Torne-se perito

Fernão de Magalhães era minhoto

Livro do historiador Amândio Barros reforça tese de que o navegador nasceu na Ponte da Barca. A reivindicação de Sabrosa, uma das terras onde o computador Magalhães foi simbolicamente apresentado, está desacreditada há largas décadas, mas ainda ninguém deu por isso. Por Luís Miguel Queirós

a Se pedirem a um estudante do secundário que faça uma pesquisa sobre Fernão de Magalhães, o português que, no início do século XVI, ousou aventurar-se a circum-navegar o globo, o mais certo é que inicie o seu trabalho explicando que este nasceu em Sabrosa, Trás-os-Montes, em 1480, e que era filho de Rodrigo de Magalhães e Alda de Mesquita. É o que afirma, taxativamente, o autor que escreveu a entrada relativa a Magalhães para a Wikipédia, o primeiro endereço que aparece a quem digitar o nome de Fernão de Magalhães no Google. Não admira, portanto, que Sabrosa tenha sido um dos locais escolhidos para a apresentação do já célebre computador baptizado em honra do navegante. E, na verdade, com alguma justiça, já que esta autarquia do distrito de Vila Real tem feito bastante para divulgar a figura de Fernão de Magalhães, o que, no final de contas, é decerto mais importante do que apontar os dois metros quadrados do território nacional em que a sua mãe se encontrava quando o deu à luz.
Amândio Barros, professor da Faculdade de Letras do Porto e especialista em História Marítima, lançou agora uma obra - A Naturalidade de Fernão de Magalhães Revisitada - na qual defende que Magalhães nasceu no Minho, provavelmente em Ponte da Barca. Mas ele próprio começou a investigar o assunto a convite da Câmara de Sabrosa, ainda que as suas pesquisas não tenham tardado a convencê-lo de que o navegador não era mesmo natural de Trás-os-Montes.
Ao contrário do que escreve o redactor do artigo da Wikipédia, que não fez mais do que transcrever informações que andam espalhadas por muita obra de divulgação, e até por manuais escolares, Magalhães pode bem não ter nascido em 1480 e é certo que não era filho de nenhum dos supostos progenitores citados. O pai chamava-se Rui de Magalhães e desconhece-se o nome da mãe. Também não nasceu na Casa da Pereira, em Sabrosa, como ainda hoje se pretende.
Amândio Barros não pretende ter demonstrado que Magalhães é natural de Ponte da Barca, mas considera provada a origem minhota do navegador, tese que, recorda, foi defendida por autores como António Baião, Queirós Veloso ou Veríssimo Serrão. Se pensarmos que já se passaram quase noventa anos desde que Baião desmontou os fundamentos em que se baseava a reivindicação de Sabrosa, e com argumentos que ninguém pôs seriamente em causa, fica-se com uma boa ideia da dificuldade que pode ter a investigação historiográfica mais especializada em fazer chegar as suas conclusões à opinião pública, mesmo quando está em causa uma figura histórica de indiscutível projecção internacional.
Como Magalhães acabou por organizar a sua expedição ao serviço do rei de Espanha, Barros admitiu ao P2 que o facto de ainda hoje se apontar Sabrosa como o local do seu nascimento pode também ficar a dever-se à falta de empenho de outros municípios em reivindicar a naturalidade de alguém que tem sido visto como "uma espécie de traidor", com base, aliás, em noções de patriotismo dificilmente aplicáveis ao século XVI.
Na verdade, se o seu livro, publicado pela Afrontamento, irá ser provavelmente citado como uma obra que impugnou definitivamente a tese de Sabrosa e confirmou a de Ponte da Barca, o principal mérito do trabalho talvez não resida aí, mas na convincente e inovadora argumentação que o autor apresenta para sustentar a sua convicção de que o navegador também não nasceu no Porto, hipótese defendida por vários autores, a começar pelo escritor austríaco Stefan Zweig, que foi um dos seus mais populares biógrafos.
Os testamentos forjados
Barros dividiu a sua obra em três partes, contestando, nas duas primeiras, as reivindicações de Sabrosa e do Porto, e reservando a última para expor as muitas razões que concorrem para situar as origens de Magalhães no Minho. De passagem, refere ainda um quarto possível local de nascimento, Figueiró dos Vinhos, aventado no século XIX pelo genealogista Felgueiras Gaio. Uma tese que nunca conheceu grande fortuna, mas que Barros até veio revitalizar com a descoberta de um documento que parece confirmar que o pai do navegador chegou mesmo a desempenhar funções na casa de João Rodrigues de Vasconcelos, senhor de Figueiró. O achado não demonstra, de modo algum, que Fernão de Magalhães nasceu naquela vila do distrito de Leiria, mas sugere que a sua família teve ligações à região.
A tese de Sabrosa parte, desde logo, de um equívoco genealógico, resultante da confusão entre dois homónimos. Os que defendem a naturalidade transmontana do navegador apontam como seu progenitor Pedro de Magalhães, que efectivamente teve um filho Fernão. Sucede que este Fernão recebia ainda uma tença de D. Manuel I em 1525, oito anos após o navegador ter entrado ao serviço de Castela (e quatro anos após a sua morte nas Filipinas, em 1521...).
As pretensões de Sabrosa fundam-se em dois testamentos. O primeiro teria sido ditado pelo próprio Magalhães em 1504. A par de muitos outros motivos para se concluir da falsidade deste documento, nele se estipula que as propriedades que o navegador possuiria em Sabrosa passassem a uma sua suposta irmã, Teresa de Magalhães, casada com João da Silva Teles, senhor da já citada Casa da Pereira. Ora, sabe-se que Fernão de Magalhães, em 1504, tinha pelo menos dois irmãos vivos, que usavam o apelido Sousa: Diogo e Duarte. Nenhum deles é referido no testamento, o que desde logo daria motivo a que o contestassem, algo que nenhum deles fez, nem poderia ter feito, já que o documento foi forjado quando ambos há muito tinham morrido.
Ao papel de 1504 veio somar-se um testamento de 1580, que teria sido mandado lavrar por um alegado sobrinho-neto do navegador, Francisco da Silva Teles, que estaria então exilado no Brasil, expiando as culpas do tio-avô, ou seja, "pelo delito de Fernando de Magalhaens se passar a Castella em desserviço deste Reino a descobrir novas terras".
Entre as diversas incongruências que Barros aponta a este documento conta-se o facto de nele se dar "tratamento de Sua Majestade a D. Manuel, prática que em Portugal só foi consagrada no último quartel do século XVI". Até então, acrescenta, "os reis portugueses eram tratados por Sua Alteza". E todo o documento respira noções de patriotismo inconcebíveis na época. "Deixámos a nossa pátria, por vergonha, e medo que se levantassem os vizinhos contra nós", escreve o testador, dando razão aos seus conterrâneos, que não poderiam suportar quem tinha "ido contra Portugal, que é a sua pátria, servir castelhanos, nossos inimigos naturais". No Portugal do século XVI, argumenta Barros, "só mesmo Camões ou Frei Luís de Sousa" poderiam falar de Pátria num sentido próximo do que este texto pressupõe. Para já não referir a ousadia de um nobre português que, num documento oficial, e a poucos meses de as duas coroas se unirem sob Filipe II de Castela, considera os castelhanos "inimigos naturais".
Para se perceber de onde surgiram estes estranhos testamentos é preciso avançar até ao final do século XVIII, quando António Luís Álvares Pereira, senhor da Casa da Pereira, em Sabrosa, que era casado com uma sobrinha do poderoso político espanhol Manuel Godoy, primeiro-ministro de Carlos IV, e vivia então em Madrid, decidiu que valia a pena mover algumas influências e apresentar-se como descendente de Magalhães. O móbil da fraude era o mais óbvio: deitar a mão à fortuna a que o navegador teria tido direito - na base do contrato celebrado com o imperador Carlos V (Carlos I de Espanha) - se não tivesse morrido antes de a poder receber.
Álvares Pereira apresentou as suas pretensões em 1795, e foi no âmbito desse processo que pela primeira vez viram a luz do dia os supostos testamentos quinhentistas. Não fora o facto de o suposto herdeiro ter morrido precocemente, com o processo ainda em curso, e a fraude podia bem ter resultado. O facto é que ainda hoje se invocam estes testamentos contrafeitos para se defender que o navegador nasceu em Sabrosa, informação que, aliás, nenhum deles expressamente adianta.
Os conventos trocados
Já a ideia de que Magalhães poderia ter nascido no Porto parte de um documento genuíno: o contrato assinado entre o rei de Castela e o navegador em Março de 1518, onde este último se intitula "vizinho do Porto". Acresce que no seu verdadeiro testamento - o que redigiu em 1519, em Sevilha, antes de iniciar a viagem que lhe custaria a vida -, Magalhães faz uma doação ao mosteiro de S. Domingos do Porto. Ou parece que o faz. Barros acha que a passagem foi mal interpretada. O mosteiro de "santo domyngo de las dueñas de la ciudad del puerto", que o texto refere, é, afirma, o de S. Domingo das Donas do Porto, ou seja, o convento do século XIV a que hoje se chama do Corpus Christi e que fica, não no Porto, mas em Vila Nova de Gaia.
O facto de se saber que duas parentes do navegador viviam então no convento de Gaia, como freiras, já abonava em favor desta identificação, mas o que mais entusiasmou Barros foi a descoberta, no acervo do mosteiro, de um documento de 1513 em que se refere um "caminho que vai ter ao lugar de Rui de Magalhães", topónimo que parece confirmar a presença da família nas imediações do Porto.
Especialista em História Marítima, e no papel que o Norte do país desempenhou nos Descobrimentos, o autor nunca duvidou da ligação de Fernão de Magalhães ao Porto. Terá mesmo sido nesta cidade, onde vários parentes seus representavam o rei em cargos importantes - integrar o funcionalismo régio era quase o único pretexto possível para que, na época, um nobre pudesse residir no burgo -, que Magalhães foi desenvolvendo o seu projecto, mobilizando o cartógrafo Rui Faleiro e o piloto Estêvão Gomes, e negociando com intermediários castelhanos o futuro contrato com Carlos V. Mas Barros alerta para o facto de o estatuto de "vizinho" não pressupor naturalidade, defende que teria sido virtualmente impossível que o navegador tivesse nascido no Porto, e encara mesmo com reservas que este tenha sido seu "vizinho", no sentido legal do termo. Para o ter sido, teria de ter requerido oficialmente essa condição, muito ambicionada mas difícil de alcançar, e não há qualquer documentação que demonstre que alguma vez a solicitou.
Ainda mais improvável, sustenta Barros, é que o navegador tenha nascido no Porto por volta de 1480, quando a cidade lutava ferozmente para conservar o seu privilégio de não permitir a permanência dos nobres dentro dos seus muros. E recorda que, precisamente por esses anos, os portuenses tinham incendiado as casas que um fidalgo, Rui Pereira, tivera a imprevidência de ali mandar construir.
O herdeiro espoliado
Os principais argumentos para se situar em Ponte da Barca, ou ali perto, o nascimento de Fernão de Magalhães partem de uma premissa: a de que o navegador era parente dos senhores da Nóbrega, uma unidade territorial que veio a incluir Ponte da Barca, fundada pelo quinto titular da Nóbrega, João de Magalhães.
No seu testamento de 1519, o navegador refere que usa as armas dos Magalhães e dos Sousa, o que desde logo sugere laços com a família de Ponte da Barca, que ostenta os mesmos apelidos. Mas os parentescos exactos que sustentam esta ligação foram sendo obscurecidos por erros de vários genealogistas. Manuel Abranches Soveral - um dos autores a que Barros recorre - divulgou recentemente na Internet um estudo que esclarece definitivamente por que vias Fernão de Magalhães vai entroncar na árvore genealógica dos senhores da Nóbrega.
Segundo Soveral, o navegador era filho de Rui de Magalhães, neto de Paio Afonso de Magalhães e bisneto de Gil Afonso de Magalhães, que, por sua vez, era irmão do já referido João de Magalhães, fundador de Ponte da Barca. Acresce que, embora tendo partido novo das propriedades da família, o navegador nunca quebrou os laços que o prendiam às terras limianas. Barros enumera diversos registos de transacções operadas na região por familiares muito próximos de Fernão de Magalhães. E o próprio navegador, quando se encontrava no Oriente e quis reclamar o pagamento de uma verba que emprestara a um galego em Cochim, na Índia, passou procuração ao seu irmão Diogo de Sousa para que cobrasse a dívida através do almoxarifado de Ponte de Lima. Barros argumenta que seria mais natural que a escolha tivesse recaído no Porto, ou mesmo em Viana, e considera muito significativo que o navegador tenha recorrido ao almoxarifado de Ponte de Lima, justamente aquele que os Magalhães de Ponte da Barca usavam nas suas transacções.
Curiosamente, o documento mais relevante para atestar o parentesco de Fernão de Magalhães aos senhores da Nóbrega e, por essa via, consolidar a tese de que terá nascido na região, foi redigido, nota Amândio Barros, com a mesma intenção que deu origem às já referidas falsificações do final do século XVIII. Trata-se de um requerimento que foi apresentado em 1567 por um Lourenço de Magalhães, que pretendia habilitar-se à herança do navegador. O candidato incluía no processo, entre outros, os testemunhos de diversos familiares então residentes em Ponte da Barca e em Ponte de Lima, que atestavam o seu parentesco com Fernão de Magalhães. Um dos inquiridos foi Manuel de Magalhães e Meneses, 4.º senhor da Barca, que então contava mais de 70 anos de idade, e que, além de ter reconhecido Lourenço como seu parente, explica que este era neto de um irmão do pai do navegador.
Ou seja, dado que os descendentes mais próximos de Fernão de Magalhães tinham morrido, Lourenço dispunha de bons argumentos para reclamar a herança. E, ao contrário dos testamentos forjados por António Luís Álvares Pereira, este documento, garante Amândio Barros, "resiste à crítica e mostra-se verdadeiro, quanto aos trâmites, testemunhas inquiridas e conteúdo dos dados". O que Lourenço não tinha, como tivera o fidalgo de Sabrosa, era um Godoy a quem pudesse meter uma cunha, de modo que, farto dos obstáculos que lhe iam sendo colocados pela burocracia judicial espanhola, e após ter depauperado a fortuna a tentar fazer valer os seus direitos, acabou por desistir da causa.

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