Café Âncora d'Ouro, o "Piolho" do Porto, faz hoje 100 anos
Como faz anos, passámos um dia entre a concorrida esplanada e a velha sala onde se serviram os primeiros "cimbalinos"
a A esplanada está vazia e no interior há apenas meia dúzia de clientes tomando o pequeno-almoço ou o primeiro café do dia e lendo jornais. O silêncio é tão grande que se escuta o ruído dos frigoríficos. Já não se vêem, à porta, os copos de plástico espalhados pelo chão, nem se escutam os risos e as vozes, nem há sinais da multidão que, poucas horas antes, ainda ali estava. Na calçada acabada de varrer há ainda pequenos montículos de beatas frias, como melancólicas provas forenses de uma noite intensa.Este é o mesmo Café Âncora d'Ouro, da Praça de Parada Leitão, no Porto, que todos conhecem como "Piolho", o qual, nos últimos anos, tem acolhido as noites mais animadas da cidade. É centenário, sim, mas não parece. Está muito bem conservado.
O café funciona ininterruptamente entre as 7h e as 4h, às vezes até mais tarde, se os clientes tardam a ir embora, e vai conhecendo, ao longo do dia, várias e diferentes faces. A multidão nocturna não imaginará o sossego que chega com a manhã e permite que se repare em coisas que, à noite, escapam ao olhar: a coluna dourada com motivos florais em baixo-relevo, a relíquia decrépita da ventoinha no tecto e pintada de dourado, as âncoras talhadas nas costas das cadeiras.
Às 10h entra Jorge de Sousa Braga, o poeta que também é médico no Hospital de Santo António, ou vice-versa. Pede "um café curto" e consulta uns papéis. É cliente desde 1974, o ano em que chegou ao Porto, e aqui escreveu muitos dos seus poemas. "Agora nem tanto. Desde que o hospital se virou para o outro lado, venho menos", diz. "Mas acompanhei a evolução, a luta política, as discussões poéticas com o Manuel António Pina e poetas beatniks, o avanço da droga, o declínio e, agora, a recuperação. Vim encontrar aqui o meu filho, 30 anos depois", conta.
Só perto do meio-dia o "Piolho" se torna ruidoso, quando chegam vários grupos de jovens turistas espanhóis. Os mais novos compram garrafas de água ao balcão, os mais espigadotes, de uma vila perto de Granada, pedem cerveza e sentam-se nas mesas corridas. "Muy suave. Como se dice cerveza en portugués?" Entram rapazes japoneses. Vêm para almoçar, manuseiam telemóveis e PDA e arriscam provar a francesinha que, daí a pouco, se generalizará nas mesas da sala agora tão barulhenta como a de qualquer café à hora de almoço.
Ao final da tarde, chegam os freaks e os punks que ficam diante da esplanada a tocar guitarra, com cães, penteados rasta e à moicano, roupas escuras e algo encardidas. O dia vai morrendo e a fresca convida a que cada vez mais gente procure a esplanada, fazendo crescer um burburinho que só se extinguirá quando a madrugada já for alta.