Talvez por os Beatles terem feito oito disco em quatro anos, mostrando uma evolução imparável (goste-se ou não, não é isso que está em causa), o discurso pop sempre esteve cheio de declarações sobre "evolução". É como se por norma os músicos não quisessem ter uma ideia e melhorá-la vez após vez, antes sentissem necessidade de descobrir o Santo Graal de cada vez que pegam nos instrumentos.
Pelo que volta e meia aparece um músico que, contente com as suas recentes proezas, desmerece o seu passado. (Isto não acontece apenas na música, e na poesia não é de todo raro.) Mas talvez ninguém tenha sido tão rápido a desmerecer-se como Florence Welch.
Welch é conhecida no mundo da música como Florence and The Machine. O seu primeiro disco, "Lungs", acaba de ser lançado por cá. No Reino Unido, ela tem sido extremamente bem recebida, sendo comparada a músicas como Kate Bush e Björk graças, presume-se, ao seu vozeirão que facilmente se adapta a um sem número de registos.
(Note-se que, ao Ípsilon, Florence afirmou que os seus discos preferidos são "Funeral" dos Arcade Fire, e "Raw Power", de Iggy Pop.)
Em "Lungs", ou melhor, em quase todo o disco, Florence cria uma pop orquestrada, não-linear, cheia de sombras e harmonias de piano e harpa, transportadas por percussões pesadas que ditam andamentos fortes. Os refrões estão algures entre o explosivo e o épico. A crítica gaba-lhe a capacidade de mostrar talento pop nos refrões mantendo um certo grau de experimentalismo. Em alguns casos vai-se ao ponto de dizer que quem gosta de Nick Cave e Tom Waits encontrará em "Lungs" companhia certa, mas isso talvez se dê ao grau de sombras que povoam o trabalho lírico de Florence.
Mas olhem o vídeo de "Kiss with a fist", primeiro single de Florence and The Machine, lançado a 8 de Junho do ano passado.
Temos uma canção punk-pop banal e uma rapariguinha de saia muito curta que dança e dança e abana a cabeça e rebola até que a saia, obviamente, se levanta uma, duas vezes, revelando não tão pequenas cuecas vermelhas. Experimental? Nick Cave? Num vídeo de Nick Cave esta rapariga acabaria morta.
E é aqui que entra a negação de Florence. Ao telefone de Londres ela diz-nos peremptoriamente: "Já não gosto desse vídeo". Quando lhe perguntamos porquê, ela hesita. "Não sei", começa por dizer, antes de atirar um muito conservador "Acho que não é apropriado". Florence não gosta "das roupas", não gosta "da dança" e, sendo honesta, "a canção também não é muito artística, é uma canção de rapariguinha".
Segundo Welch, a razão pela qual aceitou fazer o vídeo tal como lhe pediram é simples: "Era o meu primeiro vídeo, não queria armar-me em diva e dizer 'Não faço isto'. Esse vídeo ensinou-me a ser fiel ao que sou."
O vídeo, que tal como Florence diz, pertence a uma canção que não é de todo exemplar do que se encontra no disco, permitiu que "Kiss with a fist" chegasse a número 58 da tabela de vendas de singles, colocando o seu nome no mapa pop muito antes de o disco de estreia estar pronto. ("Lungs", por sua vez, está há 23 semanas no topo da tabela de vendas do Reino Unido, ocupando neste momento o segundo lugar.) Houve uma ligeira polémica em torno da canção, que foi vista por alguns como uma denúncia da violência doméstica, mas pode ser exagero, já que casais ao murro (como o da canção) sempre houve na pop - um deles, "(He hit me and) It felt like a kiss", de Phil Spector, faz parte da galeria de ouro dos singles pop.
Esse é um dos detalhes interessantes em Florence and The Machine: uma escrita pejada de infância, amores e desamores, cujo universo metafórico quase raia, por vezes, o gótico. "Sou uma rapariga muito imaginativa", diz Florence. "Leio muito e queria fazer uma coisa eterna, que não pertencesse a uma época, queria retirar todas as referências a esta época para fazer as letras perdurar. Queria que aquelas letras fossem como caminhar através de um pesadelo".
Rapariga em transição
Florence Welch não parece ser a típica ascensora social sempre pronta a mostrar as cuecas vermelhas para ter atenção. A mãe era historiadora de arte e o pai publicitário, ascendentes que estão longe de ser os habituais no cânone pop. Florence diz que perdeu "muito tempo a fazer concertos com bandas muito más ou a fazer coros para outros vocalistas" antes de ser descoberta.
Segundo Welch, havia um problema recorrente nesses bandas: "Os rapazes tentavam sempre moldar-me em qualquer coisa diferente, talvez por terem uma ideia prévia do que eu devia ser". "Talvez os rapazes me achassem a musa deles", complementa, antes de rematar: "Mas eu não quero ser isso". (O facto de as qualidades físicas da menina Welch serem notórias talvez explique o comportamento dos rapazes.)
Ela não nos conta como foi descoberta, mas contou ao "Telegraph". (Já foi difícil contar o que quer que fosse tendo em conta que a entrevista durou exactos 15 minutos contados ao segundo.) Em Dezembro de 2006, Florence encontrou Mairead Nash, uma promotora de música londrina, na casa de banho de um clube da capital, o Soho Revue Bar, e, encostando-a à parede, resolveu cantar-lhe um pouquinho de Etta James. Pouco ortodoxo, porém eficaz. Os The Machine ainda não existiam nessa altura - hoje são sete músicos.
"Só recentemente é que decidi que devia fazer tudo por mim", diz Florence, e a avaliar pelo êxito de vendas e pela aclamação crítica tem boas razões para estar contente por ter optado pela música mais complexa que enche "Lungs" (à excepção de "Kiss with a fist") e por não voltar a fazer vídeos centrados na pequenez da sua saia.
Logo no vídeo de "Dog days", segundo single, opta-se pelo "lo-fi" e por um universo entre o onírico, a bruxinha e a fada. É um vídeo mais próximo do universo de "Lungs", e é, ainda assim, um vídeo com um universo bastante feminino ainda que não de forma estereotipada.
"Tenho muitas facetas que são eminentemente femininas e acho que isso é perceptível de imediato", diz Florence. "Tento transmitir algo simultaneamente forte e frágil, o que presumo ser feminino". É por isso, diz ela, que a comparam a Kate Bush e a Björk, apesar de achar que "a música [que fazem] não é minimamente parecida, tal como a voz".
Ela tem uma simples teoria acerca das comparações de que é alvo: "Talvez eu esteja no meio do espectro do que é a mulher. Não caio em nenhum género".
Florence diz estar "na transição de ser adolescente para ser mulher". Ela acha que por vezes, em "Lungs", a componente adolescente ganha, porque "algumas canções foram escritas quando tinha 17 anos". Uma boa parte do disco, diz, é acerca dessa linha que se atravessa quando se deixa a adolescência e começam a nascer novas perguntas: "Quando se chega aos vintes começamos a achar que temos de ser adultos e perguntamos: 'O que vou fazer agora?'. Pensamos sempre: 'No ano que vem vou perceber'. Mas acho que isso nunca vai acontecer".
Se quiserem um bom resumo de "Lungs", sem os exageros de alguma crítica, perguntem a Florence Welch: "É um disco acerca do primeiro amor, acerca da primeira perda, é um disco sobre a descoberta".
A última declaração da menina é acerca da visão disfuncional do amor que percorre o disco: "Sim", admite ela, "nas relações amorosas dou por mim a cair constantemente, como acontece às personagens das minhas canções. Sou um pesadelo no que toca a relações. Penso que se pode ser, quando se tem 22 anos".
Ao cuidado da rapaziada mais nova.