da legalidade internacional, e porque nenhum Governo o queria atacar, por considerar que talvez um dia viesse a precisar dos seus serviços. Chegou a trabalhar para países democráticos, para ditadores e para guerrilheiros, para os lados opostos de um mesmo conflito, para os EUA e para a ONU. Os poucos inquéritos que se fizeram sobre as suas actividades foram prematuramente arquivados. Até que um homem decidiu atacá-lo.
Johan Peleman, um pacifista belga, decidiu investigar a origem das armas fornecidas aos hutus do Ruanda, que permitiram perpetrar o genocídio de milhões de tutsis. Instalou-se num mosteiro franciscano em Antuérpia e começou a analisar os registos de voos para a região. Foi assim que chegou ao nome de Viktor Bout.
Peleman era estudante de Filosofia. Passara o curso a estudar os textos do filósofo e psicanalista Jacques Lacan. Essa era a sua especialidade, não armas ou crime, economia ou política internacional. Nem tinha cumprido o serviço militar, por se ter declarado objector de consciência. Mas meteu na cabeça que iria apanhar Viktor Bout e levá-lo a tribunal, e fez disso cruzada pessoal. Apoiado pela organização belga International Peace Information Centre e fechado na cela de um monge franciscano, com pizzas e maços Gauloises, começou a organizar um arquivo. Depois viajou para África, Rússia e Médio Oriente. Anos depois, sabia tudo sobre a história e actividades de Bout. Acabou por cooperar com a ONU, com jornalistas, polícias e vários Governos, em operações que acabariam por levar à prisão do traficante.
"Mercador da Morte" é a história de Viktor Bout, mas também a de Johan Peleman. Douglas Farah, ex-chefe do departamento da África Ocidental do "Washington Post", e Stephen Braun, jornalista do "Los Angeles Times" e vencedor de um Pulitzer, acompanharam Peleman e todos os investigadores que, durante anos, seguiram a "carreira" de Bout, sem nada poderem fazer para o deter.
Farah investigou as actividades africanas de Viktor Bout, enquanto Braun se ocupava das relações do traficante com os talibans. O resultado é um livro que se lê de um fôlego sobre uma história incrível, mas, também, sobre a hipocrisia e ineficácia de um sistema internacional onde é possível ser impunemente, durante décadas, um "mercador da morte".