O adeus do actor que reinventou o humor num país cinzento
Raul Solnado, que mudou a forma de fazer humor em Portugal nos anos 60, e foi "pai" do Zip-Zip e da Cornélia, morreu aos 79 anos
a Há 15 dias, o apresentador de televisão Carlos Cruz recebeu um telefonema do seu velho amigo Raul Solnado. Estranhou, porque não era costume falarem ao telefone. No final, perguntou-lhe como estava. "Não estou bem", confessou Solnado. "Estou por um fio." "Hoje percebi que aquele era um telefonema de despedida", contou Carlos Cruz, de lágrimas nos olhos, ontem em directo na RTP1. Raul Solnado, um dos maiores humoristas portugueses da segunda metade do século XX, morreu ontem de manhã, aos 79 anos, na sequência de complicações cardio-vasculares, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde se encontrava internado. Carlos Cruz não percebeu que o telefonema era de despedida, mas Solnado já sabia que era.
O humorista Bruno Nogueira, que gravou recentemente com Solnado o programa As Divinas Comédias - um trabalho das Produções Fictícias que a RTP1 começou já a transmitir (o primeiro dos quatro episódios passou ontem, os três restantes passam hoje, amanhã e terça-feira) -, recordou também, em declarações ao telejornal, a "despedida" de Solnado. Foi no final das gravações que o actor se dirigiu à equipa e disse que aquele era o último trabalho que fazia em televisão. "Sentia-se cansado."
Apesar de ter tido uma constipação durante as filmagens, assim que se sentiu melhor, Solnado quis regressar imediatamente ao trabalho. Teve ainda tempo para contar, ao lado do mais jovem humorista da televisão portuguesa, uma história do que foram os últimos 50 anos do humor em Portugal. E quem melhor do que Raul Solnado para a contar?
"O Solnado é uma figura completamente de referência", diz ao PÚBLICO o humorista Herman José. "Teve o atrevimento de fazer experiências numa altura em que humor de revista era ter dois chefes de quadro, aparecer mascarado e dizer umas coisas. Teve a coragem de vir fazer monólogos sozinho para a frente do palco."
Ao princípio, contou Solnado numa entrevista à Pública em 2002, "não sabia o que queria ser na vida, sabia que queria ser actor, mas era uma coisa muito vaga". Ainda tentou, para agradar ao pai, trabalhar na loja de móveis que este tinha em Lisboa, mas aproveitava todos os momentos livres para ir ver os seus ídolos: Vasco Santana, João Villaret, António Silva, Laura Alves. Depois arriscou experimentar o teatro amador, e a decisão estava tomada: "Olhe, pai, vou para o teatro", anunciou. Estreou-se em 1953 na revista Viva o Luxo, no Monumental.
Conta, nessa entrevista, que, no princípio, dizia "pouco mais que meia dúzia de frases" e que foi o actor António Silva, que "era muitíssimo tímido", quem começou a achar-lhe piada e a puxar por ele. Mas o grande sucesso chegou em 1961 com a rábula A Guerra de 1908. A história de um soldado que vai "bater à porta da guerra", editada em disco em 1962, torna-se um best-seller.
A marca dos anos 60
O estilo de humor inteligente, que Solnado trouxe, foi uma lufada de ar fresco. "Foi um precursor do Herman e do Nicolau Breyner na televisão, é o começo do humor moderno e eles eram tributários do Solnado", diz Pedro Mexia, director adjunto da Cinemateca Portuguesa, que, numa crónica recente no PÚBLICO, confessava que, quando era miúdo, "ouvia uma gravação do sketch sobre o poliban (de 1966) e ria à gargalhada". Herman reconhece-se nessa linhagem: "Nos anos 60, há a marca Raul Solnado; nos anos 70, a marca Nicolau Breyner; eu assumo-me com muito orgulho como marca dos anos 80".
Solnado é "o maior cómico português dos últimos anos, sublinho bem o lado português, porque ele incorporava muito bem nas suas rábulas o que nós tínhamos de melhor e de pior", declara o realizador Lauro António, que filmou com Solnado Um Conto de Natal, para passar na RTP na noite de Natal de 1988. "Foi um humorista que criticou asperamente aquilo que tínhamos de mais criticável mas que o fez sempre com uma ternura, uma delicadeza, um amor pelas coisas e pelas pessoas que tornam o humor dele não só inconfundível como algo de muito nosso".
Essa "ternura" vinha talvez de uma outra característica que Leonor Xavier (mulher de Solnado durante 15 anos e autora da biografia Raul Solnado - A Vida Não se Perdeu) recorda: "Tinha uma capacidade de comoção com a vida e com o mundo que era quase feminina. Tinha um entusiasmo ingénuo pela vida". Nunca teve "a presunção de ser mais do que era", conta Leonor Xavier, mas "também não era humilde, sabia muito bem qual era o seu papel e qual era o lugar a que tinha direito".
À procura da gargalhada
E esse lugar não era apenas o do humorista que todos os portugueses reconhecem. Era também o do homem que introduziu na televisão portuguesa um programa que a transformou e que, durante sete meses, fez parar o país às segundas-feiras à noite: o Zip-Zip (1969), que apresentava ao lado dos amigos Carlos Cruz e Fialho Gouveia. "É ele que faz o grande programa de antes do 25 de Abril, o Zip-Zip, e depois o primeiro grande programa a seguir ao 25 de Abril, A Visita da Cornélia (1977)", sublinha o argumentista e responsável das Produções Fictícias, Nuno Artur Silva.
E foi também - todos o repetiram ao longo do dia de ontem - amigo dos amigos, solidário, generoso. Fundou o Teatro Villaret (1964), fundou e dirigiu a Casa do Artista, sociedade de apoio aos artistas. Fez cinema - desde O Tarzan do Quinto Esquerdo, ainda nos anos 50, até à revelação que foi o seu papel dramático no filme de José Fonseca e Costa A Balada da Praia dos Cães (1987) - e continuou até ao fim a fazer teatro e televisão.
A trabalhar era rigoroso, incansável, tinha a noção exacta do tempo no humor. Leonor Xavier recorda-se que uma vez, na peça Os Bancários Não Têm Alma, "a certa altura do texto, as pessoas deram uma enorme gargalhada e depois, na vez seguinte, não riram". Solnado "ficou doido à procura daquela gargalhada". E só ao fim de três ou quatro dias percebeu que "tinha sido uma questão de uma fracção minúscula de tempo, de respiração".
Solnado passou a vida à procura dessa gargalhada - "com um respeito enorme pelo público", frisou ontem Carlos Cruz. E recebeu sempre muitos milhares de gargalhadas. Até que, há 15 dias, soube que chegara a altura de se despedir dos amigos. E era assim que ele gostava de se despedir: "Façam o fazer de ser felizes!".