Foi a endogamia que acabou com a dinastia dos Áustrias

Fotogaleria
Carlos Manuel Martins
Fotogaleria
FELIX ORDONEZ/REUTERS

O coeficiente de consanguinidade do último monarca dos Habsburgo era de 24,5 por cento, percentagem semelhante ao fruto de uma relação incestuosa. Dois catedráticos comentam a contribuição
da genética para a história

a A endogamia, os sucessivos casamentos entre parentes, está na origem dos problemas de saúde que afectaram Carlos II, que conduziram à sua morte sem descendência e que levaram ao fim do domínio da Casa da Áustria em Espanha. Esta é a conclusão do primeiro estudo que aplica a genética a uma dinastia espanhola, realizado pela Universidade de Santiago de Compostela."Na análise da consanguinidade recuámos 16 gerações", disse à Plos One, revista científica online, Gonzalo Álvarez Jurado, coordenador do estudo e catedrático de Genética da universidade galega. Esta investigação apurou o peso das relações de parentesco acumuladas ao longo das gerações dos Habsburgo. Assim, o coeficiente de consanguinidade - que indica a proporção de genes idênticos recebidos dos progenitores - vai aumentando desde os 2,5 por cento de Felipe I, filho de Maximiliano I e o fundador da dinastia, aos 24,5 pontos percentuais de Carlos II, filho de tio e sobrinha. Uma percentagem semelhante à do fruto de uma relação entre pai e filha ou irmão e irmã. Ou seja, de uma relação incestuosa.
A multiplicação por dez deste coeficiente pode estar na origem dos transtornos de saúde que afectaram o último monarca dos Habsburgo. Carlos II sofria de uma insuficiência da hipófise, incluindo da hormona do crescimento, e de problemas renais, origem do seu raquitismo. Morreu em 1700, com 38 anos, sem descendência. E, com apenas 30 anos, tinha aspecto de um homem velho. "Para provar a consanguinidade fomos aos efeitos, analisámos a mortalidade infantil até aos dez anos nos descendentes de cada rei, e concluímos a existência de uma relação directa entre o coeficiente de consanguinidade e aquela taxa de mortalidade", explicou Álvarez Jurado.
"Os resultados do estudo não me surpreenderam, o sistema endogâmico que os Áustrias introduziram teve lógicas consequências", diz ao P2 José Enrique Ruiz-Domènec, catedrático de História Medieval da Universidade Autónoma de Barcelona. Os casamentos entre parentes nas várias casas reais foram norma com o objectivo de conservar o poder.
Maximiliano I, imperador da Alemanha, por meio de hábeis alianças matrimoniais, alargou os domínios da Casa da Áustria: pelo seu casamento com Maria de Borgonha obteve a Borgonha e a Flandres; por um segundo consórcio conseguiu a soberania sobre a região de Milão; casou o seu primogénito, Felipe, com Joana a Louca, rainha de Castela; e para o seu neto Fernando, através de um enlace com Ana da Hungria, obteve os reinos da Boémia e da Hungria. Foi assim que os Áustrias aumentaram o seu domínio: foram imperadores dos romanos, de 1438 a 1806, reis de Espanha, entre 1516 e 1700, e ocuparam a coroa portuguesa, de 1580 a 1640.
As relações entre as coroas de Portugal e Castela, de 1500 a 1578, foram assente em alianças matrimoniais entre príncipes, com projectos de poder imperialista, às vezes concorrentes: D. Manuel casa em 1518 com D. Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V, e este veio a ter como mulher, em 1526, a infanta portuguesa D. Isabel, filha do seu cunhado e sogro; D. João III une-se à princesa Catarina de Áustria, em 1524, e entrega a sua filha, D. Maria, ao príncipe Felipe de Castela, seu cunhado e genro; por seu lado, o herdeiro da coroa portuguesa, o infante D. João, casa em 1553 com a princesa Joana, irmã de Felipe II.
Uma teia de casamentos e relações que levou o médico e historiador espanhol Gregorio Marañon, criador do género literário "ensaio biológico", a não poupar a estratégia dos Áustrias. Com a autoridade de quem estudava as características psíquicas, físicas e patológicas das personagens históricas, Marañon apelidou a política dos Áustrias de "bárbara consanguinidade". Uma posição comum a quase todos os historiadores, e que o estudo genético da Universidade de Santiago de Compostela agora confirmou.
"Os estudos genéticos podem levar-nos a descobrir os pontos escuros das relações estabelecidas entre as dinastias europeias, pois há momentos em que as fontes tradicionais são opacas", admite José Enrique Ruiz-Domènec. Este discípulo do medievalista francês Georges Duby anota "que a história sempre recebeu o contributo de outras disciplinas, agora é a vez da genética, através das provas de ADN e de outros mecanismos".
Mais prudente é Carlos Martinez Shaw, catedrático de História Moderna da Universidade à Distância de Madrid, e membro da Real Academia da História. "Não creio que a genética vá revolucionar a história, é mais um factor explicativo, mas nem no caso das monarquias absolutas o rei controlava tudo, há sempre fenómenos envolventes", afirma. No caso da dinastia dos Habsburgo, Martinez Shaw considera, no entanto, que os estudos genéticos "podem explicar a debilidade física e mental de Carlos II que levou ao fim da dinastia em Espanha".
Uma mudança que revolucionou o país com a nova dinastia dos Bourbons. "Tinham um projecto moderno de organização do território, vinculado à Ilustração do século XVIII", assinala Ruiz-Domènec. "Um século antes, a Espanha vivia uma grande decadência que afectava a política, a economia, a sociedade e a cultura, pelo que a mudança dinástica foi benéfica", acentua Martinez Shaw. "Havia um modelo a seguir, o de Luís XIV, que Felipe V, apesar de ser um monarca com crises depressivas e muito melancólico, instaurou em Espanha."
Um novo tempo marcado pela centralização, a criação de um corpo de funcionários e a afirmação do mercado interno. Uma era que viveu da atracção dos ideais iluministas e levou a uma radical mudança das relações internacionais: das políticas de casamentos entre parentes a uma diplomacia desenhada para proteger o Império. "Na história, as encruzilhadas e o acaso estão sempre presentes", acentua Domènec. Neste caso, o que foi a origem da manutenção do poder - os casamentos entre parentes - teve consequências que acabaram por ser uma das causas da mudança e do fim desse projecto político.
Hoje em dia, as monarquias europeias têm comportamentos sociais bem diferentes dos praticados pelos Áustrias e que levaram à sua extinção em Espanha. A endogamia está posta de lado. "As estratégias matrimoniais das actuais monarquias europeias são muito abertas, há casamentos fora do círculo da aristocracia, pelo que já não existe esse tipo de riscos", observa Ruiz-Domènec. Assim, na família real espanhola, dos três infantes, dois, Cristina e Felipe, estão casados fora da aristocracia. O mesmo ocorre na Dinamarca, Noruega e Suécia.
O catedrático da Universidade Autónoma de Barcelona assinala que "a última vez que se tentou criar uma única dinastia para a Europa foi no tempo da rainha Vitória de Inglaterra". Então, relembra Ruiz-Domènec, "a I Guerra Mundial [1914-18] foi um conflito entre primos, pois o czar da Rússia, a monarquia britânica ou o império alemão eram todos descendentes da rainha Vitória". Agora, conclui Domènec, "a história da Europa tende a uma codificação mais unitária, na qual as
casas reais reinantes terão outro papel, embora não saiba bem qual".

Sugerir correcção