A vida segundo Scott Adams
"O objectivo de um plano é disfarçar o facto de que você não faz a mínima ideia do que devia estar a fazer."Scott Adams, in Dilbert's Guide to the rest of your life
Declaração de interesses: sou um fã. Não sei há quantos anos conheço o Dilbert, mas fiquei fã desde a primeira vez. Há naquela candura e naquele laconismo tanta agudeza e tanta verdade que não podem deixar de nos cativar. Ao princípio achava-as apenas divesrtidas e bem-dispostas. Depois (à medida que foi crescendo a minha experiência das coisas das empresas) percebi que afinal era tudo verdade e ao sorriso somou-se aquele frisson e aquele awe de estar a assistir à descrição do mundo talcomelé.As tiras do Dilbert têm a mesma qualidade ácida dos Simpsons dos primeiros tempos mas ainda menos esperança na espécie humana, só que com a vantagem adicional de nos falarem das empresas onde trabalhamos e que são mesmo assim, com administradores sem escrúpulos, com directores irresponsáveis, chefes estúpidos, capatazes servis, cow-orkers (sim, é esta a grafia certa no mundo Dilbert) dispostos a matar o colega para ter uma promoção, com objectivos incompreensíveis, normas irracionais, reino da arbitrariedade, do desperdício e da coerção e sem sequer uma camada fininha de humanidade para salvar as aparências.
Reconhece? Não? A descrição parece-lhe exagerada, não é? Agora leia algumas das tiras do Dilbert (que é, explique-se, um pacato e sensato engenheiro informático numa grande empresa que faz coisas que nunca se percebe o que são). Reconhece alguém? E não acha que aquilo é desumano/estúpido/irresponsável? I rest my case.
Quer exemplos? Escolha-se um deste mês, de entre os mais de 7000 possíveis (a tira fez 20 anos em 16 de Abril passado).
Chefe: Dilbert, quero que faça uma auditoria ao software que temos nos nossos sistemas.
Dilbert: Porquê?
Chefe: Para que possamos saber o que temos.
Dilbert: Quem é que vai usar essa informação?
Chefe (explicando o óbvio): É uma informação que é importante ter.
Dilbert: Mas a informação vai estar desactualizada antes que eu acabe o trabalho.
Chefe: Faça da melhor maneira possível.
Dilbert (sempre racional): A melhor maneira possível de compilar informação incorrecta que ninguém vai usar é inventá-la.
Epílogo. Chefe (falando com Catbert, o malvado Director de Recursos Humanos): Espero que nunca venha cá ninguém para estudar as nossas boas práticas.
De onde vêm estas ideias todas? Como é que o autor de Dilbert, Scott Adams, sabe tudo? Obviamente, ele conheceu este mundo empresarial por dentro. Há ali experiência que não se aprende nos livros.
Adams, hoje com 52 anos, estudou Economia em Nova Iorque e foi trabalhar para um banco em São Francisco, onde esteve sete anos - e onde conheceu muitos engenheiros informáticos (Adams já revelou que Dilbert se baseia numa pessoa real, mas essa pessoa não sabe e ele não diz quem é). Depois de sair do banco, fez um MBA e entrou para a empresa de telecomunicações Pacific Bell. Começou a publicar o Dilbert - Adams diz que aprendeu a desenhar com grande esforço - quando entrou para a Bell e manteve-se na empresa durante seis anos, mesmo quando o Dilbert já era um enorme sucesso. Hoje, a tira é publicada em 2000 jornais, em 65 países e 25 línguas. Uma das edições com mais êxito é publicada na Elbónia. Em Portugal, Dilbert é publicado pelas Edições Asa.
Mas não é só à sua experiência que Adams - vegetariano e hipnotizador diplomado - vai buscar histórias. Há muitos anos que a sua principal fonte de ideias são os seus leitores, que lhe contam o que acontece nas suas empresas e que vêm desabafar no seu mail. Acha que não é possível que Dilbert seja baseado em histórias reais? É porque nunca ouviu falar daquela empresa que substituiu os computadores desktop por portáteis e aparafusou os portáteis às secretárias. A empresa teve razões sólidas para ambas as decisões: a compra dos portáteis destinou-se a permitir que os trabalhadores usassem os computadores durante as suas deslocações (um objectivo razoável) e o seu aparafusamento às secretárias destinou-se a evitar roubos (outro objectivo razoável). Faça a experiência: tente ouvir a voz do seu chefe a dar estas explicações. Fácil, não é? Eu também podia dar exemplos pessoais, mas só me deram uma página para escrever este texto.
A contribuição dos leitores é aliás o grande truque do êxito de Scott Adams e deve-se a algo que ele diz que aprendeu no MBA. A maior parte dos cartoonistas faz um cartoon e manda-o para um agente que o manda para um jornal que o recusa ou aceita. Assim, a única interacção do autor é com o agente (às vezes também com um amigo que vem beber uma cerveja, mas ele pode não ter paciência para ver os cartoons todos). O autor sabe quando o agente ri ou não, mas não faz a mínima ideia da reacção dos leitores. "O cartoonista nunca sabe se o leitor ri ou não ri. É uma via de sentido único", explica Adams numa entrevista dada à revista BizEd em 2002.
Adams percebeu que esta era uma falha importante do negócio e, em 1993, decidiu incluir o seu endereço de e-mail nos cartoons para receber feedback. Foi assim que nasceu Dilbert-tal-como-o-conhecemos-hoje.
Ao princípio Dilbert aparecia em casa e no escritório, mas os leitores disseram que gostavam mais das tiras passadas no escritório e Dilbert começou a passar mais tempo no trabalho. No fundo - e eu sei que é horrível admitir isto - Dilbert é fruto de um sofisticado marketing. E Adams tornou-se imensamente rico à sua conta. Ele não diz quanto, mas concede que ganha muito mais do que merece. A aposta na relação com os leitores prosseguiu: o site de Dilbert, por exemplo, é completamente grátis e permite ver, guardar e enviar cartoons aos amigos ou até editá-los (os cartoons).
Scott Adams, porém, se não é um Jedi, não se passou completamente para o Dark Side. Adams diz que a gestão é o Mal - só que pensa que isso é inevitável: "A gestão é, basicamente, um ramo do mal", explica na mesma entrevista. "Quando digo 'mal' quero dizer que as pessoas fazem coisas que são boas para si à custa das outras pessoas. E essa é a essência da gestão. E o objectivo da liderança é levar as pessoas a fazer coisas que nunca quereriam fazer por si sós. Portanto, de certo ponto de vista, toda a liderança torna as pessoas infelizes. Não é possível ser um gestor eficaz e não ser mau." Adams dizia isto em 2002, quando já tinha saído da Bell há sete anos e quando era accionista (mas não gestor) de um restaurante com duas filiais e fundador e gestor de uma empresa de comida saudável (que fechou em 2003). Mas em 2007 Adams começou a envolver-se directamente na gestão dos seus restaurantes - para lamento dos seus funcionários. Adams tenta não repetir os erros dos seus personagens, mas diz que é inevitável - e os seus empregados confirmam.
Há quem ache que Dilbert é uma poderosa arma anticapitalista e um exemplo de activismo anti-corporate, mas Marx não gostaria do Dilbert. A verdade é que Dilbert é uma insider joke e não ataca mortalmente o coração pérfido do sistema, apenas lhe faz cócegas. O cartoon é uma excelente válvula de escape para as críticas intra-empresariais e é muito apreciado pelos gestores, que nunca se revêem nas safadezas cretinas do Pointy-Haired Boss, na perversidade de Catbert, o malvado director de Recursos Humanos, ou na cupidez do CEO Dogbert. Mas nós sabemos que eles são assim.