O rock como no tempo dos Eagles
Conta-se que em 1980, quando os Eagles deram o último concerto da sua primeira vida, o ambiente era tão salutar que o pessoal da banda contava o número de canções para o final e ia vociferando: "Só faltam duas para te dar cabo do canastro". Essa era a primeira vida dos Eagles, quando eram uma das mais bem sucedidas bandas americanas, especialistas num country-rock limado para prazer dos topes e senhores de um pedigree rock'n'roll impoluto: histórias de membros expulsos por ousarem alterar algumas notas do solo de Hotel California, facadas nas costas, lutas de egos, o deboche épico e bem documentado que lhes valeu a alcunha de "Cocaine Cowboys".Os Eagles foram um produto do seu tempo e da América do seu tempo. Hoje, são a memória de um par de canções que o FM manteve em rotação assinalável e, mais que isso, a nostalgia por uma certa ideia de rock, tremendamente datado: de um lado, as baladas açucaradas, do outro, riffs de guitarra abrindo caminho para o inevitável orgasmo - o solo, claro está. Foram esses que estiveram quarta-feira no Pavilhão Atlântico, última data de uma digressão europeia de dois meses.
Portanto, atrás de nós, um homem e uma mulher discutiam contratos de compra e venda de apartamentos no Algarve. À nossa esquerda, de braços cruzados e pernas dançando o possível que isto é um concerto, outra mulher era fotografada por outro homem, armado de telemóvel tecnologicamente evoluído. À direita, um grupo de quarentões e cinquentões agachava-se nas suas camisas listadas, veraneantes, para simular solos de guitarra, equilibrando estoicamente os copos de cerveja. Vimo-los todos muito bem porque, em contraste com as bancadas repletas, a plateia estava longe, muito longe da lotação de acontecimento - no Atlântico, cerca de 12 mil pessoas.
Hotel California, a canção mais esperada, foi despachada logo a início. Um trompetista lança-se numa introdução mariachi, há quem simule espetar bandarilhas no companheiro do lado e o ecrã em palco exibe as palmeiras "daquela" capa de álbum. O público grita em reconhecimento e o amigo das bandarilhas abandona o humor para se entregar à emocionada cantoria da canção que há muito, tanto tempo, foi requiem pelo sonho americano da década de 1960.
Don Henley, o baterista cantor, canta tal como no disco. Timothy B. Schmit, o baixista, surge como âncora que nos guia à década de 1970 (no seu longo cabelo escorrido é, digamos, o índio da banda). A canção avança. O guitarrista discreto e Joe Walsh, o homem dos solos estriposos, começam a coreografia esperada: passo a passo, aproximam-se um do outro de guitarra em punho, à medida que o solo (esse ao qual, sob a pena de heresia, é proibido alterar uma nota), se aproxima do seu épico final. É a única canção que todos conhecem e a quarta de um concerto de três horas. Arriscado, certo? Errado.
O concerto dos Eagles, banda à antiga que faz um intervalo de quinze minutos para as gentes saciarem a sede e a ansiedade por nicotina, é uma experiência morna. Um encontro de pessoas da mesma geração, que vai ver música do seu tempo, tocada como no seu tempo. Tudo muito certinho, tudo muito aprazível e sem faúlha que se ilumine: "Esta canção é de 1975 e é muito longa, mas escrevemo-la muito rapidamente", diz a certa altura Glenn Frey, um dos fundadores da banda. "Era tudo muito rápido em 1975", acrescenta - o público, naturalmente, responde-lhe com o sorriso cúmplice de quem partilhava a mesma celeridade dos idos de 70. Agora, a urgência é outra.
Take it to the limit surge dedicada à filha de Frey e ao seu primeiro cartão de crédito. One of these nights tem o aniversariante Henley, de 62 anos, de novo à bateria (alternou-a com percussões e guitarras) para cantar um híbrido rock-disco que, por um momento, transforma os Eagles em primos redneck dos Bee Gees - e inspiração para quebra-corações de melenas impecáveis como o saudoso Richard Marx.
Durante o concerto, ouvem-se canções country, versão new-age, como No more walk in the woods, do álbum de regresso Long Road Out Of Eden (2007), e vêm-se imagens de jogos de basebol, de poços de petróleo, mapas de Damasco e demais actualidades.
Mesmo no final, chega Life in a fast lane, coisa roqueira, e percebemos que a liberdade é decerto uma Harley Davidson e um bar na beira da estrada. O pessoal abana-se um pouquinho, o ex-Delfins Fernando Cunha ergue os mãos em aplauso, Olavo Bilac acompanha-o com fervor.
Os Eagles estiveram em Lisboa e tocaram Hotel California. Os anos 1970 são tão bons, não foram?
Mário Lopes