A longa viagem dos Virgem Suta

Foto
Virgem Suta CARLOS MANUEL MARTINS

Subimos pela cidade. O típico casario branco à direita, as muralhas do castelo à esquerda. Encontramos Nuno Figueiredo, que nos guia mais acima. Os carros serpenteiam pelas ruas, neste final de tarde quente que guarda as pessoas em casa. Subindo, lá chegamos. Terreirinho das Peças. Árvores alinhadas junto ao miradouro, um lar de apoio à terceira idade e um par de velhotes a aventurar-se sob o sol. Ao centro, o bem-vindo quiosque. É na sua esplanada que nos recebe Jorge Benvinda.

Recepção clássica. Uma mini e uns caracóis. Perfeito. E muito conveniente, como veremos mais tarde quando ouvirmos Jorge dizer algo como "depois de uma exposição, toda a gente gosta da cultura do caracol e do mini" - falávamos da Galeria do Desassossego, espaço de "petiscos, espectáculos e exposições" que ele dinamiza Jorge Benvinda e que é tasca e galeria (sem hierarquização). Mas já nos estamos a adiantar.

Jorge e Nuno são os Virgem Suta, banda que se formou em Beja e que começou a tornar-se naquilo que é hoje, agora que edita o álbum de estreia, bem mais a norte. A história conta-se rapidamente. Em 2001, Jorge Benvinda e Nuno Figueiredo rumaram até Vila Nova de Gaia para participarem num concurso de bandas. Como Nuno nasceu no Porto e tem por lá família, nunca perderiam muito - apenas tempo e gasolina. Não ganharam. Mas é certo que não perderam. Portanto, Jorge e Nuno, duas vozes e duas guitarras acústicas, em 2001. Acabaram em segundo e levaram para Beja o prémio revelação. Levaram também, mais importante, os contactos de dois membros do júri, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo, eles dos Clã, eles que viram naquelas canções que os Virgem Suta tocaram com nervosismo um talento em bruto à espera de desabrochar.

Nos anos seguintes, autores Virgem Suta e mentor Hélder Gonçalves trocaram ideias, eliminaram canções, aperfeiçoaram detalhes e definiram rumo. Em 2009, eis que o trabalho frutifica. Oito anos depois da subida até ao Porto, os Virgem Suta editam um álbum - e antes que perguntem, não, eles não acham que tenha sido tempo demais. "Não tínhamos a presunção de sermos completamente diferentes. Sabíamos o que não queríamos, fazer pop descarada com os arranjos normais. Não sabíamos é como fugir a isso", conta Jorge Benvinda. O processo inicial foi, portanto, de recusa. Juntavam umas quantas canções, reuniam-se com alguns músicos, ensaiavam, montavam um concerto. No dia seguinte, encontravam-se e o comentário era invariavelmente o mesmo: "não era aquilo".

Assim andaram, entre o "não era aquilo" e o "como se faz aquilo", até decidirem pôr de parte tudo o resto, concentrarem-se nas suas duas guitarras, nas suas letras e na voz de Benvinda. Ou seja, decidiram procurar sozinhos. Entretanto, entrou em cena Hélder Gonçalves, que se assumiu como produtor. Acumularam canções e frustrações, gravaram e regravaram, compuseram e recompuseram. Avançaram por tentativa e erro, estimulados por um produtor perfeccionista, em busca daquilo que não sabiam bem o que era - mas que sabiam exactamente o que não queriam que fosse. Não é decididamente, um percurso normal.

Eles resguardados em Beja, recusando-se a editar maquetes ou dar concertos enquanto não estivesse tudo como queriam. No Porto, Hélder Gonçalves, entre álbuns de Clã e o álbum de Humanos e o "Irmão do Meio" de Sérgio Godinho, ia recebendo e encaminhando, aconselhando. Nada de pressas - em contradição com a voragem da pop, com a sua habitual sofreguidão, os Virgem Suta lá iam continuando, lenta mas persistentemente, sem pressas. E agora, oito anos depois do início de todo este processo, Nuno Figueiredo está sentado numa esplanada do Terreirinho das Peças a dizer-nos que "parece muito tempo, mas foi o necessário". Continua: "Fazíamos música há muito, mas precisávamos de uma linha condutora, de um rumo para algumas canções". Sentencia: "Tudo o que viesse antes seria precipitado".

As tascas de Beja

Abandonamos o Terreirinho das Peças em busca de cenário adequado à sessão fotográfica. Nuno de guitarra em punho, Jorge soltando a voz. O primeiro toca os acordes de "Tomo conta desta tua casa", single de apresentação do álbum, o segundo canta-lhe os versos. Um mini concerto improvisado, pontuado pelos "pá-ra ra-rai" que surgem ali depois do refrão, pelo som dos disparos da máquina fotográfica e pelo automóvel ocasional, cuja passagem obriga à interrupção momentânea da canção.
O fotógrafo escolhe a porta e a parede em que os enquadrar na rua deserta. Enquanto mantêm a pose para a foto, uma mulher começa a subir a rua. Não vem sozinha. O seu rafeiro apressa-se mais que ela. Avança resoluto. Os Virgem Suta escolheram a porta errada para sessões fotográficas - a dele, naturalmente (os latidos insistentes não enganam).

A mulher que chega não conhece o bejense Jorge, muito menos Nuno, que abalou do Porto na adolescência para estudar na universidade de Beja. Mas conhece os Benvinda - e isso é suficiente para trocar dois dedos de conversa. Este tipo de coincidências faz parte da música dos Virgem Suta. Ou melhor, serem de uma cidade como Beja enforma aquilo que é a sua música.
"Numa cidade grande, cruzas-te com as pessoas no metro e perdes-lhes o rumo", afirma Nuno Figueiredo. "Em Beja, e não por uma questão de coscuvilhice, tens a possibilidade de te cruzar com gente que irás acompanhar sempre no dia-a-dia - o que te permite facilmente criar histórias". A história das virtudes da "Vovó Joaquina", que é a de Jorge Benvinda, "tramada" na juventude pelo avô que ele não conhece, do "belo vinho" da "Dança de balcão", do "Homem do mundo" que "não tem dono, ninguém para o servir".

Portanto, Beja é a sua cidade, é daqui que extraem canções - está-lhes até no nome: suta é um termo local, "da malta mais nova", que "designa um estado caótico, de euforia, de excesso sem controlo". Os Virgem Suta adoram Tom Waits e gostam do italiano Paolo Conte. Admiram a musicalidade de José Afonso e as letras de Sérgio Godinho. Tudo isso há-de manifestar-se na música, mas o que procuraram durante os oito anos que se demoraram a criar "Virgem Suta" era outra coisa. Era aquilo que, conta Jorge Benvinda, vêem na Galeria do Desassossego: "Pessoas que se juntam ao final da noite e apanham 'tosgas' incríveis, uma coisa fantástica. Conversam umas com as outras, umas mais tristes, outras mais eufóricas e, no dia seguinte, cumprimentam-se como se nada se tivesse passado. Ninguém fala de nada: dos vidros partidos, das contas por pagar, dos amores da mulher". O que eles procuravam, pragmaticamente, era pegar em instrumentos da música popular e, como explica Nuno Figueiredo, "oferecer-lhes nuances pop e rock que, ainda assim, denunciassem um pormenor de bairro". Era, essencialmente, fazer com que as diferentes personalidades criativas dos dois Virgem Suta se complementassem harmoniosamente.

Nuno Figueiredo e Jorge Benvinda conhecem-se há muito. São amigos inseparáveis, mas dizem-nos, e nós vemos, têm temperamentos diferentes. Como escreveu Hélder Gonçalves num texto de apresentação da banda, de um lado estão os "textos introspectivos do Nuno", do outro "as deliciosas sátiras realistas do Jorge". Este manda vir mais uma mini e um prato de caracóis e revela-nos que, no século XVIII, Beja tinha uma tasca por cada cinco habitantes (agora tem duas para vinte mil). Aquele interrompe-se a meio de uma resposta e lança o olhar sobre a planície em frente. Aponta: "Ser feliz é isto. Entrar na estrada e cortar por aqui fora. Abrir as janelas e ver esta vida lá fora". Duas personalidades, duas formas de olhar que, no disco, se complementam.

Os Virgem Suta já sabiam tudo isto antes, já viviam tudo isto antes. Faltava-lhes descobrir como transformá-lo em canções. Um acaso levou-os até Hélder Gonçalves, que viu o poderia deles nascer. Eles, não se importaram de esperar, que a vida não iria desaparecer. As canções continuariam ali, à espera que eles lhes dessem forma. Ei-las então, exactamente como os Virgem Suta queriam que elas fossem.
Nuno Figueiredo suspira e sorri: "Não foi tempo perdido"

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