Para James Morris Veneza foi sempre uma cidade feminina. Era assim - "talvez como uma espécie de ossificação do princípio da feminilidade" - que a via quando ali viveu com a mulher, Elizabeth, e os filhos. A cidade era "o equivalente em pedra, na sua graça, serenidade e cintilação" de tudo aquilo que James sonhava ser.
Em 1960 James Morris escreveu "Veneza", um livro, que a Tinta da China acaba de editar em Portugal, sobre aquela que é, com Oxford e Trieste, uma das cidades que lhe "pertencem". Uma década depois James fez, em Marrocos, uma operação de mudança de sexo. Hoje chama-se Jan, é uma respeitável octogenária e vive na aldeia de Llanystumdwy, País de Gales. No ano passado, depois da mudança da lei na Grã-Bretanha, voltou a casar-se, em união civil, com Elizabeth.
É para a casa onde vive há décadas, em Llanystumdwy, que telefonamos. A própria Jan atende o telefone, uma voz não exactamente masculina mas não inteiramente feminina, calorosa, tom britânico, vagamente afectado, mas ao mesmo tempo divertido. Conversa um pouco, mas diz que prefere responder às perguntas por email.
Quando, nessa mesma noite, envia as respostas pede desculpa por não falar do facto de ter sido homem e hoje ser mulher - "nada me aborrece mais do que falar sobre a mudança de sexo, razão pela qual há cerca de 40 anos que recuso consistentemente fazê-lo".
Sobre "Veneza", assume-o como um livro de um tempo, de uma outra vida. "Claro que me reconheço nele, mas sou eu 50 anos mais nova. Se escrevesse o livro hoje seria o mesmo mas, infelizmente, não tão bom".
Houve, ao longo do tempo, outras edições, nas quais Morris tentou fazer actualizações, mas apercebeu-se de que isso não era possível. "Este livro em nada se assemelhava à reportagem objectiva que eu imaginara inicialmente. Era um retrato subjectivo, romântico, impressionista, não tanto de uma cidade mas de uma experiência", escreve no preâmbulo.
Regressou a Veneza, nas décadas de 70, de 80, de 90 e encontrou-a, a cada vez, diferente. Apaixonou-se, e deixou de se sentir apaixonada, lamentou o desaparecimento "daquela magia triste" e do "'pathos' do seu declínio", e nos anos 90 admitiu que pudesse ter-se apaixonado de novo, mas "de uma forma resignada, reconciliada". Mas pouco alterou no livro. "Renovar a minha Veneza seria falso, como seria absurdo rejuvenescer-me".
Ela própria, nesse preâmbulo, descreve o livro mais por aquilo que ele não é: "Não é um livro de história, mas contém necessariamente muitas passagens históricas" [...] Também não é um guia, mas no capítulo 21 apresento uma lista dos monumentos que vale a pena visitar, por ordem topográfica, misturando-os ocasionalmente com breves passagens rebuscadas. [...] Este livro também não é exactamente uma reportagem. Quando o escrevi, em 1960, pensei que assim fosse. Nessa época eu era correspondente no estrangeiro e planeei este livro como um trabalho sobre a Veneza contemporânea".
No final do email para o Ípsilon, e ainda a propósito das perguntas relacionadas com a possibilidade de ter um olhar mais masculino ou mais feminino sobre uma cidade (às quais não responde), Jan diz: "Poderá gostar de saber o seguinte: Elizabeth e eu divorciámo-nos em 1972, apenas por razões legais, mas desde então vivemos sempre juntas, e quando a lei mudou, há um ou dois anos, restabelecemos a nossa relação numa união civil formal. Vivemos juntas há 60 anos e temos nove netos. O amor é tudo - e a generosidade!".
Numa entrevista à revista do "El País" confessara já que o assunto da mudança de sexo era para ela "algo já remoto, pré-diluviano", e explicava que tudo o que tinha a dizer já tinha dito há 30 anos. O livro "Conundrum" - publicado em 1974, mas sem edição em português -, é o relato autobiográfico do "enigma" (é esse o sentido de "conundrum") que foi a sua vida. E aí, na forma de "comunicar o incomunicável", Morris "é consistentemente brilhante", escreveu o "Observer". O Times considerou "Conundrum" um dos "100 livros chave do nosso tempo".
Um momento, debaixo do piano
James era pequeno, a mãe estava a tocar piano, e ele, como gostava de fazer, estava sentado debaixo do piano, com as notas a choverem sobre a cabeça. Foi nesse momento que soube: "Tinha três ou talvez quatro anos quando percebi que tinha nascido no corpo errado, e que devia ser uma rapariga. Lembro-me bem desse momento, e essa é a mais antiga memória da minha vida". Era uma criança feliz, foi "criado com gentileza e sensibilidade", e não vale a pena procurar nessa infância sinal de trauma ou desajustamento que explique esse pensamento "tão bizarro" que se instalou nele.
Foi um longo, e muitas vezes doloroso, processo que o levou desse momento, debaixo do piano, rodeado pela música que a mãe tocava, até um estranho quarto numa clínica em Casablanca, onde um dia adormeceu homem e no outro acordou mulher. Ou melhor, acordou sem os órgãos genitais, o último passo que faltava para completar, até ao limite do possível, a sua mudança. A transformação começara muito antes da operação em 1972. "Cálculos rápidos indicam que entre 1954 e 1972 engoli pelo menos 12 mil comprimidos e absorvi no meu sistema qualquer coisa como 50 000 miligramas de matéria feminina", escreve em "Conundrum".
A mudança foi "infinitamente gradual". Ao longo de "Conundrum", as descrições do processo são sempre de uma imensa clareza, como se surgissem sem esforço de uma extraordinária capacidade de auto-análise. "O primeiro resultado não foi exactamente uma feminização do meu corpo, mas um despir da capa rugosa que cobre os indivíduos masculinos. Não estou a falar apenas dos pêlos ou da textura da pele, nem da saliência dura dos músculos: tudo isto desapareceu efectivamente nos anos que se seguiram, mas com eles desapareceu também algo menos tangível, que sei agora ser especificamente masculino: uma espécie de camada invisível de resiliência acumulada, que oferece um escudo para o lado masculino das espécies, mas ao mesmo tempo diminui as sensações do corpo".
É, explica Morris, como se os homens "tivessem um contacto menos imediato com o ar e o sol" e estivessem "mais poderosamente compactados nos seus próprios recursos". Com o tratamento hormonal a que se sujeitou, essa "armadura" foi desaparecendo e Morris sentiu-se tão mais leve que sonhava frequentemente com levitação.
Militar e jornalista
Ser transsexual, escreve, "não tem nada a ver com preferências sexuais". Não é uma questão sexual. "É uma apaixonada, permanente e profunda convicção, que nunca ninguém conseguiu retirar a um verdadeiro transsexual". É simplesmente uma evidência - mesmo que só para o próprio. "Para mim esta é uma questão que vai muito para além do sexo: não reconheço nela qualquer carácter lascivo, e vejo-a, acima de tudo, como um dilema que não é do corpo nem da cabeça mas do espírito".
Na infância, quando não confessara a ninguém o que sentia, atravessavam-lhe o espírito dúvidas tão desconcertantes como esta: "Ocorrera-me que talvez a minha condição fosse perfeitamente normal, e que todos os rapazes gostariam de ser raparigas. Parecia-me uma aspiração suficientemente lógica [...]".
As primeiras experiências sexuais não contribuíram para clarificar o "enigma". Não sentia qualquer desejo de dormir com mulheres, e não partilhava "as ambições sexuais" que tanto pareciam interessar os outros homens - havia nele uma ausência da "sexualidade masculina" que reconhecia nos amigos (aliás, confessa nunca ter percebido muito bem "a importância do sexo físico para os homens"). Os contactos sexuais com homens também não pareciam interessá-lo excessivamente, e sentia "não exactamente repulsa mas embaraço", ao mesmo tempo que "esteticamente" parecia-lhe "errado", para além de achar que "esta intimidade do corpo com simples conhecidos era deselegante".
James/Jan é essencialmente uma pessoa feliz. Apesar da angústia que sentiu durante anos por achar que tinha nascido no corpo errado, aproveitou sempre o melhor possível o muito que a vida lhe deu - e mesmo o que um corpo de homem lhe ofereceu. Aos 17 anos ingressou como voluntário no Exército inglês, foi oficial do 9º Regimento de Lanceiros da Rainha - "paradoxalmente a vida militar sempre me atraiu", escreve num capítulo de "Conundrum" em que confessa a sua admiração pelas "virtudes militares, a coragem, a força, a lealdade, a auto-disciplina" além de um fascínio especial por tanques.
Mais tarde tornou-se jornalista e percorreu o mundo em reportagem ao serviço da "Arab News Agency" do Cairo, do "The Times" e do "Manchester Guardian". E se se sentia desconfortável no "Manchester Guardian" porque "era como trabalhar para uma mulher e não para um homem", o "Times" agradava-lhe precisamente por ser "muito britânico e muito masculino".
"O facto de ter nascido no Império Britânico moldou a minha visão do mundo", reconhece ao Ípsilon. "Senti-me desde o início privilegiada e de certa forma invulnerável. Além disso, embora tenha vindo a abominar o princípio do imperialismo, a ideia de que uma pessoa pode impor o seu domínio a outra (por exemplo os ingleses sobre nós, no País de Gales!), sentia-me seduzida pela estética de tudo isso, e é por isso que o meu trabalho mais importante é a minha triologia 'Pax Britannica' - uma franca mistura de admiração e repulsa, que representa, julgo eu, a atitude nacional melhor do que qualquer análise académica".
Jan Morris parece ter, mais do que a maioria das pessoas, uma consciência aguda do sexo de coisas, de acontecimentos, de cidades. É através dessa perspectiva que lê momentos determinantes da sua vida como a expedição do topo do Everest, que acompanhou como jornalista em 1953. "O corpo masculino pode ser pouco generoso e pouco criativo de uma forma mais profunda, mas quando está a funcionar bem é uma coisa maravilhosa de habitar", escreve a propósito desse momento em que sentiu que nada a podia derrotar. E, no entanto, aquele feito extraordinário deixava-a "insatisfeita, como provavelmente à maioria das mulheres", porque era uma vitória no vazio - "nada fora descoberto, nada feito, nada melhorado".
O casamento, os filhos, a operação
Encontrar Elizabeth Tuckiness mudou-lhe a vida. Foi um "encontro de iguais". A descrição que faz é a de um grande amor e da descoberta de uma alma gémea. Casaram em 1949 e tiveram cinco filhos, três rapazes e duas raparigas. "Ouve-se agora falar no conceito de 'casamento aberto' [...] O nosso foi sempre um acordo desse tipo", e "pela natureza das coisas, o sexo era subsidiário".
Jan sabia que queria ter filhos e, não podendo ser mãe, assumiu com prazer o papel de pai, mesmo reconhecendo que nunca foi a típica figura paternal. Elizabeth soube sempre o "enigma" da vida do marido, e os filhos souberam, de forma gradual, mais tarde. "Espero ter-lhes dado, se nada mais, pelo menos uma compreensão do amor", escreve.
Mas se os filhos e Elizabeth acompanharam essa mudança gradual e tiveram tempo para se habituar a ela, o resto do mundo estava menos preparado para a transformação de James em Jan. Num dos capítulos mais marcados pelo seu elegantíssimo sentido de humor, descreve o que foram esses anos em que a sua "condição andrógina" se podia revelar tanto um "pesadelo" como uma "aventura". O momento, por exemplo, em que, tendo que passar pela alfândega no aeroporto Kennedy, em Nova Iorque, "não fazia ideia a que sexo é que o polícia iria achar que eu pertencia, e tinha que preparar as minhas respostas para qualquer uma das decisões" e tentar perceber se ouvia um "o senhor aí" ou em vez disso "a senhora, por favor", para poder decidir que atitude tomar.
As reacções mudavam conforme o lugar do mundo em que se encontrava. "Os gregos pareciam muito divertidos. Os árabes convidavam-me para passear. Os escoceses pareciam chocados. Os alemães preocupados. Os japoneses não reparavam".
Com o tempo, e as doses de hormonas, a ambiguidade foi-se reduzindo e Jan foi parecendo cada vez mais uma mulher. Inicialmente a operação estava prevista para a Grã-Bretanha, mas a informação de que teria que se divorciar de Elizabeth primeiro (o que acabaria por acontecer mas só mais tarde) levou-a a uma opção mais arriscada: o Dr. B e a sua clínica em Casablanca. Foi aí que, nas duas semanas que levou a recuperar da operação, viu pela primeira vez outros como ela. "Encontrávamo-nos vagueando pelos corredores. [...] Éramos como prisioneiros, momentaneamente libertos das nossas celas para interrogatórios, encontrando por fim colegas que só conhecíamos por códigos ou lendas. Olhávamos uns para os outros como estranhos e aliados, com curiosidade e inocência".
E assim James deu lugar a Jan. Só então, sentindo-se completa, percebeu o "quão profundamente tinha ansiado pelos braços e o amor de um homem". Mas era "demasiado tarde" porque os homens que amara estavam "já casados, ou mortos, ou longe, ou indiferentes".
Às vezes o nome suscitava confusões, como quando um australiano lhe disse, em tom descontraído: "Pensei que Jan Morris era um homem. O que é que aconteceu, mudou de sexo ou alguma coisa assim?". E Jan respondeu a evidência: "Sim, foi isso mesmo". Mas no geral o mundo integrou bem a nova identidade.
Aliás, tudo correu surpreendentemente bem. Jan acredita que foi assim porque faz parte da categoria dos "transsexuais do tipo clássico", aqueles para quem o que está em causa não é uma questão sexual, aqueles que "não oferecem nenhum objectivo racional às suas compulsões", mas limitam-se a ser "guiados, cegamente, e sem alternativa, até à mesa de operações".
Nunca se arrependeu da decisão que tomou. Aliás, escreve, "se me visse presa nessa gaiola outra vez, nada me afastaria do meu objectivo, por muito assustadoras que fossem as perspectivas, por muito pouca que fosse a esperança, correria a terra em busca de cirurgiões, subornaria barbeiros ou abortadeiras , pegaria numa faca e fá-lo-ia eu própria, sem medo, sem dúvidas, sem pensar duas vezes".
E aos que a invejam acreditando que tomou em mãos o seu destino, e lhe citam W. E. Heney - "I am the master of my fate,/I am the captain of my soul", responde que isso é uma ilusão e que se avançou por aí foi porque esse era o único caminho que lhe era possível percorrer.
E cita-lhes Cecil Day Lewis - "Tell them in England, if they ask/What brought us to these wars/To this plateau beneath the night's/Grave manifold of stars/
It was not fraud or foolishness,/Glory, revenge or pay:/We came because our open eyes/Could see no other way."