Parece que as depressões financeiras potenciam os double-bills. Este é o nome de uma prática nascida nos anos 1930, nos EUA, quando os donos de cinemas, para não perderem clientes por causa da crise, passavam dois filmes de seguida pelo preço de um.
Na música chegou a haver, no início da era do rock'n'roll, duplos e triplos bills: a Motown mandava artistas aos pares pela estrada fora, Cash andou em digressão com June Carter e mais uma data de músicos. Nos últimos anos não tem sido incomum ver bandas de pequena dimensão irem para a estrada aos pares (o que é diferente de ter um nome pequeno a abrir para um nome grande).
Mas no domingo, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, integrado no programa Próximo Futuro, teremos direito ao mais estranho double-bill de que há memória: em palco estará Omar Souleyman, um dos reis da canção popular da Síria e o Group Doueh, banda de guitarras de uma espécie de Hendrix indomável do deserto. E mesmo assim a música deles é mais estranha que a definição.
Este é um double-bill à antiga porque Souleyman e Doueh têm a mesma editora no ocidente, a Sublime Frequencies, de Alan Bishop, membro dos Sun City Girls. Na prática, a Sublime Frequencies edita aquilo a que se chama "world music", mas está longe de ser uma editora normal, como aliás a opção pela edição de Souleyman demonstra.
"Nós não filtramos estes músicos, não os juntamos a músicos ocidentais, não os dirigimos, nem lhes dizemos o que fazer", conta Bishop ao telefone. Ele anda em digressão com as bandas e funciona como porta-voz deles. "Ouvi-os tantas vezes que sei exactamente o que eles vão dizer." Bishop é uma espécie de anarquista da edição. "Isto é o real deal", afirma a dada altura. E torna-se notório que há um ideal subjacente à sua editora: mostrar aos ocidentais a verdadeira música árabe, longe dos habituais estereótipos associados.
A Sublime Frequencies editou duas compilações do músico sírio, "Highway to Hassaka" e "Dabka 2020". No primeiro temos um grande uso do oud (uma espécie de alaúde), bouzouk eléctrico, sintetizadores marados, canto árabe entrecortado por solos de percussão. Para um ocidental é uma espécie de pop tribal psicadélica repetitiva espacial que faz tangentes ao mau gosto. Mas "Dabka 2020" é outra coisa, tecno sideral de feira ambulante, cabaret tecno rural. Traduzindo para português: seria como se Quim Barreiros fosse coadjuvado por Vitor Rua e um DJ de carrinhos de choque - e depois tomasse meia-dúzia de tabletes de anfetaminas. Estragadas.
Tocar em casamentos
Por estranho que pareça, "Highway to Hassaka" tornou-se um culto entre sub-espécies de melómanos curiosos. "O Omar tem sido laudado na comunidade avant-garde", confirma Bishop. "É nesse universo que o temos apresentado."
Perguntamos-lhe se verdadeiramente subversivo não seria tentar mostrá-lo a um público algures entre o underground e o mainstream, visto que o público das vanguardas valoriza com facilidade os "outsiders", mas Bishop é claro: "O middleground ainda não está preparado. Ainda estão demasiado condicionados."
Mas Souleyman pode muito bem ser considerado o verdadeiro "real deal". Enquanto o ocidente descobria (ou descobre agora) as tradições árabes, a espiritualidade da sua música, os timbres dos seus instrumentos, os locais foram-se apossando de instrumentos eléctricos e misturando sem qualquer pudor todos os instrumentos e géneros à procura de uma simples coisa: eficácia pop.
Porque esta é música pop e Souleyman um dos reis da música local: aos 42 anos actua desde o início dos anos 90 e tem mais de 400 cassetes editadas. "O Omar toca a música da sua área, que é uma zona rural, de terras pequenas. É uma música de certa forma ingénua, e sem referências em termos ocidentais", explica Bishop. "Estes são tipos que não sabem nada de pop ocidental, não sabem que foi o Elvis ou quem foram os Beatles. Não fazem ideia o que seja o techno mesmo que façam também música que se aproxima do techno."
Fazem (por vezes) techno, diz Bishop, pela simples razão de terem acesso aos instrumentos.
Souleyman, diga-se, toca em casamentos e não faz concertos ao estilo ocidental. "Faz aquilo que diz respeito ao seu meio e à sua classe", continua Bishop. "Eles [a banda de Souleyman] são profissionais, não são artísticos ." São também, diz o press-release, verdadeiramente "chunga".
A ideia de "real deal" associada ao Group Doueh é outra. Ouvi-los é como se tivéssemos acesso aos primeiros ensaios de uns Tinariwen ainda mais sujos.
O Group Doueh vem do Sahara Ocidental, da etnia Saharawy, e é exemplar de uma miscigenação que parece ter sido forte por aquelas zonas: Doueh, o líder da banda, cresceu "a ouvir muito Jimi Hendrix e James Brown, muito rock'n'roll". Em adolescente "já ganhava a vida como músico" e era um bom tocador de tinidit. O tinidit é instrumento tradicional, um aparentado acústico, de quatro cordas, da guitarra, a partir do qual Doueh desenvolveu o estilo que depois adaptou para guitarra eléctrica.
Mas as comparações com os Tinariwen acabam aqui.
O Group Doueh é composto apenas por quatro elementos, usam teclados, muitos pedais na guitarra (mormente um wah-wah) e têm um som muito cru, tanto no que toca à qualidade da gravação como ao próprio som das guitarras e à estrutura das canções. "Aquelas guitarras têm um som feroz", diz Bishop.
Esse é um ponto em comum entre Doueh e Souleyman: um faz rock árabe, outro faz pop árabe, mas em ambos é música feroz e dificilmente classificável. Bonito era levarem-nos ao Portugal no Coração.