“Podiochamá-lo?” (entrevista a Raul Solnado)

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Dulce Fernandes (arquivo)

Já sentado do outro lado do sofá, poucas marcas havia de um rosto de vida acelerada sem tempo para si, para os outros, para viver, amar e “levar os filhos ao Jardim Zoológico”... Estava o homem que um dia enfrentou um “enfarte do Caracas” e decidiu, acima de tudo, dedicar-se ao prazer dos amigos, da conversa, ao estar em casa: um lugar cheio de pintura, objectos pessoais, recordações... E futuro.

O segredo de Raul é não rir dos outros, mas com os outros, e muitas vezes, fazer os outros rirem-se de si... Dá-se, oferece-se numa bandeja, parece que está ali para cada um de nós em especial, mesmo que num teatro cheio, ou num programa de prime-time.

As janelas grandes da sala davam-nos o espectáculo do fim da tarde. Com a última luz, Raul despia-se perante o gravador. Quase no fim das três horas de conversa, parou, sorriu com aquele jeito seu de meia careta e sorriso, e disse: “Já me obrigaste a dizer muitas coisas que habitualmente não digo. A gente sempre se esconde. Mas estou a gostar de ir na boleia!”

A vida começa sempre pelo princípio, não é?

Pode não ser... Há, por exemplo, as crianças precoces: é uma pena, elas não cumprem todos os tempos.

Queimam etapas?

Sim, também há pessoas que as ajudam a queimar essas etapas, porque acham formidável que uma criança seja precoce.

E perdem com isso?

Perdem.

Isso foi o que aconteceu com o Raul?

Não, acho que fui cumprindo sempre cada passo.

Quando é que teve a noção do eu: “Chamo-me Raul Solnado e tenho noção de mim”?

Penso que é difícil alguém localizar esse tempo. É capaz de ter sido no início da minha juventude, quando eu decidi o que queria fazer na vida... Não, quando eu comecei a desenhar os meus projectos de futuro. A pensar que tinha que cumprir um futuro. Porque até aí a gente não pensa nada nessas coisas.

É também aí que põe a contabilidade de parte e os projectos que o seu pai lhe punha em cima?

É, quando eu estou na escola comercial e estou completamente desajustado. A vestir uma farda que não me pertencia, com números e aquelas coisas exactas que não têm nada a ver. Eu não sabia fazer aquelas contas, não me interessavam. Fazia raízes quadradas medonhas que até hoje não sei para que servem. Tive que decorar aquelas coisas todas. Depois, fui para um escritório do meu pai, o meu pai tinha toda a boa intenção, isto não é uma acusação, o meu pai fez o seu melhor. Só que o seu melhor não era o meu melhor. Na minha infância eu queria ser médico, depois, o meu percurso foi desviado por um outro carril.

O facto de não ter conhecido a sua mãe marcou-o até hoje? O que é que aí foi buscar para seguir o seu percurso?

O facto de não ter tido mãe foi violentíssimo, tive uma madrasta que me tratou como filho até certa altura, mas eu não sentia...

Só até certa altura?

Sim. Até ao início da minha juventude, exactamente... Eu achava que ela era a minha mãe. Sabia que tinha tido uma mãe, naturalmente, e sabia que aquela não era a minha mãe. Mas para todos os efeitos era a minha mãe! Bom, depois, às tantas, descobri que afinal não podia ser minha mãe... Ela fez-me ver isso. Eu fiquei um pouco perdido e fui fazendo, muito devagar, a transmissão dos poderes da minha madrasta para a minha mãe, até que finalmente consegui.

Foi retirando-lhe poderes...

Fui.

O problema é que quando os retirou não teve a quem os dar, a sua mãe tinha morrido...

Dava-os a uma imagem.

Nasceu em 1929. Isso foi com que idade?

12, 13 anos, talvez.

Foi aí que começou a distribuir carinho por toda a gente?

Não sei, não posso localizar. Não sei, talvez seja daí. Talvez para preencher uma lacuna muito grande. É impensável poder substituir uma mãe por alguém, nem com o carinho de milhões de pessoas. Talvez tenha feito essa tentativa, não faço ideia.

O seu pai era próximo de si, ou era daqueles pais distantes?

Era um pouco distante, mas quando se aproximava era tão quente que compensava essas ausências, esses afastamentos que tinha.

O seu primeiro momento de teatro foi à frente de uns amigos do seu pai, quando um pombo...

Foi. Eu tinha umas calças de alças e um pombo pisou o meu ombro e picou-me imenso. Eu vivia num bairro popular e os palavrões eram frequentes, eram a ordem do dia, disse: «fodaxe!» Fiquei muito espantado de toda a gente ter ficado a rir e fui de castigo!

Isso ficava na rua...

Rua Vicente Borga, no coração da Madragoa, perto da rua das Trinas.

Viveu aí até que idade?

Até aos seis anos, depois, fui para Campo de Ourique, onde fiz a primeira classe. Imediatamente, vim para baixo, para o largo da Esperança, em frente ao Xafarix: foi aí que fiz toda a minha juventude.

Esteve no Passos Manuel?

Primeiro para a escola comercial Rodrigues Sampaio, depois, no Passos à noite, em comercial também.

Trabalhou numa loja de ferramentas perto da Casa dos Parafusos. O seu pai negociava...

O meu pai tinha uma vassouraria. E era sócio de uma outra vassouraria e de uma casa de móveis com o dono da loja de ferragens da rua da Boavista. Ele pôs-me a trabalhar para eu juntar a teoria à prática. Fiz um curso de contabilidade de quatro anos...

Acabou-o?

Não, consegui não o acabar. Tive uma rejeição absoluta.

Então, esses momentos a trabalhar foram óptimos!

Não. Foram terríveis! Eu via as horas passarem: olhava para o relógio e eram quatro horas. Daí a um bocado olhava e eram três e meia. O tempo tinha diminuído. Era uma sensação estranhíssima, havia um relógio louco na minha cabeça sempre a andar para trás.

Foi salvo pela tropa?

Não, aos 18 anos fui para a loja do meu pai e do sócio frente à penitenciária de Lisboa, uma loja de móveis enorme.

Vendia bem?

Não, penso que não. O meu pai nunca conseguiu...

O Raul.

O problema é o seguinte e ninguém me pode negar: eu fui sempre esforçadíssimo. Eu não queria desiludi-lo, não sabia o queria ser na vida, sabia que queria ser actor, mas era uma coisa muito vaga. Ia ver os espectáculos todos, tinha ídolos como o Vasco Santana, o João Villaret, o António Silva, a Laura Alves... Mas eu estava em trânsito, sem saber, sem ter uma bússola, sem saber muito bem o que é que queria ser. Achava que tinha que ter brio, por isso vendia bem, tudo o que me davam para fazer fazia bem, mas com muito custo, evidentemente.

Quando é que se deixou de se roer por dentro e disse: “não posso fazer mais isto! Tenho que seguir o meu caminho”.

Quando comecei a fazer teatro amador. O José Viana também foi para lá como cenógrafo, mas faltou alguém e ele ficou como actor no grupo. Depois, ele decidiu ser actor em vez de pintor, profissionalizou-se e foi dirigir um show no Maxime, que ainda hoje existe. Fui também. Naquela altura era uma coisa luxuosíssima! Ele foi fazer “O sol da meia-noite”, uma pedrada no charco na noite de Lisboa. Era a primeira vez que se fazia um show articulado, variedades soltas, um show que esgotava, toda a malta da noite ia ver aquilo. Um dia o Vasco Morgado foi lá ver e chamou-me, perguntou-me se eu queria fazer uma revista: disse que sim.

Entretanto, tinha também tido outro contacto, também através do José Viana, para outra revista. Ainda fui lá, mas disseram-me: “afinal de contas não é preciso, muito obrigado e desculpe!”. Nem cheguei a mostrar se era bom ou mau.

Foi aí eu anunciei ao meu pai: “olhe pai, vou para o teatro”. Como eu era filho único, ele ficou comovido por duas razões: primeiro, sentiu o filho soltar-se, e porque o filho recusava a continuação do seu império. O seu império entre comas, não era nada, zero. Mas disse-me uma frase muito importante, a coisa melhor que um pai podia dizer: “Então vai, segue o teu destino, mas fica com a certeza de que aqui tens sempre o teu lugar, aconteça o que acontecer.” Isso foi aquecer-me as costas.

Houve muitos momentos na vida em que sentiu que alguém lhe aquecia as costas para que pudesse dar um passo?

Sim, muitas vezes.

E deu passos irreflectidos?

Penso que ninguém falha um mau passo, a não ser os tontos, os tontos é que não dão passos em falso, os quadradinhos. Eu acho que é muito bom dar passos em falso, porque ajuda mais rapidamente a corrigi-los. Sim, dei passos em falso, muitos passos em falso. A vida tem sido para mim de uma grande amabilidade, não comecei, talvez, da melhor

maneira, mas depois o percurso endireitou-se.

E o seu pai ainda o viu...

Viu, imensas vezes! Ele morreu em 1964. Comecei as rábulas em 61, portanto, ele ainda me viu com grande popularidade e estava muito feliz com isso.

Vai para a revista, mas não começa logo a demarcar-se, ainda não era “o Raul Solnado”... Quando é que avança com o pé direito?

Bem, começo com o Vasco Morgado, praticamente a fazer figuração, pouco mais do que isso: dizia meia dúzia de frases. Foi o António Silva que me achou piada. Ele era uma pessoa muito tímida, era uma pessoa boníssima, mas muitíssimo tímido. Gostava de mim, então, eu tinha que lhe dizer uma frase ou duas, não me recordo, depois vinha-me embora e ele começava a sua rábula. Ele começou a dar-me corda, a atrapalhar-me e eu respondia sempre. Às tantas começou a haver gente nos bastidores, técnicos e actores, a ver o que o puto diz ao António Silva. Isto em duas sessões e eu sempre me ia safando! Quando aquilo terminou, havia um papel qualquer numa comédia que se ia fazer e o Vasco Morgado discutia com encenador quem é que ia fazer aquele papel, disse: “isso faz o miúdo que respondia ao António Silva”. Nem o meu nome sabia. Deu-me um papel razoável e estive com a Laura Alves, o que foi uma grande escola. No fundo, naquele tempo o que era bom é que havia grandes actores de peso com quem a gente aprendia.

Como era a Laura Alves?

Era uma pessoa com uma força louca, um puro vaso comunicante. Era uma grande artista, fazia comédia e drama com uma facilidade enorme. O seu talento foi-se desbaratando porque o repertório que lhe foram dando... Bem, ela também não exigia porque era casada com o empresário, por isso nunca teve acesso. Aliás, poucos actores na altura tiveram acesso a papéis de grandes autores. A censura tratava de ir fazendo as respectivas barbas a essas ambições. E isto também para o Vasco Santana, António Silva... Nessa altura, os actores tinham que lutar na bilheteira, a sua audiência, uma audiência como hoje se tem na televisão. Eles tinham que apelar a um público mais popular que lhes esgotasse as sessões.

O que é que recorda do Vasco Santana, do Villaret?

O Vasco Santana era uma pessoa inteligentíssima, era um queiroziano, tanto assim que ele tinha uma quinta chamada Ramalhete. Ele dizia nacos inteiros do Eça de Queiroz de cor. Divertidíssimo. Bom bebedor, muito contente sempre. Feliz.

O João Villaret era... Bom, naquela altura a gente não tinha um grande acesso às grandes figuras, havia uma grande hierarquia, uma grande distância, conviviam connosco, mas não muito. O João Villaret era uma pessoa que me fascinou, quando ele fazia uma revista tinha sempre bom-gosto em tudo o que acontecia, tinha uma marca especial. Além disso, considero que ele foi o único grande artista português de music-hall, talvez até mais que actor, e isto não é pejorativo de forma nenhuma. Era genial, com um piano, ficava uma noite inteira a fazer coisas, a cantar ... Era brilhantíssimo.

Daí a sua carreira vai crescendo, quando é o boom? É com a rábula da 'guerra'?

O boom é a 'guerra', em 1961. Mas já em 55 no Teatro Apolo, no Martim Moniz, que foi abaixo com carácter de urgência para fazer ali durante trinta anos um parque de estacionamento. Um teatro velhíssimo, com 100 anos. O empresário contratou-me e recomendou aos autores para me darem o melhor trabalho, apostou em mim. Tive então um trabalho muito bom, é a primeira vez que dou realmente nas vistas. Chamava-se a peça Bota a Baixo, porque o teatro ia a baixo. Fizemos três peças, uma revista e duas operetas. Foi aí que tive a oportunidade de trabalhar com o Alves da Cunha, que era um actor... Tinha termos de representação fabulosos, punha as pessoas na plateia a respirar fundo a criar um suspense com as suas pausas. Fazia pausas que podiam demorar um minuto, talvez, meio minuto, mas pareciam uma eternidade. Os actores marcam sempre os papéis: vai à direita, desce à esquerda, ao centro alto, à direita baixa, senta-se numa cadeira, levanta-se. Nos apontamentos ele escrevia: “pausa, senta, pausa, lágrimas, palmas”.

É portanto no Bota a Baixo que é a revelação?

Sim. Para o sistema interno, no meio teatral fiquei com algum prestígio, pela minha idade e pela minha experiência, ou seja: começaram a contar comigo. Isso foi muito importante para mim, porque quando voltei para o Vasco Morgado já vinha noutras condições.

era estrela de cartaz?

Não, também não queria. Recusei. Só aceitei ser o primeiro actor em 1960.

Com?

A Tia Charley, um clássico inglês famosíssimo. Foi uma peça que correu muito bem, aí eu aventurei-me, achei, pensei que o meu nome estava maduro. Mas não estava ainda, realmente! As pessoas não iam a correr para ver-me, foram lá porque o espectáculo era muito bonito e tinha imensa graças, mas sentia-se que eu ainda não estava... O Vasco Morgado avançou e a seguir fui fazer a revista com a história da guerra: aí sem dúvida, foi um grande salto, “o pulo do gato”. Tive uma popularidade, não digo invejável, porque era terrível, não quero voltar a ter aquela popularidade.

Era asfixiante?

Asfixiante! Eu ligava o rádio e lá estava eu a contar histórias. As pessoas convidavam-me para jantar e lá estava o disco, para eu ouvir. Senti-me perseguido por mim mesmo. Quando veio cá o Chico Buarque de Hollanda, tinha lançado uma canção chamada “a banda”, sabes o que é?

“A ver a banda passar, cantando coisas de amor!”

Pois, tocava em todo lado. Quando ele chegou a Portugal estava uma banda a tocar isso: ele ia morrendo! Agora, ouvir histórias, histórias que eu estava cansado de contar. Aquele tempo, para mim não durou só três anos: um dia eu fui ao...

Barreiro! E daí?

As pessoas apontavam-me. Eu dizia uma frase e eles já diziam a segunda em coro. Disse: “não estou aqui a fazer nada, não aguento com isto”. Fui para o Brasil.

Calma. Voltemos à 'guerra'. Como é que uma pequena rábula gera aquele fenómeno?

Primeiro, porque o texto é fabuloso: Miguel Gila. Acabou de morrer agora, há dois anos fui a Barcelona visitá-lo, aos 80 anos continuava a fazer a mesma coisa. Durante toda a sua vida, 60 anos, fez isto.

Houve o mesmo sucesso lá?

O sucesso da guerra não é só fruto da qualidade do texto, é também do facto de estarmos em guerra em África. Aquele texto era como um grito. Os militares nos combates que tinham diziam as minhas frases, era como uma libertação.

Mas corria também um pouco o risco de ficar colado ao regime.

Porquê? O que me admirou foi a censura deixar passar aquele texto. O regime achava que “com a guerra não se brinca”.

Sim, mas também não era um texto que os ferisse. Acha que os feria?

Muito. Não gostavam nada, mas com o disco em cima não tiveram coragem para tirar.

Depois da guerra vieram outras rábulas...

Foi, porque o texto fez sucesso. Aquelas histórias, o nonsense, em Portugal nunca se tinha ouvido. Depois, na história da guerra cada pessoa tira o que pode. O humor é uma coisa muito complicada, não vale a pena estarmos a falar do humor porque é mais fácil dizer o que não é o humor do que o que é humor. Como vai através da inteligência, do conhecimento, as pessoas tiram sempre alguma coisa: piada por piada, ou iam mais fundo.

No disco há pequenas coisas que são do momento, como o chiuuu, coisas que são de quando é gravado. As pessoas começaram a exigir também isso no espectáculo? Exigiam que fosse sempre igual? Havia espaço para inventar?

Havia espaço para inventar, há sempre espaço para inventar. Mas havia coisas que as pessoas não podiam autorizar que fossem retiradas, como esse chiuuu, momentos de improviso fabricado.

Era um improviso que já não era improviso.

Não, fazia já parte, quase que estava no texto.

E isso começou a ser esmagador?

E também tive o grande problema de as pessoas catalogarem-me com grande rigor: “é este o boneco, este é o tipo da guerra e acabou!”. Eu que sou um positivista, dizia por brincadeira: “eu sou uma vítima da guerra”. Agora, a censura sabia que aquele era um texto de paz e não um texto de guerra, era um texto que apelava à paz. Põe a guerra na sarjeta, isto para a pergunta se eu podia ser conotado como regime.

Eu tinha uma grande dificuldade... Uma peça chamada Vamos contar mentiras, que no outro dia passou na televisão. Uma comédia bestial, mas era uma comédia, tinha a Florbela Queirós, o Armando Cortês... As pessoas quando a peça acabava exigiam que eu contasse mais histórias. Um trabalho de uma violência enorme! Um dia, eu não contei, estava cansado ou doente, já não sei, e apedrejaram-me a carrinha. Foi horrível.

Tive que me soltar, não digo do humor, mas daquele cliché que eu criei, daquela maneira de falar. Daquele boneco! Mas foi a pouco e pouco, levou anos a separarem as minhas personagens daquela personagem. E muitas vezes as pessoas não gostavam porque não era “o Solnado” que eles gostavam.

Isso do ponto de vista monetário recompensou-o de alguma maneira? Foi isso que ainda hoje lhe permite ter uma certa estabilidade?

Compensou. Ajudou a poder fazer o teatro.

Já lá vamos. Então, foi isso que o fez pirar-se para o Brasil? Na primeira vez que lá esteve sentiu-se “um camponês na cidade grande”, não foi?

A primeira vez em que lá fui foi em 1958, correu tudo mal...

O que é que correu mal?

Não fui só eu, foi o espectáculo todo. Era uma revista brasileira, com actores brasileiros, eu era o único português. Ainda não contava as histórias, evidentemente. As coisas não correram bem para ninguém, foi um “flop” absoluto. Tive que me vir embora a ganir, mas sempre pensando... Fiquei tão louco de paixão pelo Brasil, nessa altura no Brasil estava a acontecer tudo, estava a iniciar o TDC, o início do teatro brasileiro, uma grande companhia com actores fabulosos. Havia um movimento artístico muito grande, não só teatral, musical, de televisão. Já se faziam coisas notáveis na televisão dessa altura e eu queria participar naquele movimento.

Da primeira vez a coisa não corre bem, mas da segunda, quando foge à “guerra” já correu bem.

Nessa altura, três anos depois, sou convidado para ir para a televisão com um destaque absoluto. Entrei pela porta grande. Fui para São Paulo fazer o aniversário de uma televisão, a TV-Record. Para além de me terem televisionado, fiquei mais oito dias. Sempre esgotado, tudo esgotado. O disco foi um grande sucesso no Brasil.

Também? Foi para lá contar outra vez a 'guerra'?

Fui. Tudo, começar do princípio.

Mas então isso foi um fugir...

Ah, mas aí estava a conquistar um público novo.

Não percebo, não estava já farto da coisa?

Estava farto da coisa, mas o público estava ali na minha mão, tanto que voltei lá inúmeras vezes.

Foi aí que disse aquela frase: “Eu tenho uma grande afinidade com o povo brasileiro porque os meus pais também são portugueses”.

Isso é uma piada evidentemente. Eu fiquei a gostar tanto do Brasil, aprendi lá tanto, tanto...

Então, quando se acabaram as rábulas voltou?

Voltei.

É aí que começa uma nova aventura...

O teatro. Esse teatro tem muito a ver com a minha necessidade de ter uma companhia própria, de ser eu a escolher o meu modelo: “este é o meu reportório, quero fazer uma companhia nestes moldes”. E tem também a ver com os teatros do Brasil que eram assim pequenos. Nós tínhamos teatros de 1000 lugares, o meu, o Villaret, tinha 400, era considerada uma coisa pequena.

Tinha a necessidade de ter a minha própria companhia, eu fazia tudo: escolhia desde o tecido, a cor da tinta para escrever a peça, como se traduz, até à forma como se fazia a publicidade do lançamento. Era assim que eu queria e penso que provei que estava certo.

E isso deu-lhe duas coisas, uma boa e outra má. Ganhou essa possibilidade, mas passou a ter os credores todos os dias a bater-lhe à porta.

Sim, um horror, é horrível. Era um peso tão grande, uma dívida tão grande, para mim era infindável. Às vezes pensava: “nunca mais me livro disto!” Às vezes estava a representar e a contar os espectadores para saber se dava pagar a letra. Mas aos poucos fui pagando, até que paguei tudo.

Chegou a pensar: “não vou conseguir”?

Muitas vezes, tive grandes fases de desânimo, grandes dores de cabeça dia sim, dia não. Dores violentíssimas.

Depressão?

Depressão não, porque tinha uma coisa boa: no fim do espectáculo desligava-me completamente de tudo.

E durante o espectáculo pensava nisso também?

Não. E também não tinha a dor de cabeça, passava-me logo. Estava em cena e deixava de ter dor de cabeça.

O que é que se sente quando se está em cima de um palco? O que é que o Raul sente?

Uma felicidade enorme. Não se pode traduzir, é impensável, se eu te disser que nunca tive a vontade de fazer chichi em cena, nunca me aconteceu, até hoje! Não sei o que é, não tenho dores de cabeça, entro e esqueço de tudo. Os meus problemas, todos temos problemas, são todos esquecidos. É uma terapia absoluta, então com o riso...

O teatro Villaret leva-o a poder fazer outro tipo de peças, com outra profundidade, fugir um pouco à revista.

Ali nunca fiz revista: fiz comédias, algumas de grandes autores.

Onde é que se foi apoiar para conhecer esses autores, para saber o que queria?

Acho que a nossa vida deve ter uma exigência rigorosa sempre e uma grande ambição, em todos os aspectos. Talvez menos na parte monetária porque o meu projecto nunca foi ser rico.

Mas houve uma altura em que podia tê-lo sido, disse-o uma vez. Podia ter sido muito rico?

Muito rico não digo, mas podia ter sido rico.

Não vive mal, a vida foi boa para si?

Foi muito boa, agora, podia ter uma casa bonita e não tenho. Tenho uma casa muito pequena como podes ver.

Mas onde cabem todos estes quadros.

Já não cabem, o problema é que já não cabem.

Teve também outras casas, Vila Franca...

Uma casa lindíssima na encosta de Vila Franca: o teatro ma deu, o teatro ma levou!

Teve alturas em que deu dinheiro, outras, em que foi preciso pôr dinheiro...

Sim, quando eu ia para o Brasil, o teatro ia para o fundo, ele estava muito ligado ao meu nome. Isso era mau, tinha que voltar para fazer outra peça e equilibrar as finanças. Depois, ia para o Porto fazer uma temporada e punha outra companhia.

Parece que vem aí um teatro com o seu nome?

Ainda bem que falamos disso. Apareceu no outro dia numa entrevista do Pedro Santana Lopes, no PÚBLICO. A certa altura, o João Soares falou-me: apanhou-me de surpresa, eu não sabia de nada. Disse que tinha uma grande honra, mas se eu quisesse ter um teatro com o meu nome não tinha posto Teatro Villaret. Não quero que pensem que apoiei o João Soares a troco de qualquer coisa. Está bem?

E porquê Villaret e não Santana? Santana, Vasco Santana, claro, ou outro actor assim?

O Villaret foi a primeira pessoa que me emocionou no teatro. Numa peça chamada “Recompensa”, já mais esquecerei: chorei, chorei, chorei. Aquilo marcou-me para toda a vida. Depois, como trabalhei com ele duas vezes, ou uma, não me recordo, ele era um tipo brilhante!

Mas dava vontade de chorar em palco? Já chorou muito em palco, sobretudo ao acabar uma peça...

Já, duas vezes. A companhia toda, não fui só eu. Momentos muito complicados, uma grande tristeza. As pessoas do teatro são muito especiais, trabalhamos muito tempo juntos formamos como que uma família, depois, temos que nos separar. A gente nunca mais se vê, cada um vai para seu lado. Vemo-nos de ano a ano, meses a meses. É tristíssimo.

Mas foi o Raul que disse que nas outras profissões as pessoas vendem coisas e no teatro vendem-se sonhos. Quando uma pessoa volta para casa, não leva mais nada, também está aí a tristeza?

Não é aí, a tristeza vem da felicidade de ver as pessoas felizes. É um tipo de comoção que não chega às lágrimas.

O Raul levou isso ao excesso, um dia matou de riso uma senhora no Villaret.

Não, foi no Variedades. Foi terrível.

Hoje as pessoas já não morrem de riso? Acha que ainda há pessoas a morrer de riso?

Qualquer pessoa pode morrer de riso. Morrem. Uma pessoa morre sufocada. Recordo que uma vez eu fazia uma peça chamada Super Silva e as pessoas riam da primeira à última cena, à última frase. Quando o pano desceu e subiu de novo, ouvi uma voz que disse: “até que enfim!”. Uma pessoa pode sentir-se mal.

Há dois momentos que o marcaram: este e aquele homem que escreveu a pedir um boneco do Zip, Zip para os filhos e disse que se ia suicidar.

É, Fialho Gouveia foi vê-lo. Pensávamos que se tratava de uma brincadeira, eu disse: “vai lá vê-lo”. E depois, quando ele chegou, antes de um espectáculo, disse: “não é nada...”. No fim do espectáculo contou que morreu mesmo, foi terrível. Deixou-me completamente abananado. Depois, a gente dorme, passa um dia e mais 24 horas, a gente acalma. A vida continua. Se ele me tivesse dito no início do espectáculo eu tinha-me sentido mal de certeza absoluta. Felizmente, teve o cuidado de me travar a notícia.

Vamos então ao Zip, Zip. Foi a pedrada no charco. Como é que foi possível isto acontecer?

Foi, e por várias razões. São várias coisas simultâneas, há uma abertura política, a chamada primavera marcelista. Eu encontrei em Nova Iorque o Ramiro Valadão, nessa altura era lá adido de imprensa, quando regressou a Portugal foi-lhe entregue o lugar de presidente da RTP. Em Nova Iorque, estávamos num cocktail qualquer e falamos, ele falou-me da televisão americana com um grande entusiasmo... Quando ele chegou a Portugal e ficou com a televisão, pensei: este homem deve ter chegado com um olho de goraz, deve estar cheio de entusiasmo para fazer coisas novas. Falei com o Fialho Gouveia e com o Carlos Cruz e lá fomos falar com ele.

E já tinham a ideia?

Tínhamos uma ideia que ele vetou. Uma coisa à hora do almoço: um estúdio aberto, uma coisa que entrava quem quisesse... Altamente perigoso, não só para nós, tudo podia acontecer, como também politicamente, alguém podia chegar ali e dizer coisas incorrectas.

Era essa a sua vontade, que alguém aparecesse a dizer qualquer coisa?

Não, sabia que se isso acontecesse no dia seguinte fechava, no dia seguinte não, naquele minuto. O Chico José, o cantor, foi à televisão e disse: “em Portugal os artistas não são tratados como no Brasil.” Nunca mais foi à televisão, foi vetado. Sabíamos muito bem que isso seria a morte.

E o nome era?

Não sei, acho que não tinha. Mas vai daí, ele disse: “isso não, façam uma coisa semanal!” Isto seria início de Abril e ele disse: “tragam-me um programa em Maio, no mês que vem”.

“Muito bem”, dissemos nós, trazemos um programa. Saímos dali completamente tontos a pensar: “vamos fazer o quê?” Então, tivemos várias discussões, sempre nesta casa, sempre ali naquela mesa, tudo aconteceu sempre naquela mesa. Tivemos horas e horas a partir pedra. No Zip há uma grande influência brasileira, no fundo são as coisas que eu fui bebendo inconscientemente.

O nome é que é divertido, vinha com o Fialho Gouveia do Porto num automóvel, dizíamos: “que nome é que a gente vai pôr?” Como sempre os nomes encontram-se dizendo coisas tontas. “Como é que se chama o programa. Isto não, e não, não.” Até que, acho que fui, disse: “Zip, Zip!” Ele disse: “mas isso não quer dizer nada!” E eu respondi: “exactamente por isso”. Ele gritou: “é óptimo!”. Paramos o carro e ficamos aos saltos. Viemos logo acordar o Carlos Cruz, que já estava a dormir para lhe dizer o nome do programa. Isto foi feito com grande entusiasmo, só com essa paixão grande é que conseguiu que o programa fosse o que foi.

Mas o Almada Negreiros não foi decisivo? Não põe a fasquia muito alto?

Ele dá um tom. Da mesma maneira que o Fernando Assis Pacheco também dá um tom à Cornélia. Bem, fomos ver o Almada. O Almada era uma pessoa que estava politicamente na terra de ninguém. Estava na terra de ninguém porque a princípio colaborou, como muitos outros, mas depois deve ter recuado. Então, nós quisemos levá-lo. Fizemos uma grande exposição das obras dele na rua... Então, levámo-lo lá e ele fez um sucesso assombroso. Dizia um motorista de táxi que tinha visto o programa à Fernanda Borsatti, no dia seguinte: “Eu não sabia que em Portugal havia uma pessoa tão importante!”

Aí os critérios de avaliação alteram-se todos?

Tudo por causa do Almada. E nós ficamos com uma grande responsabilidade por um lado, por outro lado ficamos com as 600 cartas que nos chegaram no dia seguinte. Fomos inundados de cartas, uma loucura, não tínhamos máquina para aquilo.

Sim. E não podíamos, passávamos a vida aqui a fazer o programa da semana seguinte. E quando saíamos dali íamos para a montagem, mais o Carlos e o José... Eu ia às vezes mas nem sempre. De repente o país parava, recebíamos cartas de velhas que nos agradeciam finalmente terem a família junta à segunda-feira para ver o programa. Não havia televisões em todo o lado. As pessoas juntavam-se em casa uns dos outros. Na rua não havia ninguém. Soubemos da audiência através de um homem da companhia das águas: “Comecei a sentir uma descarga brutal a uma certa hora da noite de segunda-feira. Fui ver: era o intervalo do Zip, Zip. Ia tudo à casa de banho”.

Porque é que o Zip acaba?

Acaba porque nós achamos... Foi de Maio a Dezembro [de 1968], quatro vezes por semana: 20 e muitos.

Quando vimos as nossas fotografias no primeiro programa e as nossas fotografias no último, tínhamos envelhecido uma coisa impressionante. Aquilo foi uma coisa de grande, grande violência.

O jogo do corta era terrível, não é? O Raul era a última instância?

Era, era negociado, às vezes lá ia eu também... O José e o Carlos não podiam, eles eram funcionários da RTP, eu não tinha nada a perder, ia para as coisas desagradáveis.

E decidem acabar, porquê?

Tudo tem um tempo. Achamos que aquele era o tempo exacto.

Mas não houve pressões? Não foi por haver cortes a mais, pelo espartilho?

Nenhumas, antes pelo contrário, o Ramiro Valadão, que era um homem profundamente inteligente, espertíssimo, sabia muito bem que nós não podíamos acabar aquilo de repente. Ameaçamos, mandei-lhe uma carta dizendo que íamos terminar no próximo programa. Ele chamou-me e disse-me: “estou muito triste com a sua carta, tenho que ir para os Açores, tenho um problema familiar a resolver, mas peço-vos por tudo para não acabarem até eu voltar”. Ele não podia deixar que acontecesse, o público perguntaria “o que é isto!”. Como nós avisamos com uma antecedência grande, e começamos a dizer que ia acabar, ele ficou contente, sabia que a coisa sairia com elegância, com calma, sem brigas, sem nenhuma fricção.

E na primeira segunda-feira em que não há Zip as pessoas ficam como que perdidas!

Tu sabes que até hoje os bilhetes de cinema são mais baratos, sabias disso?

É por causa do Zip, Zip?

É, baixaram os bilhetes porque ninguém ia ao cinema.

É com o Zip que traz o Chico Buarque, Caetano e o Gilberto Gil que estavam em Inglaterra. O Vinicius, a Elis Regina?

O Vinicius e a Elis nunca estiveram no Zip, foram ao Villaret. E tivemos o Jorge Amado.

O Raul é das únicas pessoas de pele e osso que é personagem de um livro do Jorge Amado: O sumiço da Santa. Como é ser personagem de livro?

Óptimo. Ele era uma pessoa de uma grande simplicidade, realmente, um homem com uma tranquilidade muito grande. Tenho muitas saudades dele, muitas. Penso que ele está na base da formação do meu carácter com os seus primeiros livros: a correcção das injustiças, a sua acção política. E não sou comunista... O primeiro livro que li dele foi “Os capitães de areia”, depois li tudo o que havia para ler. Sabes, comecei a ler o Jorge Amado na Guilherme Cossoul, houve ali um movimento intelectual muito divertido, era muito tonto e ninguém percebia nada de coisa nenhuma.

Mas foi do Partido Socialista, chegou a ter cartão?

Cheguei, mas foi só durante dois anos, quando a democracia estava em perigo. Quando a democracia estabilizou, disse: «não estou aqui a fazer nada, não quero ser político». E saí.

Se olharmos para os seus amigos, todos eles marcaram qualquer coisa: a pintura, teatro, literatura, música. Foram um grão que marcou a nossa cultura. Não tinha amigos normais, simples?

Não sei, eram pessoas de grande carácter, provavelmente, também há gente de carácter e simples, mas o problema é que depois ficamos sem códigos...

Precisa de ter pessoas que o estimulem a si?

É, tem que ser, provavelmente fui eu que os procurei, porque sou uma pessoa simples. Desde muito cedo tive uma necessidade muito grande de aprender, só que fi-lo da pior maneira: ponto por ponto. O Millôr Fernandes disse uma coisa genial: “nunca digo a ninguém que sou um homem feito por mim próprio porque tenho medo que alguém me pergunte: ‘porque é que não se fez melhor?’”.

O Raul acha que podia ter-se feito melhor?

Não, acho que seria difícil, parti praticamente do zero.

Foram os amigos, as mulheres? O Raul era um mulherengo, não era?

Eu não gosto de mulheres, gosto das mulheres!

Qual é a diferença?

É muito grande, pensa um pouco e vês, é enormíssima. De mulheres são todas, das mulheres são algumas! Acho que as mulheres são fabulosas. Não sei se será por nunca ter conhecido a minha mãe...

Procurou em cada mulher a mãe que lhe faltava?

É natural que sim, penso que ninguém escapa de uma coisa dessas.

E todas foram suas mães, ou seja, foi sempre dominado nas relações que teve?

Não sei se posso responder a isso, algumas vezes sim. Sinto que fui dominado mas automaticamente reagi. Tenho uma grande dificuldade em dizer não, acontece-me o pior que existe no mundo: não dizer não nos tempos exactos. Depois fica como que uma camada, várias camadas, que se vão criando e a gente de repente empurra com uma grande violência e tudo salta.

O balão rebenta. Rebentou muitas vezes?

Sim, rebentou. E não posso aceitar o facto de ser vítima, foram tantas vezes que tinha por força que ser eu o causador.

Mas se lhe perguntasse quantas foram as mulheres da sua vida, há um número?

Isso não se pode quantificar.

As que foram realmente companheiras?

Assim pode haver: quatro.

Agora, dessas quatro, em cada uma delas foi um Raul diferente ou foi sempre o mesmo?

Penso que sou sempre o mesmo.

Então, cada mulher não foi uma espécie de vida diferente que viveu?

Foi sempre diferente mas eu sou o mesmo. Ou seja, terei uma capacidade de adaptação muito grande. Viver com uma brasileira e viver com uma dinamarquesa é muito diferente, não é? São saltos enormes.

E de tudo isso o que é que sobrou? Da sensação de amar, de procurar, dessa procura toda... Ainda hoje anda à procura?

Talvez não, talvez já não.

O Raul às tantas diz que andou tão “acelerado” que não teve tempo para si, nem para os outros.

O problema é a nossa carreira, estas vidas bruscas, estas violências enormes fazem de nós uns pais medíocres, porque não temos tempo. É tudo tão esmagador, a gente acha que eles estão bem entregues às mães e sempre pensamos que no dia seguinte levamo-los ao jardim zoológico...

E esse dia nunca vem.

Nunca vem.

Carrega o peso de ter sido um mau pai, é isso? Tentou compensar isso mais tarde?

Tentei compensar, mas nunca é igual, nunca é a mesma coisa.

Mas os seus filhos são o seu espelho? Revê-se neles?

Nem sempre. Penso que eles são pessoas mais estabilizadas, ou com uma maior necessidade de estabilização. Eu sentia que vivia junto ao fogo e recusava bombeiros

São três filhos. Sente-se próximo deles hoje?

Sim... Penso que mais do que nunca, apesar de tudo.

É um bom começo, ou um bom recomeço?

Se é recomeço é tardio. O complicado, não é falar nisto, é pensar nisto, é muito complicado. É uma obra de psicanálise, de análise.

E fez análise. Foi por isso ou por tudo o resto?

Fiz análise porque queria conhecer-me melhor.

Isso foi numa altura decisiva da sua vida, foi com que idade?

Trinta e seis anos, talvez. Foi há muito tempo, numa altura em que ninguém fazia análise.

E o que é que descobriu de si que não conhecia antes?

Descobri muita coisa, foi uma das grandes experiências que tive. Quase que aconselharia parte das pessoas que conheço a fazerem psicanálise, não todas, mas parte. Em Portugal a psicanálise faz algum susto a algumas pessoas, apesar de serem inteligentes, ainda está muito ligado com a psiquiatria.

“E há coisas que eu não quero ver...”

E há coisas que eu não quero ver! Mas eu quis ver como é que era e vi coisas fabulosas em mim, descobri porque é que faço determinada coisa e isso é muito importante.

Foi em que momento da sua carreira?

Foi num momento de grande stress, no Villaret, no pico dos problemas do Villaret. Andava muito cansado, completamente cansado. Recordo-me de cada sessão que fiz com o fabuloso psicanalista, absolutamente fabuloso. Quando saía, vinha para a rua a flutuar a 20 centímetros acima do chão. Passava-se no início da tarde e eu guardava a tarde, só tinha que fazer à noite, ia invariavelmente para o hotel do Guincho sentar-me a olhar para o mar. Ficava ali horas, numa calma absoluta, fez-me um bem enorme, cada dia que passava ia-me reencontrando, saía de uma bruma e sentia-me nítido.

E quando é que parou?

Quando ele me disse: “não é preciso mais, você é uma pessoa que tem uma saúde mental absoluta”.

Um tipo que é tido como cómico, quando está a fazer psicanálise despe-se ou usa o seu humor para contar aquilo que lhe aconteceu?

Falar no divã é difícil, a gente sente-se nu, mas por estranho que pareça isso faz parte: é o esquema. Aquele tratamento é isso mesmo, eu tinha sessões em que não dizia uma palavra.

Problemas de bebida, teve? Ou só assistiu aos outros a beber?

Não. Apesar de tudo, na noite fui sempre um bebedor muito irregular. Embebedei-me duas vezes, mas foram bebedeiras tais e tão grandes que nunca mais consegui beber. Foi uma coisa patética, tão horrorosa que não quero lembrar-me mais disso. Até em termos estéticos é horrível.

Eu bebo, mas tenho como que uma artilharia na minha cabeça que me impede de beber aquele copo que vai estragar tudo. Alguém disse: “eu devo muito mais ao álcool do que álcool me deve a mim”.

Televisão, teatro, cinema: Dom Roberto! A personagem do Dom Roberto e o Raul o que é que têm em comum?

Têm muita coisa, o sonho: aquele personagem é um sonhador, tem um grande sonho, tem o amor aquela mulher. Um amor infinito. A simplicidade. Acho que tem muita coisa a ver comigo.

E como é que construiu aquela personagem? Apercebeu-se da responsabilidade que estava a ter naquele momento? Fazer um filme que fugia ao que era normal até então?

Inteiramente. E fazia ao mesmo tempo uma revista a contar a história da guerra!

Registos diferentes.

Completamente. Foi um trabalho muito importante para mim porque me deu uma credibilidade intelectual que eu não tinha. Em rigor, também hoje não tenho uma grande credibilidade intelectual!

Tem a sua, a sua credibilidade.

Mas não sou um intelectual e tenho pena. Como há bocado disse: a inteligência é o grande espectáculo do mundo e eu gostava de ser muito mais inteligente do que sou, mas enfim. O Dom Roberto deu-me essa credibilidade de que eu tinha necessidade. Queria que as pessoas me olhassem de outra maneira, de outra forma.

E queria destacar-se da “guerra” já era um espartilho que não queria?

Nessa altura ainda não, eu achava que isso fazia parte. A ala intelectual a partir da “guerra” passou a olhar-me de outra maneira, achando que o humor que eu fazia era inteligente.

Até lá não achavam?

Achavam, mas eram mais enfáticos. O Dom Roberto era um reforço que me fazia muito bem.

Depois disso fez muito mais coisas, há outra personagem em 1986, na “Balada da Praia dos Cães”, que também é mítica...

É, tive a pouca sorte por não participar naquele cinema dos anos 40. Era divertidíssimo e quando vim para este mundo achava que queria ser cómico no cinema, afinal, fui sempre o “Tarzan do quinto esquerdo”. Também é um papel, dramático, ou seja, fiz sempre papéis dramáticos no cinema. Fiz pequenos papéis cómicos, não me deram mais confiança do que isso.

Teve uma vida muito “acelerada”, depois, de um momento para o outro, auto-impôs-se rédeas. Foi “o enfarte do Caracas”? Foi isso que lhe fez repensar a vida?

Foi, não posso correr mais assim, desta maneira.

Estou a acabar comigo?

Estou a acabar comigo, estou a acabar com tudo.

Como é que isso aconteceu?

Passou-se em Junho [na Venezuela], e já tinha feito cinco viagens transatlânticas a trabalhar. Estava completamente estoirado, ou seja, andei a embalar aquele enfarte durante anos e anos. Amamentei-o carinhosamente, até que ele apareceu, surgiu. Dizem que nos enfartes que não são mortais as pessoas duram para toda a vida. A partir daí achei que tinha que moderar...

E aí impôs-se regras ou fugiu?

Não me impus regras, elas são impostas por nós próprios sem a gente pensar nisso. Muda-se de comportamento imediatamente. Ficamos com muito mais calma e saboreamos a vida de outra maneira.

É um outro Raul por dentro depois desta experiência?

Sim, sou. Passei a olhar para as pessoas de outras maneira, a gostar ainda mais de gente. A saber mais uma vez que o projecto da fortuna não me pertence.

Nessa altura teve grandes sinais de solidariedade, aliás, a única vez que teve a sua relação com os portugueses um bocadinho mais chamuscada foi por alturas daquela frase: “A festa dos cravos foi bonita mas está aí a conta da florista”. Não vou fazer a pergunta de onde estava no 25 de Abril, sei que estava na Roménia.

Estava na Roménia. Esperei toda a minha vida por aquele momento. Quando cheguei a Portugal tinha que me ir embora passados cinco dias para fazer um filme. Tinha de estar a 26 de Abril no Brasil mas só fui dias depois, não podia sair daqui...

Assistiu ao Primeiro de Maio? O que é que esse dia teve de especial?

A libertação. A fabulosa libertação de uma pessoa que se sente amarrada, que vai para o estrangeiro e é vexado: “Ele é português” As pessoas olham com pena. Quando se fala de Portugal as pessoas torciam o nariz, horrível.

Mas aí não era protagonista, assistia.

Zero, nada. Aí, curiosamente, todos os protagonistas portugueses foram ultrapassados e surgiram novos protagonistas.

E o seu de eleição é o Mário Soares, certo?

É.

Depois o Raul pôs-se de parte. O seu amigo Alçada Baptista também. No outro dia ele contou-me que um dia o Salgado Zenha até lhe disse: “Quem me diria que eu ia assistir à tua degradação intelectual!”. Acha que foram mal vistos por não terem participado?

Isso é muito engraçado. Eu participei, mas naquela altura a grande parte dos actores e intelectuais escolheram o Partido Comunista, então, como que me acusavam por não ser do partido.

E porque é que não foi para o Partido Comunista?

Porque tinha chegado da Roménia e tinha visto como era.

Nessa altura procurou apresentar algumas peças que se enquadrassem com o que se estava a viver, houve uma peça na altura que foi especialmente marcante: “O soldado Schweik”.

Fui convidado para ganhar, penso que 210 contos por mês numa revista no Parque Mayer, contratado pelo Sérgio de Azevedo, ainda no outro dia falámos sobre isso. Recusei e fui ganhar vinte contos a fazer o Schweik. Eu queria participar também. Fiz o Schweik que teve mais público, estava sempre cheio, sempre esgotado. Era um espectáculo do Artur Ramos, um grande espectáculo!

Outro dos seus grandes amigos?

É.

Perdeu amigos na vida?

Quando a gente os perde é porque não são amigos.

E ganhou muitos?

Ganhei.

Porque é que hoje funciona a meio gás, pode dizer-se isto, que funciona a meio gás? Porquê? As gerações mais novas não têm o direito a usufruir de si?

Porque cada vez mais eu quero agarrar-me à vida e viver.

Então o que é que faz hoje?

Muita coisa, faço imensas coisas. Faço uma ou outra coisa de televisão, uma ou outra coisa de novelas, depois, páro e volto... Agora, tenho um projecto que me está a entusiasmar imenso: fazer uma espécie de colóquios pelo país.

Sobre?

Só posso fazer colóquios sobre o mundo do espectáculo, não posso fazer sobre mais coisa nenhuma, não sei botânica, nem matemática.

Chegar e conversar?

É e tenho um ecrã com slides que vai mostrando a minha vida: uma vezes ficcionada, outras reais. Para provocar o riso. Riem-se imenso. Depois de tudo, proponho falarmos, a pessoas não falam, a televisão inibiu-nos, congelou-nos a fala: “já que estamos aqui vamos falar uns com os outros!”

É uma atitude reflexiva sobre aquilo que fez. Não é um ponto final?

De forma nenhuma. É um tempo da minha vida. Acho que Portugal é um país deslumbrante e nunca me canso de viajar e ver, espiolhar tudo. Gosto imenso de comer bem e com muita gente, tenho tudo aí.

O Raul nunca põe um ponto final em nada. É engraçado, quando a Leonor Xavier lhe pediu para a ajudar a pôr o ponto na sua biografia, disse a frase: “A história continua”.

Sempre. Nenhum actor gosta de parar porque as saudades da profissão são muitas: o aplauso, o agrado, o carinho é para nós um pão que precisamos comer todos os dias, ou pelo menos, de vez em quando. Precisamos de estar com gente que gosta de nós, os actores são todos vaidosos, quem não se expõe desta maneira não serve para esta profissão. Faço isto que estou a fazer com um prazer infinito.

Há programas seus que hoje apenas precisariam de pequenas alterações, como o Faz de conta. O que é preciso para voltar a vê-lo na televisão?

Tudo o que fiz na televisão fui eu que lá fui oferecer, ninguém me convidou.

E agora?

Agora, ninguém me convida.

E o Raul já não sente vontade de ir bater à porta?

Nada.

Uma vez disse que as 17 horas mais importantes da sua vida foram as da «operação pirâmide». Como que é que surgiu essa ideia?

Foi muito importante. A ideia surgiu, fundamentalmente, para fazer com que os portugueses, que estavam ainda com muitas feridas da revolução, se unissem num projecto qualquer.

Então a razão era o menos importante...

Era, naquele momento deu cento e tal mil contos, hoje seriam quatro, cinco, ou seis milhões de contos. Não sei quantificar. Mas não resolvia os problemas do país. O mais importante daquele projecto foi fazer as pessoas felizes, serem solidárias sem perguntarem qual era o partido. Naquela altura toda a gente perguntava qual era o partido.

E ali ninguém perguntou isso?

Ninguém. Foi o espelho de Portugal em cima de um palco.

E foi o Raul que esteve à frente dessa ideia?

Fomos os três.

Quando pensou em escrever a sua biografia, a Leonor Xavier falou com António Alçada Baptista, com um jornalista brasileiro que cá estava na altura e com o Sérgio Godinho. Este último disse-lhe: “cuidado, o Raul é um mito!”. O que é que o aproxima das pessoas, parece que cada português tem uma relação pessoal consigo?

São muitos anos. Tive uma grande visibilidade através da televisão, fundamentalmente. Agora, quando me dizem que eu sou um mito, fico um pouco assustado...

Sente-se?

Não é isso, tanto assim que ando de metropolitano, ando na rua. O que detestava, quando tinha uma popularidade exacerbada, era quando as pessoas me puxavam e me rasgavam. Queriam que eu fosse engraçado, de serviço sempre, agora não. Agora é uma maravilha, as pessoas sorriem, tratam-me muito bem e não me importo nada de andar no meio da multidão.

Não lhe acontece, no meio da multidão, uma pessoa olhar para si e pensar: “não vou fazer nada, não vou sorrir, vou fingir que não te vi”?

Deve acontecer, às vezes acontece. Acho que sim, quando um tipo é um mito, um vulcão, as pessoas olham para ele. No meu caso riem-se, é o riso, porque lembram-se de coisas que eu fiz.

O segredo não será aquela diferença entre rir-se dos outros ou com os outros? Com o Raul, as pessoas riem-se de si.

O humor é sempre contra alguma coisa, nunca pode ser em favor de nada. Nenhum cómico do mundo tem a unanimidade universal, nem o próprio Chaplin a teve. Um humorista sempre trata mal alguém.

Mas no caso do Raul prefere tratar-se mal a si...

E aos poderosos imbecis. Tenho passado a minha vida a pôr gente no ridículo, porque não gosto deles, incomodam-me.

E tem problemas com isso?

Nada.

Não tenta dizer mal e depois ir bater nas costas?

Não.

Há quem faça isso em Portugal!

Não sei, se fazem, não fazem bem. Agora, quando não tenho mais ninguém para dizer mal, digo mal de mim próprio.

Ri-se com os outros de si.

O que estou a fazer nas “conversas sem método”, quando começo ponho-me a ridículo porque senão ninguém ri. E realmente há muito coisa que fiz que foi ridícula e tenho que o dizer. Não posso ir para ali dizer sou formidável, sou uma maravilha, não faz sentido. Há pessoas que me dizem: “toda a gente gosta de ti”. É mentira, detesto a mentira.

Mas é uma das pessoas mais adoradas neste país.

Talvez, mas há pessoas que não gostam nada de mim e têm razões boas para isso

Às vezes não precisa de dizer nada e as pessoas já estão a rir, não tem essa sensação, de que as pessoas gostam de si?

Sim, sinto que as pessoas gostam de mim, mas ninguém pense que não tenho, não digo inimigos, pessoas que não gostam de mim. De resto, acho que um homem para cumprir bem esta vida tem que ter inimigos, senão não tem carácter, nem opinião própria. Não defende as suas causas, não se expõe. Durante a revolução fiquei de um lado e há pessoas que têm alguma mágoa por essa razão.

Mas é um homem de esquerda?

Acho que sim, fui de esquerda, hoje não sou nada. Mas tenho que dizer que não sou nem de esquerda nem de direita, senão pensam que sou de direita.

Como é ser avô?

É ser pai.

Está mais próximo dos seus netos do que esteve dos seus filhos?

Quando eles nasceram senti como que uma explosão de luz que não senti quando os meus filhos nasceram, estava muito ocupado, muito absorvido pelas coisas e tudo me passava por cima da cabeça. E isso não quero que me aconteça mais.

E passa tempo com os seus netos, “leva-os ao jardim zoológico”?

Ainda não os levei, deixei isso com os pais. Eles moram longe de mim, não tenho muita facilidade em vê-los.

E o outro seu filho?

Tenho uma excelente relação com ele, vive em Copenhaga, mas a gente telefona-se imenso.

E falam em que língua?

Português. Ele viveu cá até aos 19 anos, tem agora 26.

Teve filhos muito tarde, porquê?

Assim aconteceu, calhou.

A última pergunta: o que é que não perguntei e devia ter perguntado?

Não sei, acho que nada. Fizemos uma viagem pela minha vida.

Entrevista publicada na revista PÚBLICA de 17 de Fevereiro de 2002
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