Iranianos em Portugal: Ver o que se passa no Irão de longe e com espanto

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Paulo Pimenta

Três iranianos a viver em Portugal estão a acompanhar o que se passa em Teerão com incredulidade. Um deles é um estudante que ainda há pouco mais de um ano estava no Irão. De Faro, viu um amigo no vídeo que correu mundo e mostra a morte de uma manifestante, Neda. O outro é um professor que saiu do Irão antes da revolução islâmica. De Braga, vê os vídeos de uma Teerão diferente: uma multidão junta-se na praça que sempre conheceu como Praça da Memória do Xá e que hoje é a Praça da Liberdade. Ambos têm uma palavra para a contestação: "Incrível". Um terceiro iraniano, médico dentista no Cacém e na Parede, é mais contido na apreciação. Menos interessado em política, diz que o que se passa no país é "uma confusão".

Estes três iranianos que vivem em Portugal ouvidos pelo P2 - outros foram contactados mas recusaram dar entrevista com medo de consequências para si ou para a família que têm no Irão - têm histórias muito diferentes. Behrooz Zabihian é um estudante que saiu no ano passado do Irão para o Algarve, onde está a tirar um mestrado em Engenharia Electrotécnica e de Telecomunicações. Nasceu cinco anos depois da revolução islâmica. Said Jalali, professor de Engenharia na Universidade do Minho, que é bahá'i (uma religião que nasceu no Irão, onde é perseguida), saiu do país antes da revolução de 1979 e é tão português como iraniano. Também Ramin Azarpour, dentista, tem nacionalidade portuguesa (embora ninguém lhe tire o sentir-se iraniano) e é único dos três que estava no Irão em 1979. Todos vieram parar a Portugal por acaso, um país que conheciam por vestígios da presença portuguesa (os fortes no estreito de Ormuz) e pouco mais.

Behrooz Zabihian queria ir estudar para a Suécia. Said Jalali planeava passar um ano em África. E Ramin Azarpour fugiu da guerra Irão-Iraque pelo Paquistão, e veio para Portugal pensando que esta seria uma ponte para ir para os EUA. Mas todos ficaram por cá.

Comecemos pelo que chegou primeiro: Said Jalali está em Portugal desde 1972. Na comunidade bahá'i há o que, "nas universidades europeias, se chama hoje intercâmbio", explica Jalali na sala da sua casa em Braga, onde um tapete com inscrições em farsi é o único elemento denunciador da origem da família. Terminado o seu curso, de Engenharia Civil, e com a mulher, estudante de Economia, tinha pensado passar esse "ano de aventura" em África. "Era mais exótico." Mas entretanto "disseram-nos que ainda ninguém tinha ido a Portugal, e viemos para cá".

A ideia era ficar um ano, mas, logo após poucos meses, o jovem engenheiro arranjou trabalho, a sua mulher entrou na universidade, "a vida tornou-se fácil, vieram os filhos, gostámos e ficámos", resume.

Setúbal foi o primeiro destino e ainda hoje confessa torcer pelo Vitória - "também para contrariar os meus filhos, que são portistas ferrenhos". A vinda para Portugal, confessa, "foi mesmo sorte". Ou, acrescenta, de uma forma muito portuguesa: "É destino".

Na década de 1980, Ramin Azarpour, então um jovem estudante, saiu do Irão por causa da guerra. "Tinha acabado de concorrer à universidade em 1982. Ao final de uns meses, fecharam as universidades e chamaram toda a gente para a tropa, tinha de se fazer um mínimo de quatro anos."

Ramin decidiu fugir. "Saí ilegalmente. Demorei quatro dias a chegar ao Paquistão. Depois fui para a Turquia." As autoridades turcas, desconfiadas de tantos iranianos jovens que viajavam no avião, ficaram com os passaportes. "Disseram que alguns pareciam falsos e que iam enviá-los para a embaixada iraniana - isso não queríamos, porque sabíamos que, se fossem, já não voltavam", lembra. "Ficámos cinco dias presos no aeroporto, sem comida, sem nada."

Ao fim desses dias, tiveram autorização para sair - mas não podiam ficar na Turquia. "Muitos países tinham começado a exigir vistos aos iranianos. Só havia dois países para onde eu podia voar sem visto: Portugal e Jugoslávia. A minha ideia era ir para os Estados Unidos. Então telefonei ao meu pai, que disse que para a Jugoslávia era melhor não, porque era comunista, e era mais difícil ir daí para os EUA. E vim para Portugal."

Aterrou em Lisboa "no dia 25 de Janeiro de 1983. Era um dia bom, estava calor... Eu estava todo feliz".

A primeira impressão de Portugal foi boa: "Não havia guerra - a guerra é a coisa mais horrível... As sirenes, as bombas... destruíram mais alvos civis do que militares. Não havia como fugir das bombas".

Entretanto, uma visita ao consulado americano em Lisboa - então na Duque de Loulé - mostrou a Ramin Azarpour que um visto para os EUA poderia demorar dois anos a chegar. "Já não fui a lado nenhum." No Serviço de Estrangeiros, onde foi para saber como seria a renovação do visto, perguntaram-lhe se queria renovação ou residência. "Passados 15 dias tinha a autorização de residência." Estudou cá, é cá que trabalha, já é português e não só no papel.

Para Behrooz Zabihian, Portugal foi "um acaso". "Estava a concorrer para uma bolsa da Comissão Europeia para a Suécia mas ainda não tinha a certeza se a conseguia. Entretanto, disseram-me que havia um lugar livre em Portugal - e, entre o certo e o incerto, preferi o certo", explica. O certo, mas desconhecido. "Sabia muito sobre a Suécia, tinha lá família e tudo, mas nada sobre Portugal. Os meus pais e amigos ficaram um pouco assustados com a ideia - ninguém sabia nada sobre o país." Mas Behrooz não pensava bem assim: "Estava a gostar da ideia da aventura - ser o primeiro a ir a um sítio". E não se arrependeu: sente-se em casa e até consegue comer o pão português (que é fermentado, ao contrário do pão iraniano).

Três visões diferentes

Os exames acabam a 22 de Julho, mas as férias de Behrooz vão ser passadas na Europa. "Agora não é uma boa altura para voltar para o Irão", diz, sentado na esplanada de uma das cantinas da Universidade do Algarve. Mas no futuro não sabe. "Vou ver como estão as coisas e depois decidir - a situação global, no Irão, dos meus estudos... Ainda não tenho um plano específico."

O Irão de onde saíram os três entrevistados era muito diferente: o Irão do Xá, a jovem República Islâmica atacada pelo Iraque, a República Islâmica pós-presidência reformista de Khatami, o "rosto sorridente dos ayatollahs".

Said Jalali saiu do Irão do Xá da Pérsia para o Portugal de Salazar, de uma ditadura para outra ditadura. Viveu a revolução portuguesa de 1974 em Setúbal ("era o único engenheiro numa fábrica em Tróia com três mil operários, todos colados ao rádio e a festejar") e a revolução de 1979 no Irão através da televisão e da família que continuava no país.

"Desde o início, pensei que a revolução [islâmica] não ia na direcção certa", confessa - os bahá'i, que já eram discriminados sob o Xá (Said Jalili não conseguiu um lugar de engenheiro na Câmara de Teerão por ser bahá'i), seriam ainda mais perseguidos na República Islâmica. Os bahá'i são vistos pelos xiitas como "hereges" porque o seu profeta, Baha'ullah, aparece na década de 1860, ou seja, é posterior a Maomé, e foi sepultado em Jaffa, onde hoje é Israel (um acaso da História que ainda hoje leva os fiéis iranianos a serem condenados por suspeita de "espionagem").

"Vocês aqui tiveram muita sorte, a revolução desde o início teve o rumo certo, da liberdade. Essa era a palavra-chave. Mas lá, mesmo de princípio, a palavra-chave não era essa. Depois começaram as perseguições: não só aos bahá'is, mas aos cristãos, até aos sunitas, que também são muçulmanos... E, passado pouco tempo, os políticos liberais que pensaram que iam ter o poder foram muito rapidamente, e completamente, afastados pelos religiosos."

Ramin Azarpour viveu a revolução islâmica - "tinha 14 anos, quase 15" - sem participar ("Os meus pais sim, andaram nos telhados e gritar"). Mas foi ver a chegada do ayatollah Khomeini. "Lembro-me quando Khomeini veio, o meu pai levou-me para ver o ícone da revolução. Mas estava tanta gente que não se conseguia ver nada", conta.

O tempo da revolução, resume-o em flashes: "As pessoas estavam fartas do Xá, começaram a protestar, andavam nos telhados a gritar. Depois houve aquela sexta-feira sangrenta [sexta-feira negra, Setembro de 1978] em que mataram pessoas e as coisas descontrolaram-se. Faltava combustível para os carros, gasóleo para o aquecimento: foi tudo muito difícil. Havia lei marcial, soldados nas ruas... Um dia, as pessoas tiveram acesso a armamento e entraram nos quartéis. Mas, de repente, os soldados tomaram o partido do povo. Também me lembro das execuções, de um dia para o outro um primeiro-ministro morto, um general... As fotografias no jornal. Horrível."

Passado pouco tempo, veio a guerra Irão-Iraque (1980-88). E Ramin Azarpour fugiu. Voltou ao Irão apenas uma vez, aos 40 anos, depois de provar que tinha saído para estudar e não por motivos políticos. Encontrou uma capital muito diferente. "Quando saí, era uma cidade de três ou quatro milhões. Agora tem 12 milhões. O meu pai levou-me a alguns sítios da infância, alguns sítios mal reconheci. Muitas coisas mudaram: havia colinas cortadas por estradas e pontes, um restaurante giratório numa torre...", descreve.

A palavra proibida

Já Behrooz Zabihian nasceu em plena guerra Irão-Iraque. Lembra-se de bombardeamentos sobre Teerão mas não de ter de fugir para bunkers subterrâneos. A guerra trouxe-lhe problemas "15 anos mais tarde", diz. "Porquê? Porque o slogan era ter mais filhos para proteger o país. A minha geração é a maior de toda a era. Todos queríamos ir para a universidade, mas não havia universidades suficientes. Todos queríamos ter trabalho, mas não havia empregos suficientes."

Behrooz entusiasmou-se com o anterior Presidente, o reformista Mohammed Khatami ("tinha 14 anos", lembra, depois de fazer as contas ao calendário persa), "foi uma altura fantástica, andávamos todos envolvidos em política". Mas depressa se desiludiu. "A pessoa mais importante continuava a ser o Supremo Líder [ayatollah Ali Khamenei]." E as restrições continuavam.

Dá um exemplo da Internet para ilustrar a falta de liberdade: "Uma vez, por exemplo, filtraram a palavra mulher. Quando se procurava no Google, não aparecia nada. Se tentássemos procurar problemas médicos de mulheres, não conseguíamos encontrar nada".

Behrooz ainda passou por algumas fases de protestos. "As autoridades iam pondo umas estrelas à frente dos estudantes, e, a quantas mais manifestações iam, mais estrelas tinham. Se tivessem mais de cinco, já não se podia entrar na universidade para fazer um mestrado. Normalmente, os melhores estudantes eram os que tinham mais estrelas", lembra. "Números não oficiais dizem que todos os anos há 100 mil bilhetes de ida a ser vendidos no Irão. São números não oficiais, o número oficial pode ser até metade: é muita gente."

Mas, mesmo com estes antecedentes de protestos, a escala do que aconteceu agora deixou o estudante Behrooz muito surpreendido. Tal como Said Jalali e Ramin Azarpour.

Seguir o que se passa lá

"Incrível, incrível, como as pessoas saíram à rua... Podem não ganhar, pode não acontecer mais nada, mas foi incrível ver as pessoas sair e dizer que não estão contentes com este sistema", diz o professor Said Jalali. "E são tudo pessoas que nasceram com este regime", espanta-se. "Estes jovens a única via que têm é a Internet. No nosso repositório [de artigos científicos da Universidade do Minho], o terceiro país que consulta mais os nossos artigos é o Irão. As pessoas lá estão ávidas de informação."

O modo como tem acompanhado a situação agora é muito diferente da altura em que seguiu a revolução ou a guerra Irão-Iraque: é mais distante, porque não tem pessoas próximas no Irão, mas, por outro lado, vê tudo na Internet. Lembra-se bem de alguns sítios. "Mas os nomes, claro, são completamente diferentes."

"Foi realmente surpreendente" o que aconteceu em Teerão, diz o estudante Behrooz, que veio a Lisboa votar no candidato da oposição Mir-Hossein Mousavi. "Todos os anos, há uma multidão na Praça da Liberdade para festejar o aniversário da revolução. Desta vez, a multidão era dez vezes maior. Inacreditável."

Em Faro, Behrooz está atento ao computador (fixado em redes sociais em que antes não via grande utilidade, como o Twitter e o Facebook) e vê os vídeos no YouTube: "Olha, conheço esta pessoa. É meu amigo", comenta. "No vídeo de Neda [a jovem manifestante morta que se tornou um símbolo para os que protestam contra os resultados das eleições], vi um antigo professor meu ao lado dela. Vejo os vídeos e reconheço os sítios, a rua em que passava para ir à escola, reconheço as caras. Vejo imagens como via na televisão em Teerão, mas eram na Palestina... Não percebíamos a língua, só ouvíamos gritos, mulheres a chorar, pessoas a morrer. Agora vemos o mesmo, mas percebemos a língua, o que gritam."

Behrooz lamenta a morte de pessoas. Mas acha que o que aconteceu tem um lado bom: "Agora as pessoas podem falar". Ele explica: "Antes desta eleição, ninguém podia dizer nada sobre o Supremo Líder. Só em família, nunca fora da família, nunca num café ou na rua. E, de repente, há pessoas na rua a dizer, a gritar: 'Fora o ditador'. Há pessoas religiosas a dizer que este Supremo Líder já não está qualificado porque não deveria ter apoiado um candidato. Isto é inacreditável."

O dentista Ramin é menos expressivo. Acha que é tudo "uma grande confusão". Uma confusão "estranha". Porque todos os candidatos são "do mesmo campo", todos "passaram pelo crivo do Conselho dos Guardiões". Ou seja, nenhum põe em causa a base religiosa da República Islâmica.

Quanto à violência, Ramin diz simplemsente ter havido "exaltação dos dois lados". E alguma "irresponsabilidade" da oposição em ter dito para as pessoas saírem para a rua. "A exaltação é fácil." E o descontentamento nem sempre é só político. "Há problemas económicos, algum desemprego, a crise também chegou lá... As sanções pioram tudo - aliás, não percebo as sanções, nunca atingem o Estado, só o povo."

Behrooz é quem mais parece entusiasmado com as mudanças: mesmo no estrangeiro, sente mais liberdade. Dá um exemplo: "Antes da eleição, um jornalista veio cá para falar com os estudantes estrangeiros. Quando chegou a minha vez, perguntou-me o que achava de Ahmadinejad [o Presidente reeleito em Junho numa votação que a oposição diz ter sido fraudulenta]. Eu disse que não era o seu maior apoiante - isso era o máximo que eu podia dizer! Agora posso dizer: não o apoio nada e sou contra a maioria das suas ideias".

Behrooz aponta ainda outra vantagem: as pessoas agora podem diferenciar o Governo iraniano e os iranianos. "Agora sabem que não apoiamos aquele Governo. Ahmadinejad diz que Israel deve desaparecer do mapa - muitos iranianos não acham isso."

Mesmo assim tem medo. "Às vezes, penso que estão a ouvir o meu telefone. Mas isso é um disparate, estou em Faro. A conta do Facebook foi bloqueada, espero que a desbloqueiem. Não deve ser nada, mas quando se ouve que o Yahoo deu informação de contas às autoridades chinesas, começamos a ter medo... É como a Guerra Fria: o Governo quer saber tudo e pensamos sempre que há alguém a ouvir."

O primeiro iraniano

Neste lugar entre cá e lá, ainda têm tempo para contar o que acham os portugueses quando ouvem que são iranianos - normalmente, são o primeiro iraniano que conhecem.

O cabelo louro de Behrooz atrai, primeiro, olhares desconfiados - como pode um iraniano ter aquela cor de cabelo? "Cheguei a dizer, a brincar, que era sueco." A segunda reacção é acharem que é árabe. "Cantam-me músicas em árabe que eu, claro, não percebo." Depois ninguém conhece muito mais... "Excepto as pessoas mais velhas. A minha senhoria, por exemplo, lembrava-se da mulher do Xá, antes da revolução."

Said Jalali também diz que tem de contradizer a ideia de que é árabe. "Fazemos questão de explicar", diz, com um sorriso. Em Portugal, nos anos 1970, conta, o conhecimento geral sobre o Irão resumia-se "ao Xá da Pérsia, tapete persa e gato persa (mas o gato persa nunca conheci no Irão) e [a imperatriz] Soraya também era conhecida, porque se tinha divorciado" do Xá. Ainda assim, "muita gente conhecia história antiga persa, Dario, Ciro, Xerxes", reis do primeiro Império Persa.

Ramin Azarpour tem uma pronúncia que denuncia que não é português, mas não se percebe bem de onde: "Perguntam-me se sou brasileiro, ou espanhol, por causa do sotaque... Ficam admirados quando digo que sou iraniano. A maioria não conhece iranianos. Não há muitos por cá."

Texto publicado a 11 de Julho no P2
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