A memória não é um lugar recomendável. Ao decidir escrever a sua autobiografia, Simone Veil partiu para a revisitação de uma história pessoal que atravessa os piores tempos da história da França e da Europa desde os anos 1940, mas que se estende também à reconciliação e à superação desses tempos difíceis. Da Simone Jacob que num dia de Abril de 1944 embarcou no comboio que a transportaria a Auschwitz à Simone Veil que 35 anos depois seria eleita presidente do primeiro Parlamento Europeu eleito por sufrágio universal, é uma extraordinária história a que se conta em "Uma Vida". Enquanto judia, enquanto mulher, enquanto francesa, enquanto europeia viveu na primeira pessoa o impensável dos campos de concentração e o difícil regresso a uma França incapaz de olhar de frente um passado de cumplicidade e de colaboracionismo com a shoah. Sobre essa experiência dramática (que é também a da perda de grande parte da sua família), construiu uma longa carreira na administração pública que começou por uma tentativa de melhorar as condições nas prisões francesas e que a conduziu até à aprovação, em 1975, da lei do aborto, enquanto ministra da Saúde durante a presidência de Valéry Giscard d''Estaing, o ponto mais alto da sua carreira política.
Uma história consensual, portanto, a desta mulher, politicamente à direita e necessariamente reverenciada à esquerda. Este relato que começa pela descrição de uma idade da inocência, na Provença das entre-guerras, é no entanto o de uma mulher de convicções fortes, que avançou quase sempre contra a corrente dos tempos. É a força de carácter de quem sobreviveu aos campos da morte, que descreve como uma fria e implacável indústria do genocídio, absolutamente racional no seu duplo objectivo: exterminar e não deixar vestígios do extermínio. Mostrando como os perpetradores da Shoah pensaram que seria possível escondê-la da história.
Nada neste relato de vida supera a força das páginas sobre o tempo vivido a escapar à morte nos campos nazis; e a autora deixa claro que nenhuma experiência de vida poderia ser mais relevante do que esta - "A Shoah continua a ser um fenómeno absolutamente específico e totalmente inacessível", escreve. Veil descreve as datas que vão da partida para Auschwitz (13 de Abril de 1944) ao regresso a França (23 de Maio de 1945), Veil descreve-as como "os pontos de referência da minha vida".
A França em que escolheu viver era uma França que precisava de se esconder da história. Onde começava um combate com a memória que hoje continua. Veil começa, a este propósito, por sublinhar "o desconforto que o fenómeno judeu suscitava nas grandes democracias ocidentais", que se reflectia na vivência do quotidiano - "ninguém estava interessada no que tínhamos vivido". Essa fractura, volta a encontrá-la mais tarde, enquanto estudante universitária. "A clivagem entre as duas Franças, a colaboracionista e a da resistência, era tão lancinante, que as pessoas tentavam evitar polémicas inúteis", escreve.
Quando foi derrotada pelos exércitos nazis, em 1940, a França já era uma nação profundamente dividida. Como recorda o historiador Tony Judt, o exército do país que se tinha dividido após o Governo da Frente Popular, temia mais uma revolta social, semelhante à Comuna de Paris em 1871, do que a vitória dos exércitos nazis. A fractura das duas Franças estava na origem da mais humilhante derrota militar do país e da sua colaboração com o Holocausto. Veil faz no entanto justiça à França como o país em que menos judeus foram deportados, devido à acção dos Justos, nome pelo qual ficaram conhecidos os anónimos que salvaram milhares e milhares de judeus dos campos de extermínio. Na revisitação da história em que a França joga a sua identidade, ela recusa rotular com facilidade o país que a traiu - e onde o anti-semitismo sempre teve raízes profundas.
Veil descreve-se politicamente como judia, francesa, laica. É uma fotografia de família, o que faz dos Jacob: "judeus não religiosos, profundamente cultos, apaixonados pela França a quem estavam gratos pela sua integração". É um retrato duplo, que a autora aplica também à família do marido, Antoine Veil - a história de Simone, Jacob ou Veil, é também, da primeira à última página do livro, uma história de famílias grandes, uma perdida, outra construída. E é um retrato cultural que ajuda também a compreender um percurso de independência política. "No fundo, a minha primeira experiência política foi exactamente a recusa do comunismo", escreve, explicando essa posição como uma reacção ao "sectarismo" dos comunistas que, nos próprios campos de concentração, colocavam a sua organização acima de tudo o resto. Um percurso distanciado do gaullismo, a admiração por Pierre Mendès-France - um traço geracional - aproximações pontuais aos socialistas, tudo isso colado por uma consciência dos bloqueios e do imobilismo que a sociedade francesa tinha de vencer.
É assim que Veil lê e compreende o Maio de 1968. É assim que abraça os sectores do centro-direita que se propunham mudar. Chaban-Delmas e o seu projecto da nova sociedade, antes de tudo; perante a derrota deste, Giscard, eleito Presidente em 1974, contra François Mitterand. Provavelmente o único presidente francês da V República que escapou à tendência imperial e bonapartista do gaullismo, que Mitterand interiorizaria à sua maneira. É com Giscard que avançará a lei do aborto. O discurso de apresentação do diploma à Assembleia Nacional, (que foi acrescentado nos anexos) é uma peça notável.
É com ela que Veil deixará uma marca indelével na história. Voltará a consegui-lo enquanto primeira presidente de um Parlamento Europeu eleito directamente pelos europeus. Dois triunfos fundamentais para a afirmação política das mulheres na Europa, coincidindo com o fim de um percurso de progresso e de crescimento que corria sem interrupções desde o pós-guerra - ainda que marcado, no caso francês, pela crise da independência da Argélia.
A Simone Veil que escreve em 2007, depois de abandonar a presidência do Conselho Constitucional, reconhece uma Europa e uma França marcada por sinais de retrocesso. Um novo avanço do anti-semitismo e do negacionismo da Shoah, um recuo da construção europeia, em particular com o não à constituição europeia, desenhada por Giscard d''Estaing, nos referendos holandês e francês de 2005.Neste contexto, encontra ainda um novo combate, o apoio a Nicolas Sarkozy, que elogia ao longo do texto, ao mesmo tempo que cilindra, impiedosamente, Ségolène Royal e François Bayrou, os derrotados das presidenciais de 2007. A primeira é rotulada de superficial - Strauss Khan teria sido um candidato socialista "substantivo" ao Eliseu - , enquanto Bayrou é desfeito na base da falta de carácter e da desonestidade.
Um apoio - crítico em algumas questões -, mas com pouco de circunstancial ao Presidente cuja eleição Veil descreve como "um choque eléctrico". Um homem que parece ter também unificado o campo da direita a partir dos valores do gaullismo, mas virando do avesso o imobilismo gaullista em nome das políticas de ruptura.
A independência e a integridade são valores políticos de referência para uma mulher que mergulha num passado onde a memória é turva, e em que um sofrimento extremo foi o preço a pagar por alguma claridade. É límpida a memória que Veil transmite de um percurso vivido em tempos sombrios - aqueles onde a banalidade do mal e o melhor da humanidade se cruza. Testemunho de um tempo, a autobiografia de Veil é sobretudo uma homenagem à forma como a memória - mesmo a pior das memórias - é a base onde se constroem o presente, o futuro. A memória nem sempre é um lugar bem frequentado, mas é o que temos.