Cunningham dizia que as suas danças habitavam o palco como uma rua é habitada por pessoas. Elas deslocam-se em velocidades diversas. Avançam, podendo, imprevisivelmente, mudar de direcção ou parar. Podem olhar- -se ou ignorar-se, aproximar-se ou afastar-se umas das outras. Cada uma ocupa um espaço próprio e traça um percurso diferenciado, sendo possível, por sua vez, serem vistas por vários observadores, de várias perspectivas.
Nesta imagem, de uma clareza desarmante, convergem todos os traços que identificam a revolução cunninghamiana: a liberdade do coreógrafo relativamente aos imperativos da subjectividade; a liberdade dos intérpretes relativamente ao imaginário do coreógrafo; a liberdade do espectador relativamente à escrita coreográfica do criador e à interpretação do intérprete. Cunningham libertou o movimento de motivações psicológicas ou narrativas, o que lhe permitiu trabalhá-lo de forma objectiva.
Encontrou novas formas de trabalhar e usar o corpo, valorizando as articulações e as combinações complexas. Instaurou uma nova representação do espaço e uma nova concepção do tempo. E instituiu uma nova relação entre os diferentes elementos do espectáculo (música, cenário, figurinos e luzes). Se hoje é natural que no espaço do palco todos os pontos, todas as direcções e todos os percursos sejam relevantes, que os vários elementos do espectáculo possam ser criados autonomamente, é porque Cunningham tornou isso possível. Como tornou possível que as relações entre os bailarinos sejam de igualdade, sem hierarquia de papéis ou lugares.
O uso do acaso como meio de criação de formas e a ruptura com os imperativos de um uso do espaço-tempo tributário de uma tradição clássica e com os códigos tradicionais de construção coreográfica transformaram as danças de Cunningham em universos em expansão, precipitando-nos para o infinito, para o desconhecido, confrontando-nos com a desmesura do mundo. Fê-lo com tranquilidade, usando um movimento sem conflito nem resolução, sem causa nem efeito. Fê-lo com a energia e a constância de uma alma corajosa.