It''s only cinema de género, but we like it

A receita é simples. Ingredientes: 1 vírus letal e incurável à "28 Dias Depois"; 1 cidade do mundo ocidental selada em quarentena à "Nova York 1997"; 1 missão suicida para o interior da cidade selada; meia distopia pós-apocalíptica modo "anarchy in the UK" à "Mad Max" e meia modo "neo-medieval" à "Reino de Fogo"; 1 colecção completa da revista de BD inglesa "2000 AD" e dos video-jogos "Resident Evil"; devoção à série B segundo John Carpenter q. b., completada com umas pitadas de gore mais ou menos sanguinolento; uma colher de "girl power" radical. Deitam-se os ingredientes para dentro de um orçamento consequente, deixa-se ferver durante duas horas, e serve-se sem aviso prévio a uma audiência incauta que não sabe no que se meteu.


O resultado chama-se "Juízo Final" e é um dos mais extraordinários exercícios na mecânica do cinema de género nos últimos anos. Vem da mente depravada do inglês Neil Marshall, autor do seminal "A Descida" (2005), mas quem esperar desta sua terceira longa um filme "sério", como aquele, faria melhor em acalmar as expectativas: "Juízo Final" está mais próximo da estreia do cineasta, "Dog Soldiers" (2002), variação sobre o mito do lobisomem que injectava uma dose muito forte de humor inglês numa série B de terror mais ou menos clássica. Se, claro, Marshall tivesse tido um orçamento decente (com investimento dos americanos da Focus, produtores de Ang Lee ou Almodóvar) e luz verde para concretizar os seus delírios mais inconfessáveis - que, no caso, vêem esta história de uma missão suicida que penetra numa Escócia do futuro, selada do mundo, para tentar descobrir a cura de um vírus letal contagioso começar como um thriller apocalíptico vagamente sério para descambar numa distopia xunga onde parece valer tudo, incluindo arrancar olhos (e outras partes do corpo) com fins canibais, saltando do futurismo tecnológico para o medievalismo retro enquanto o diabo esfrega o olho.

Obviamente, nada disto é para ser levado a sério - Marshall sabe que o que se espera de uma série B de acção são duas horas de adrenalina bem gerida com sentido de humor. Mas é preciso saber bem o que se está a fazer para injectar elementos tão díspares e tão fora na sua história como os que Marshall introduz aqui sem que ela se desmorone e se torne numa patetice colada com cuspo. Pelo contrário: ao fim de dois minutos de vermos punks canibais a dançarem o can can ao som dos Fine Young Cannibals, ou de vermos um Bentley último modelo escapar ao ataque de guerreiros medievais (antes de um duelo saidinho de "Mad Max" ao som dos Frankie Goes To Hollywood), a única pergunta que nos vem à cabeça é "que mais irá acontecer?".

Não vamos chegar ao ponto de dizer que "Juízo Final" é melhor que "A Descida" (não é). Mas manda a verdade que se diga que, se John Carpenter (de quem nos lembrámos muito) fosse um inglês com reverência pelo cinema xunga e passado dos carretos (à inglesa, portanto), teria feito um filme parecido. Não basta mais do que o simples prazer celebratório da derivação e reinvenção dos lugares-comuns do cinema de género para fazer deste um dos mais deliciosos prazeres cinematográficos que vamos ter todo este ano - muito embora "Juízo Final" ande aos saltos nas planificações da distribuidora responsável desde que, há quase um ano, teve ante-estreia no festival MOTELx (e, francamente, já perdemos a vontade de agradecer por não ter ido directo para DVD). É um OVNI, sim senhor, e dá vontade de citar os Rolling Stones: "it''s only cinema de género, but we like it".

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