Marcus Leatherdale

No princípio dos anos 1990, quando já vira morrer muitos dos seus amigos e Nova Iorque era uma sombra de si mesma, o fotógrafo Marcus Leatherdale decidiu mudar-se para a cidade sagrada de Varanasi, na Índia. Passa parte do ano em Lisboa, outra na selva do Jharkhand, onde criou um sistema de ajuda médica.

Deixei Montreal quando tinha 20 anos. Estudei na Califórnia e cheguei a Nova Iorque em finais dos anos 1970 basicamente para ser um adulto profissional. Via-me como um artista a usar a fotografia como suporte. Decidi fazer qualquer coisa mais comercial, para revistas, porque não sabia como sobreviver. Foi assim que cheguei à Interview e conheci o Andy Warhol. Naqueles tempos a vida era acessível. As pessoas não estavam atrás de três portas de vidro, de duas assistentes em Prada mais dois IMac, como hoje. Se se queria conhecer o Andy, era ir à Factory, bater à porta e, se se conseguisse passar a porteira bulldog, conhecia-se o Andy. Claro que tínhamos alguns amigos comuns, o Robert Mapplethorpe e algumas pessoas mais, o que tornou tudo mais fácil. Na verdade, acabei por não trabalhar muito para a Interview, mas fiquei amigo do Andy. Trabalhei mais com a Soho News, que era a revista semanal na moda, à época. O Stephen Saban escrevia, eu fazia retratos. Foi assim durante uns tempos, até que apareceu a Details, a revista que substituiu a Interview. A Interview perdeu acutilância, tornou-se yuppie, e a Details ganhou terreno.
Na altura encontrávamo-nos muito numa discoteca chamada Dada, onde se organizavam umas noites em que uma série de artistas faziam projectos para as cabines "gogo". A minha, tornei-a num estúdio onde fazia retratos inidentificáveis - fotografava as pessoas sem que o rosto fosse reconhecível, o que agora não parece assim tão estranho, mas na altura era bastante obscuro. Não tencionava fazer nada de especial com as imagens, mas o Stephen Saban, que começou a Details, veio ter comigo a propor que as Hidden Identities [identidades escondidas] se tornassem numa secção mensal da revista, uma página. Fiz isso de 1982 a 1990. Antes de a revista ser comprada pela Condé Nast [o grupo da Vogue, Vanity Fair, Wired...] e se tornar numa espécie de GQ, que é o que é agora.
A fotografia do Andy Warhol a esconder o rosto com a mão [que surge na capa do livro agora à venda] é o exemplo perfeito [das Hidden Identities]. Mas a secção da revista ia de pessoas realmente muito famosas como a Jodie Foster e o Kiefer Sutherland até às pessoas hype da downtown cool da Nova Iorque boémia.
Foi pelo que me tornei mais conhecido nos anos 1980. No início, ninguém sabia mesmo quem era o fotografado, ninguém, nem os directores de arte da revista, porque eu chegava com a imagem mesmo em cima do prazo e limitava-me a deixá-la em cima de uma secretária. Entre os leitores, quem não fosse o suficientemente cool para poder reconhecer a pessoa... Temos pena! [risos] Eram tempos interessantes... No fundo, estava a registar uma era que estava prestes a extinguir-se, em menos de 20 anos, e, retrospectivamente, foi o que se tornou interessante, mas, na altura, não tinha consciência disso, claro. Agora sei que é o que vai acontecer com as tribos da Índia que tenho vindo a fotografar. De certa forma, mudei de tribos.
Cidade-fantasma
As pessoas perguntam-me muitas vezes se não tenho saudades de Nova Iorque. Eu digo: "Desesperadamente!" Mas Nova Iorque já não existe, é uma cidade-fantasma. Vou a Nova Iorque e as pessoas morreram ou foram-se embora, não estão lá. No outro dia, perguntaram-me quando foi a primeira e a última vez que vi o Andy. A primeira foi com quatro ou cinco outras pessoas [incluindo Robert Mapplethorpe] - estão todas mortas. Na última [quando partilharam um táxi saídos de uma festa em casa de Mick Jagger e Jerry Hall], era eu, o Andy e a [modelo e coleccionadora de moda] Tina Chow - a Tina também morreu, com sida. Morreram todos.
Normalmente não falo sobre isso, tento não pensar sequer. Suponho que também não fiz este livro antes porque não estava interessado em fazê-lo - era o meu passado. As pessoas à minha volta é que começaram a dizer-me como a história se tinha reescrito nos anos 1980 e como eu tinha visto isso de dentro. Acabei por achar que tinham razão. Mas para fazer o livro quase tive um colapso nervoso. Fui passando as provas de contacto [das fotografias] uma a uma e era: morto, morto, morto... Chorei. Tantas pessoas maravilhosas que já não estão connosco! Em parte, a minha vida desapareceu ali...
A verdade é que às vezes me sinto o último dinossauro a vaguear à face da terra.
Foi uma perda pessoal, sim. Eu não era um paparazzo. Nunca pensei em mim como parte fosse do que fosse, mas era. Eram os meus amigos. [Por outro lado] Nova Iorque foi limpa a um ponto que não ficou fertilizante para as coisas crescerem. A boémia não pode existir quando se tem de pagar rendas como aquelas. A renda do meu estúdio, os Leatherdale Studios, subiu de 350 dólares para mil nesse período [de transição dos anos 1980 para os anos 1990], agora são três, quatro, cinco mil dólares por uma escalada de três andares a pé!
Todas as cidades têm uma era. Na viragem do século, na Era Dourada, era Viena, depois foi Paris, depois foi Moscovo, agora, de alguma forma, é Berlim. Nova Iorque foi o centro do universo desde [finais da década de 1950, com] o período Beat até ao fim dos anos 1980. Trinta anos. Depois foi limpa e agora é só um sítio limpo e seguro para pessoas ricas viverem e irem às compras. Foi-se a boémia, que era o que fazia de Nova Iorque uma cidade diferente. Agora tanto faz ir a Nova Iorque, Chicago ou Houston. Não é assim tão diferente: [todas têm lojas] Gap e Starbucks em cada esquina. Nova Iorque perdeu a sua irreverência.
Diria que tudo mudou no início dos anos 1990. Em Nova Iorque senti os restos da festa que tinha acabado. Precisava de sair dali e encontrar uma nova base. [Por motivos profissionais] precisava de uma base no Ocidente e daí Lisboa, que é uma cidade incrível. Mas, basicamente, vivo na Índia, é lá que trabalho. A minha sanidade mental é a Índia.
Na selva
Fui à Índia pela primeira vez no princípio dos anos 1970. Antes de ir para a Califórnia, os meus pais mandaram-me viajar durante um ano. Tinha pais progressistas que acharam que o melhor era eu viver o que tinha a viver antes de começar a estudar a sério. Estamos a falar de 1972. Tinha 20 anos. [Na Europa] fui apanhado em Atenas pelos levantamentos civis [de contestação à ditadura]. Havia pessoas a serem mortas nas ruas, gás lacrimogéneo a ser lançado [pelo exército] e as fronteiras foram fechadas. Quando por fim as voltaram a abrir, fui para a Turquia. Não tinha pensado ir naquela direcção, mas também já não queria ficar em Atenas, por isso apanhei o primeiro voo para Istambul.
Tinha mil dólares canadianos, o equivalente a cinco mil hoje [cerca de três mil euros] quando encontrei um grupo de hippies holandeses que queriam ir de carrinha por terra para a Índia e estavam à procura de mais uma pessoa. Na altura estava quase a nevar em Istambul e eu nem tinha um casaco, andava pela cidade de socas e manta pelos ombros. E pronto. Pensei: Ok! Ainda bem, porque tive a felicidade de atravessar o Irão numa altura em que o Xá ainda estava no trono.
Foi antes de os regimes [ditatoriais] tomarem conta de toda daquela zona. Fomos pelo Irão e pelo Afeganistão, antes dos russos e dos taliban. Era extraordinário. O Afeganistão era um país magnífico, e no Iraque havia ainda o castelo deixado por Alexandre, o Grande, com as kasbah a toda a volta, agora completamente destruído pelas guerras. E finalmente cheguei à Índia, o que foi uma experiência incrível. Foi aos 21 anos. Voltei dez ou 15 anos depois, como turista. Percebi que ainda adorava, e que queria voltar para fotografar não com uma [câmara] 35mm, mas para trabalhar em estúdio, com um sentido estético ligado ao meu trabalho. Em 1993, quando Nova Iorque estava, na minha opinião, a bater no fundo, consegui carta-branca do Governo indiano e percorri o país por três meses. Foi assim que este trabalho começou. No ano seguinte, fui para Benaras, arranjei uma casa e montei um estúdio no telhado.
Benaras é um dos centros de peregrinação hindu, um dos locais mais sagrados da Índia, com o rio Ganges, uma cidade onde as pessoas vêm morrer, onde se queimam e deitam os mortos [à água]. Tem um ambiente impressionante. Como viver num filme surrealista do Ken Russel.
Fiquei em Benaras seis anos, basicamente a deixar que a Índia hindu viesse até mim. Mas já tinha começado a ouvir falar nas tribos, nos Adavasi, que estão fora do sistema das castas hindus. São animistas, acreditam que deus está nas árvores, nas pedras. Representam dez por cento da população, o que não parece muito, mas, quando essa população é de mil milhões, estamos a falar de 100 mil pessoas de que ninguém parece saber nada! Portanto, comecei a investigar e foi quando me apercebi de que era o que queria fazer, homenageá-los no seu estado mais tradicional antes de serem absorvidos pela aldeia global, antes de serem evaporados por este mundo de hoje. Para isso, tinha de me mudar para a Índia rural. Deixei Benaras e agora estou no Jharkhand, que é um estado tribal [criado pelo Estado há nove anos] no centro oriental do país.
Não posso viver onde vivem as tribos mais puristas, o Governo não me deixa. Vivo numa zona mais misturada. Quando vou fotografar essas tribos o que faço é entrar primeiro e pedir desculpa depois. Mais fácil do que pedir autorização [risos]. Seja como for, são 25 quilómetros de selva até onde vivo, uma zona onde é difícil arranjar nem que seja água potável. Foi, aliás, devido a esse contexto que acabei por criar a minha equipa de ajuda médica.
Reparei que muitos dos meus vizinhos tinham crianças com deformações e queimaduras ou simplesmente desfiguradas. No Ocidente, as crianças não saem do hospital com aquelas coisas, são tratadas mal nascem, mas, ali, como a maior parte delas nasce numa cabana de lama, acabam a viver com um membro torcido, isto ou aquilo. Não têm dinheiro para se tratar e, mesmo que tivessem, quem tratava? O que aconteceu foi que percebi que tratar uma coisa como um lábio leporino não custava mais do que uma miserável conta de telefone, menos de cem euros. Comecei por aí, com um rapazinho, um monstro que teria vivido para sempre como uma espécie de Quasimodo, sem viver experiências tão simples como casar. Paguei-lhe a operação ao lábio. Agora é um rapaz lindíssimo. Tenho um amigo, o [maquilhador português] Jorge Sério, que também se envolveu [no projecto de ajuda médica], e depois uma amiga. Hoje somos cinco ou seis pessoas. É uma espécie de devolução cármica.
As pessoas morrem todos os anos na Índia simplesmente por não terem o equivalente a dez euros. As mordidelas de cobra, por exemplo. Há três espécies venenosas e todas têm o mesmo antídoto. Se a dentada for numa veia derruba um elefante, mas se for no músculo, que normalmente é, dá um dia ou dois [para injectar o antídoto]. Ora, o antídoto custa o equivalente ao salário de uma semana. Mas nem é isso. É que o antídoto tem de ser refrigerado e o indiano médio não tem um frigorífico. Aqui [no Ocidente], uma mulher com três filhos e a viver da segurança social tem um frigorífico em casa. Na Índia não. E se tivessem não tinham electricidade, o que queria dizer que precisavam de ter um gerador e de comprar diesel para alimentar o gerador. Tudo coisas para que não têm dinheiro. Nós disponibilizamo-las.
Os extremos
Hoje, a Estée Lauder vende produtos de beleza em Bombaim e vê-se mulheres de sari a ter orgasmos [em anúncios] na televisão por causa de um detergente que lava melhor do que o outro, mas 50 por cento do país ainda não tem água corrente nem electricidade. É absurdo! De certa forma, é o que aconteceu na América dos anos 60 e 70, quando as mulheres não tinham qualquer identidade a não ser manter a roupa limpa para a família e alimentá-la. Agora está a acontecer na Índia. Mas isso é na Índia moderna e, na verdade, eu não sei nada da Índia moderna. Na Índia, sou um tipo do campo: chego de avião a Calcutá, vão-me buscar no meu jipe e vou para o meio da selva.
Não vou a Bombaim. Dantes ia. Um dos meus melhores amigos era o príncipe de Jaipur e eu costumava ir aos cocktails e jogos de pólo no Rajastão. Mas a partir de certa altura pareceu-me muito difícil. [Na Índia] o ter e o não ter são tão extremos que para mim se tornaram insustentáveis. Há gente a gastar milhões de dólares em festas de casamento, quando há pessoas fora dos portões que não têm dinheiro para comer. Parei. Não me sinto confortável a fazer parte disso. Não é um problema exclusivamente indiano, acontece em muitos países do terceiro mundo. Na América do Sul, em África... Não sei... Tenho esta questão idealista de achar que se toda a gente desse apenas um dólar por ano tratava do planeta. Ou, ainda mais longe: um por cento do seu salário: nivelava tudo. Mas os que têm mantêm e os que não têm não recebem.
É uma conversa que, na verdade, não tem fim. Suponho que tudo o que posso fazer é a minha parte. Não sei qual vai ser o resultado para a Índia com a emergência da classe média. É outro mundo. Os meus velhos amigos de Deli e Bombaim não fazem ideia como é que eu vivo actualmente e não estão minimamente interessados em ir visitar-me. Se não podem ligar um secador de cabelo nem ter ar condicionado, não vão. Não querem saber das tribos, querem viver em centros comerciais e comer em restaurantes e hotéis de cinco estrelas. Não estou a dizer que não podem fazer isso, mas não sei como é que se conciliam as duas coisas. Eu fiz a minha escolha. E, para mim, nem sequer houve qualquer choque cultural. Em Nova Iorque estava a fotografar uma era, determinadas pessoas num determinando contexto num determinado momento. Agora estou a fazer o mesmo, com as mesmas câmaras, apenas mais conscientemente. A única diferença é que nos Estados Unidos eu criava o drama, a teatralidade, punha as pessoas a interpretar papéis. Eram retratos, mas eram muito sobre mim, também. Usava actores, performers. Na Índia, a vida é um drama, é teatro, toda a gente tem uma história.
Claro que na Índia nunca me poderei misturar realmente [com os meus retratados]. Muitas crianças chamam-me "fantasma" e têm tanto medo de mim que não é possível fotografá-las. A maioria nunca viu um branco. Na melhor das hipóteses, sou visto como um alienígena amigável, o marciano residente.
[Nas zonas tribais] cada aldeia tem cinco anciãos. Eu não bebo, mas com eles tenho de beber aquele toddy horrível, tenho de dançar meio nu para as pessoas perceberem que não têm de usar uns calções horrorosos e uma T-shirt de poliéster quando vêm ter comigo para serem fotografadas. É onde o cristianismo entrou e lhes disse que não podiam mostrar o corpo.
Acho que estou, de novo, a fotografar uma era: a Índia tradicional, que está a desenvolver-se, e a Índia tribal, que vai deixar de existir. As coisas mudam. Para melhor ou pior, transitam. [Registá-lo] é o poder da fotografia do documento. É um labor de amor. A

vanessa.rato@publico.pt

A partir de uma conversa com o fotógrafo Marcus Leatherdale nasceu em Montreal, no Canadá, e tem 56 anos.
O livro Hidden Identities está à venda no seu site, em marcusleatherdale.com.

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