O pavilhão maldito que sobrevive escondido no coração de Lisboa
Era a Enfermaria 8, um lugar que todos preferiam esquecer que existia.
E, no entanto, o pavilhão projectado em 1892 por José Maria Nepomuceno para os doentes mentais perigosos é, diz Vítor Freire, administrador no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, "o mais importante edifício dos finais do século XIX, princípios do século XX, em Portugal".
a Há segredos guardados no centro de Lisboa. Este segredo é um edifício - "maldito", dizem alguns. Foi cenário de histórias de sofrimento profundo. Correu o risco de desaparecer sem que tivéssemos chegado a dar pela sua existência. Salvo pela paixão de um homem, recuperou o branco original e a dignidade. Mas continuamos a passar por ele e a não o ver. São muros atrás de muros. Para chegarmos ao Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda (actualmente integrado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa) temos primeiro que encontrar a porta, meio escondida, do hospital - subir a Rua Gomes Freire, ao longo do muro, chegar quase ao Campo Mártires da Pátria, e passar então o portão. É aí, no edifício principal, um antigo convento, que nos recebe Vítor Albuquerque Freire, administrador e historiador, autor de Panóptico, Vanguardista e Ignorado (Livros Horizonte, 2009), uma investigação sobre a história do Pavilhão de Segurança.
Depois ainda é preciso subir uma rua, passar por outros edifícios e pavilhões, alguns vazios, outros semidestruídos (o Ministério da Saúde chegou a dar ordens para a demolição de um deles, mas depois suspendeu-as e o edifício tem-se encarregue de se transformar a si próprio em ruína). O Miguel Bombarda está em vias de ser desactivado e tem neste momento já um número relativamente baixo de doentes internados. E de repente, no meio deste cenário, surge, redondo, branco, como se pertencesse a outro mundo, o Pavilhão de Segurança, a "maldita" 8.ª Enfermaria, que Vítor Freire descreve no livro como "enfermaria-prisão de doentes mentais condenados e inimputáveis, ou tão-só perigosos, tal como se recomendava nos países mais avançados desse tempo, e concebida muito antes da revolução terapêutica proporcionada pelos psicofármacos nos anos 1950".
"Sermões apocalípticos"
Há um primeiro bloco rectangular e, a seguir, uma passagem leva-nos à zona circular. Abre-se o portão e, como se o edifício nos abraçasse, entramos nesse outro mundo que foi para muitas centenas de doentes durante décadas o único que conheceram. A toda a volta, as portas das celas, pintadas de verde, e, junto a elas, bancos redondos, de cimento, com a base azul. Sobre as nossas cabeças, o telheiro de zinco, suspenso, confiante na resistência elegante da sua complexa curvatura. Hoje o centro tem relva e árvores, mas nem sempre o pavilhão foi este lugar de paz fechado sobre si mesmo, alheio à cidade que o rodeia.
Em Novembro de 1899, um repórter da revista Brasil-Portugal visitava a instituição dirigida por Miguel Bombarda (que na época se chamava ainda Hospital de Rilhafolles). A descrição que faz é sugestiva: "No pavilhão dos agitados, onde entrámos sob os raios de um sol abrasador, que excita e agrava a loucura, sessenta ou oitenta homens gesticulavam, berravam, simulavam murros, os punhos cerrados, injectadas as veias, esgazeados os olhos, destaca-se aquele, toma a nossa frente, lança-nos um olhar que parece um punhal, e grita-nos com toda a força: 'Assassinos! Assassinos!'" Entre homens que mataram as mães, os pais ou as amantes, e que "a fúria tornou feras", passa um segurando uma folha de papel e lendo alto "versos tremebundos... que lá não existem", enquanto outro prega "sermões apocalípticos para converter os hereges", e outros simplesmente insultam jornalista e fotógrafo.
Vítor Freire foi desenterrar nos arquivos a história do edifício que o apaixonou e que não tem dúvidas de que é absolutamente único na cidade. "Este é um edifício panóptico [modelo concebido pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, no qual os presos podem ser constantemente vigiados a partir de uma torre central], um dos raros existentes no mundo", afirma.
Neste caso a torre desapareceu há muito tempo, e não havia sequer memória dela até ter chegado às mãos de Vítor Freire a edição da revista Brasil-Portugal com a reportagem e uma fotografia do "pavilhão dos furiosos", onde estes, alguns dos quais com camisas-de-forças, aparecem em frente a uma pequena torre (não se justificava que fosse muito alta porque o pavilhão só tem um piso térreo) de metal trabalhado. O desaparecimento justifica-se: a torre era inútil, porque um guarda podia facilmente controlar todo o pátio a partir de qualquer ponto.
Um telheiro "do séc. XXI"
Mas o pavilhão é muito mais do que isso - é, defende o administrador, que conseguiu que ele fosse recuperado -, um edifício moderno antes do tempo. "Embora, sendo de 1892-96, se possa integrar nas franjas mais audaciosas do movimento Arte Nova, constitui pela sua linguagem formal um edifício pré-modernista ou mesmo quase modernista." Vítor Freire não hesita em considerar o Pavilhão de Segurança como "o mais importante edifício dos finais do século XIX, princípios do século XX, em Portugal".
Mas quem foi, afinal, o autor do pavilhão encomendado por Miguel Bombarda? No Arquivo da Torre do Tombo, Vítor Freire descobriu o projecto e o orçamento, aprovado pelo rei D. Carlos, no valor de 23.500$00 réis. E descobriu uma informação inédita: o arquitecto responsável pelo pavilhão foi José Maria Nepomuceno (responsável também, por exemplo, pelo restauro da Igreja de São Vicente de Fora e do Convento da Madre Deus e pelo projecto da Escola Médico-Cirúrgica). O homem de rosto triste e barbicha comprida que aparece numa fotografia de 1884 reproduzida no livro "é uma figura esquecida e subavaliada, em parte consequência da deficiente investigação sobre a arquitectura do século XIX".
José Augusto França chamou-lhe "arquitecto antiquado", mas Vítor Freire acha uma injustiça perante o carácter "vanguardista" do Pavilhão de Segurança. Aqui Nepomuceno "exibe uma nova e inédita linguagem formal" com os "sistemáticos arredondamentos de arestas [para evitar contusões nos doentes]" que "antecipam em três décadas a revolução do design e da arquitectura dos anos 1920 e 1930", veja-se os electrodomésticos, as cadeiras Bauhaus ou a arquitectura Déco e Streamline. Os materiais que emprega são "revolucionários": o betão, que habitualmente se escondia e era tido "como material de inferior qualidade", e o canelado radial de zinco do telheiro, uma "estrutura levíssima, que é muito do século XXI".
A tudo isto junta o arquitecto traços do "modo de habitar em Portugal: bancos fixos (poiais) de estar à porta, a praça como local de convívio, a "robustez das alvenarias", as molduras de cantaria, a "nudez da cal". E, por fim, o telheiro "completamente limpo de decoração, mas milimetricamente belo, moderníssimo". A relevância do edifício foi reconhecida pelo Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), que em 2001 o classificou como "Imóvel de Interesse Público, em vias de classificação" - o que, independentemente do que venha a acontecer ao resto do hospital, já é suficiente para lhe garantir a protecção, assegurou ao P2 Elísio Summavielle, o director do Igespar, o organismo que sucedeu ao Ippar.
Era no pátio-praça, onde cultivavam pequenas hortas, que os doentes passavam grande parte do tempo - "uma das exigências de Miguel Bombarda era tê-los o máximo de tempo possível ao ar livre, como forma de evitar a propagação de doenças contagiosas e de melhorar o seu estado mental". Fotografias do final dos anos 60 mostram os doentes no pátio, alguns a jogar sentados nos bancos sem arestas, outros simplesmente a olhar.
Há gaiolas de pássaros penduradas à porta das celas, às vezes a objectiva do fotógrafo revela o interior, a cela nua, uma cama de metal, uma mesa-de-cabeceira, uma cadeira, um balde a fazer de casa de banho, e pouco mais (numa delas apenas um colchão no chão). As portas fechavam-se com um ferrolho, e os enfermeiros podiam espreitar para o interior através de um óculo na porta.
Damos a volta ao pátio - hoje o pavilhão está transformado numa enfermaria-museu, que se pode visitar - e passamos pelas portas das celas até perdermos a noção do sítio exacto por onde entrámos. Lembramo-nos de João César Monteiro, numa cena de Recordações da Casa Amarela filmada aqui, a correr sem parar, à volta, sempre à volta até não haver começo nem fim neste círculo.
Gravadas na pedra do chão, em frente aos quartos, vêem-se estrelas que os doentes desenharam para passar o tempo. Uma porta dá acesso a uma sala maior, de reunião, banco verde corrido ao longo da parede, azulejos por cima, a luz do dia a entrar por um lanternim-respiradouro. Um espaço onde, conta Vítor Freire, acabaram por ser colocadas camas e que foi adaptado a enfermaria. Mais à frente a casa de banho com as banheiras de pedra (recuperadas nas obras de restauro) e os lavatórios, corridos, com azulejos. E depois o refeitório, e já demos a volta completa.
Aqui viveram, alguns deles durante décadas, artistas como Jaime Fernandes (que António Reis retratou no filme Jaime), hospitalizado aos 37 anos com esquizofrenia, e que passou 30 anos no Miguel Bombarda, onde acabou por morrer em 1969; poetas como Ângelo de Lima; e outros, como o bailarino Valentim de Barros - do qual há uma fotografia à porta da sua cela, cheia dos tecidos que bordou enquanto viveu no Pavilhão de Segurança.
"Foi sempre um edifício maldito", repete Vítor Freire. Incompreendido, rejeitado e ignorado. E ainda hoje vítima do preconceito da sociedade em relação à doença mental. Se calhar os que mais se afeiçoaram a ele foram aqueles que se viram apanhados para sempre pelo seu abraço e aí viveram protegidos do mundo.
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