Pina Bausch - De olhos bem fechados

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Pina Bausch Pedro Elias

Toda a gente a conhece assim: como figura recatada, avessa a falar em público e ainda mais a dar entrevistas.

Mas, quando atende o telefone, Pina Bausch, hoje com 67 anos (faz 68 a 27 de Julho), parece à vontade. Dá uma gargalhada longa e sonora quando começamos por lhe dizer que dançou "Café Müller" uma única vez em Portugal há 14 anos, quando Lisboa foi Capital Europeia da Cultura e a Fundação Calouste Gulbenkian organizou um ciclo retrospectivo à volta da sua obra.

Desta vez, talvez seja demais chamar-lhe festival, mas a partir de hoje, entre o Centro Cultural de Belém e o Teatro Municipal São Luiz, ambos em Lisboa, voltamos a olhar para o percurso da coreógrafa. Há conversas e filmes de entrada livre e três peças: a estreia nacional de "Nefés", sobre Istambul (hoje e amanhã, no Centro Cultural de Belém), oportunidade para rever "Masurca Fogo", feita sobre Lisboa em 1998 e apresentada na altura, durante o festival Mergulho no Futuro, da Expo98 (dias 7, 8 e 9, também no CCB) e "Café Müller", a única peça do Tanztheater Wuppertal em que é possível ver Bausch dançar (dias 4, 5, 8 e 9 no São Luiz).

Nós estamos aqui, em Lisboa, e ela, que desde 1994 tem sido uma presença assídua nos palcos nacionais e recebida de braços abertos por públicos cada vez mais vastos, está do outro lado da linha telefónica, na Alemanha, em Wuppertal, a cidade onde a sua companhia tem sede. Temos instruções precisas: um limite máximo de conversa de 15 minutos e um duplo pedido expresso (uma vez por escrito, outra por telefone) para que esses 15 minutos não sejam ultrapassados.

É mais um contra-relógio do que uma entrevista. Pina, a Papisa da dança contemporânea europeia, realmente parece à vontade, mas falar (pelo menos sobre o seu trabalho) não é coisa dela. Tempo para sete perguntas e as respectivas respostas.

"Café Müller": para o público é reviver uma fatia da história da dança contemporânea na Europa; e para si, como é para si, passados 30 anos, continuar a interpretar esta peça, um trabalho tão icónico?

É muito especial, muito, muito especial. Para mim esta peça tem muito significado. Quando a fizemos [em 1978], [o meu companheiro de então] Rolf Borzik, que fez a cenografia de todas as minhas peças até 1980, esteve muito envolvido entrava também em palco, na parte das cadeiras. Morreu em 1980 e, para todos nós, e sobretudo para mim, esta peça tem muito a ver com esta relação, com todos os amigos juntos, e ele. Foi também a única peça que fiz em que entro. Nunca tenho tempo para estar em cena, porque tenho que tomar conta da companhia. Neste caso, eles [os intérpretes] forçaram-me a entrar, diziam que se eu não entrasse eles não faziam. Ainda bem que me obrigaram. É sempre muito especial para mim. A verdade é que nem eu própria quero acreditar. Penso: meu Deus! Como é que é possível que isto tenha acontecido?! E que sorte poder fazer esta peça! É maravilhoso poder ainda fazê-la. Ter a saúde para isso.

É uma peça de 1978. Passaram-se trinta anos. Ao longo deste tempo a sua percepção da peça tem vindo a mudar?

É estranho porque, se calhar, a sensação mais presente, e a mais surpreendente, é perceber o quanto tudo, de certa forma, ainda é igual, pelo menos no sentido daquilo que quero atingir. Houve um período de infelicidade em que senti que já não me conseguia relacionar com a peça da mesma maneira, em que já não sentia as mesmas coisas, em que não conseguia encontrar os mesmos sentimentos. Pensei: porquê?! Pus-me a olhar para o movimento de maneira diferente e para a música, a tentar perceber o que tinha mudado. Encontrei uma coisa muito pequena, por trás dos meus olhos fechados, que era se os tinha a olhar em frente ou virados para baixo. Esta pequena diferença era, afinal, significativa fazia todo o sentimento. Mesmo estando fechados, quando os meus olhos estavam virados para cima, mudava tudo. Todos os pormenores são tão importantes! Tudo é pormenor. Quando queremos recuperar alguma coisa que já foi importante para nós, tentamos ir àquele sítio. Nesta peça, o que é também importante é conseguir sentir que estamos sós, esquecer que há um público. Nesta peça, é importante chegar aqui, mas não o sei explicar por palavras. No fundo, basicamente, tudo isto é uma espécie de paraíso para mim. É belo. Eu sou uma bailarina ali [em cena], estou protegida, sem telefones, sem ninguém me poder falar. É como dar uma prenda a mim própria, uma flor.

Este é frequentemente visto como um dos seus trabalhos mais autobiográficos...

Não... Não tem nada a ver com a minha biografia. Chama-se "Café Müller" mas não tem nada a ver com o facto de os meus pais terem tido um restaurante.

Sempre se falou dessa relação, está em todos os livros sobre si e a sua obra.

Pois... [risos]. A mim nunca ninguém me perguntou nada [risos]. Esta peça nasceu de um convite para fazer um trabalho à volta do [dramaturgo britânico William] Shakespeare, um trabalho baseado numa passagem do "Macbeth". Éramos uns quantos bailarinos, alguns actores e um cantor. Tínhamos 14 dias até à estreia e achei que não era suficiente. Decidi chamar mais algumas pessoas o Gerhard Bohner, Hans Pop, Gigi Caciuleano para uma coreografia que se passasse apenas numa sala, o Café Müller, em que cada um poderia fazer pequenas danças e contar as suas próprias histórias, ou até usar a sua própria música. Decidimos 12 pontos que tinham que entrar na peça: a senhora de cabelo vermelho, por exemplo. A dada altura achei que podia fazer um solo ou qualquer coisa para Malou Airaudo. E vieram também o Jan Minarik, o Dominique Mercy e a Meryl Tankard, que era nova na companhia. Foi uma surpresa termos acabado a peça de forma muito rápida e apresentámo-la. No fundo, são quatro diferentes "Café Müller" que fazemos juntos. Como vê, nada tem de privado ou pessoal.

Em Lisboa vamos ter agora mais duas obras, "Masurca Fogo" e "Nefés", trabalhos que já correspondem a um período de criação diferente na sua obra. Como viveu essa mudança?

Lembro-me de que, a dada altura [em meados dos anos 1980], me convidaram para fazer uma peça sobre Roma. Pensei: não, impossível! Como seria possível fazer uma peça sobre uma cidade com aquela história toda? Mas depois de muito conversar sobre o assunto [eu e os meus bailarinos] achámos que poderíamos tentar deixar-nos influenciar pela cidade. A ideia foi passar lá três semanas, sem espectáculos. Trabalhar, mas também conhecer pessoas, passear. Foi a primeira peça: "Viktor" [1986]. Abriu tantas portas, tantas possibilidades em que nunca poderia ter pensado. Estava tão curiosa e aprendemos tanto! Sentimonos tão próximos da cidade! Foi uma experiência incrível, e, logo depois, convidaramme para fazer o mesmo em Palermo [ " P a l e r m o , Palermo", 1989], o que já seria mais fácil, porque já tinha usado música do Sul da Itália. Outros sítios acabaram por se seguir, cidades onde já tínhamos estado, onde tínhamos amigos, pessoas que poderiam mostrar-nos as coisas que amam, em vez de um lado turístico. Foi fantástico ter esta experiência em Lisboa. Foram tempos inesquecíveis. Foi por isso que achei fantástico poder mostrar outra vez aí a peça ["Mazurca Fogo", 1998]. Tal como a peça de Istambul ["Nefés", 2003], que é uma cidade interessante e onde nos envolvemos muito com a cultura local.

Estas peças, como "Mazurca Fogo", ficam connosco. Já a apresentámos em imensos países, mas é sempre uma alegria repeti-la. Estamos tão próximos de tantas coisas que estão ali dentro. Não é como uma peça de reportório, é mais como uma parte do nosso corpo.

São peças que correspondem já a uma espécie de "fase de felicidade" da sua obra, uma "fase rosa", algo que começa, precisamente, após "Viktor" e "Palermo, Palermo", de que estava a falar...

Não sei se felicidade é a palavra certa é mais como uma energia positiva. É impossível simplesmente desistir. Para mim foi uma necessidade [esta mudança de olhar]. Mas as coisas evoluem como grandes ondas, uma peça surge de uma maneira e, depois, sem eu saber bem como, a seguinte já vem numa onda diferente. Mas é-me difícil falar do que será neste momento. Talvez um pouco de ambos. É difícil falar de certas coisas. Como é que se pode falar deste desamparo que temos no mundo? O que é que fazemos com isso? Carregamos isso, esses sentimentos tão presentes. E há uma grande necessidade de gastar emoções. Não é só felicidade. É também o oposto disso. Mas em todo o meu trabalho há coisas tão diferentes. Vaise muito fundo, mas depois volta-se. E há o humor nunca gostei de peças que se desenrolam num só nível; o ambiente das minhas está sempre a mudar, com o fim sempre em aberto. Eu também não sei. Há mais perguntas que respostas. Há muitas perguntas.

Vê espectáculos de dança contemporânea?

Tenho pouco tempo. Em Wuppertal nunca vejo nada, tenho de confessar. Mas quando viajo tento, tanto quanto possível. E também já organizei três festivais, para os quais convido as pessoas de quem gosto. Aliás, estou a organizar mais um e a ver imensos vídeos.

Durante muitos anos o seu trabalho foi uma matriz de que derivava a produção mais interessante na Europa. A partir de meados da década de 1990, esse cenário mudou, há uma matriz de dança mais conceptual. Fala-se também, desde há alguns, anos numa crise. Sente essa crise?

Há muitíssimos jovens coreógrafos a tentar coisas muito interessantes. Enfim... Talvez não muitos... Bastantes. Há bastantes jovens coreógrafos a tentar linguagens muito pessoais. Mas é sempre preciso ver como as coisas se desenvolvem. Talvez o que seja triste, talvez porque não há muito dinheiro, é que está toda a gente a trabalhar para pequenos espaços e cada vez menos para grandes salas. Talvez coisas mais viradas para a "performance", pessoas que não vêm da dança, mas que usam movimento à sua maneira, o que pode criar relações muito interessantes, mesmo com o público. É infinito o que é possível tentar. É essa também a beleza do mundo.

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