"Valeu a pena atravessar a floresta cheia de fantasmas, perigos e papões"

Muito tem mudado na sociedade portuguesa. Mas a homossexualidade ainda é estigmatizada. As manifestações de "singularidade" dão origem a "calúnia e rumores". Só se reclama no café. "Falta-nos sentido de grupo." É o que diz Ana Zanatti, que há dias assumiu publicamente que é homossexual

a Nos últimos dias o telefone não pára. Os jornais querem detalhes sobre a sua vida. Os colegas são contactados para revelarem alguma coisa que alimente a curiosidade. Também há quem queira simplesmente agradecer-lhe pelo que fez há dias quando, perante uma multidão de personalidades públicas, jornalistas e câmaras, fez saber que era homossexual e defendeu que duas pessoas do mesmo sexo têm de poder casar-se se quiserem fazê-lo. Ela, Ana Zanatti, nunca se sentiu atraída pelo casamento. Mas o que está em causa, diz, é uma questão de princípio.Na apresentação do Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil, no cinema São Jorge, em Lisboa, Zanatti fez algo que não é muito comum. O movimento foi lançado com o apoio de quase mil figuras públicas. Mas não há muitas, em Portugal, que assumam publicamente a sua homossexualidade. Ela assumiu.
O P2 pediu-lhe uma entrevista e ela aceitou com condições: teria de ser por escrito, dada a matéria tão sensível. Nas mensagens trocadas por e-mail revelou-se cuidadosa e reservada. "Não pretendo entrar em mais detalhes sobre mim", disse a certa altura.
Sente que desde o tempo das suas avós muitas coisas não mudaram. O senso comum "é conservador e medroso por natureza". Apesar de tudo, diz que cedo na vida descobriu que trair-se faria dela uma pessoa infeliz. "Valeu a pena atravessar a floresta cheia de fantasmas, perigos e papões. O meu último livro infantil, A grande travessia, fala disso."
Há quem considere que Portugal não tem legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, como a Espanha, porque não há um movimento activista forte, apoiado por personalidades públicas que assumam a sua homossexualidade. O que acha?
Penso que em Portugal carecemos de espírito iniciador, pioneiro, que exige ousadia, convicção, coragem e sentido de responsabilidade. Há uma grande cultura de medos. Medo de arriscar, medo do julgamento dos outros, medo do ridículo, medo de assumir responsabilidades, medo das pessoas diferentes. Como disse o José Gil em Portugal, o medo de existir, o que surge como novo e diferente é uma ameaça à igualdade mediana, nivelada por baixo, que a inveja protege. Qualquer manifestação de singularidade, de originalidade é considerada superior e rejeitada. Logo surgem a calúnia, os rumores, as estratégias de exclusão.
Além disso não somos educados para ousar mas para nos acomodarmos, resignarmos, não nos atrevermos a ser diferentes, a transformar o estabelecido. Somos preguiçosos, conformistas, só reclamamos no café, temos alma de vencidos. Por outro lado falta-nos sentido de grupo, é-nos difícil lutar por um objectivo comum, por um ideal, uma razão forte e esquecer os nossos pequenos interesses. Esse individualismo exacerbado trava o avanço de projectos colectivos.
Para fazer face ao conservadorismo e aos poderes que o sustentam é precisa muita coesão, persistência, método, inteligência e uma boa dose de humildade. Para não haver quem queira fazer prevalecer pontos de vista particulares sacrificando e enfraquecendo a unidade do todo. Mesmo com personalidades públicas a aderirem a esta causa, o ideal é que estejam unidas como agora me parece que se conseguiu, apesar de se contarem pelos dedos os que assumem publicamente a sua homossexualidade.
Quando há dias, na apresentação do Movimento pela Igualdade, falou publicamente da sua homossexualidade, foi a primeira vez que o fez?
Há 40 anos que tenho uma profissão de exposição pública e desde cedo percebi que a minha vida privada era alvo de curiosidade sobretudo pelo lado sensacionalista, que repudio. Sou discreta não por medo mas por natureza. Tenho um sentido ético e estético que não se coaduna com o baixo nível de certos discursos e de algum jornalismo. Procuro alguma elevação em tudo o que faço e nas pessoas de quem me rodeio e por isso não abro as portas à devassa de um bem que me é precioso. Não gosto de ver a minha intimidade tratada como um objecto de satisfação para curiosidades mórbidas ou menores. Tenho uma família e amigos que respeito e me respeitam e quero continuar a manter viva essa consideração que leva uma vida a enraizar-se.
Tenho falado da minha orientação sexual sempre que me parece útil e vem a propósito, como por exemplo em escolas ou universidades onde vou falar dos meus livros, quando alguns alunos procuram uma identificação e respostas às suas duvidas.
Quando lancei o primeiro romance, Os Sinais do medo, como grande parte da história gira em torno dos dramas familiares vividos por homossexuais, pressenti que iria haver uma grande exploração jornalística à volta disso e fiz tudo para que ela não fosse excessiva. Preferi que houvesse menos barulho à volta do livro, o que teria sido uma mais-valia em termos de vendas.
Porquê?
Não quis que o meu primeiro passo no mundo da escrita ficasse associado a nenhuma espécie de exploração do tema ou fosse visto como um acto oportunista. Escrevi um texto para o lançamento em que era clara a minha posição mas optei por um discurso menos pessoal para não correr o risco de afastar da leitura do livro o público que me interessa - o que gosta de ler livros e não apenas revistas cor-de-rosa, de conhecer um novo autor e a sua proposta literária.
Apesar disso, fui alvo de algumas notícias torpes que me levaram a pôr um cronista social e jornalista em tribunal. Foi condenado.
Mas que reacções tem tido desde a apresentação do Movimento pela Igualdade?
O telefone não pára com perguntas intrusivas por parte de certos jornais e revistas e vários colegas meus queixam-se de que lhes ligam para que revelem coisas da minha vida privada. Mas também tenho tido muitos telefonemas e e-mails de apreço e agradecimento.

"O casamento nunca me atraiu"
Acredita que em breve a lei mudará e permitirá o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, como reivindicam?
Acredito que a lei acabará por passar e que este movimento terá um papel importante nisso. Mas não faço futurologia.
Tem planos para casar-se se a lei for alterada?
O casamento como instituição nunca me atraiu mas acho que devemos ter todos os mesmo direitos. E, como diz o Fernando Savater, é bom que se pense que o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo implica também o direito ao divórcio para que, quando um casal homossexual se divorciar, não caia o Carmo e a Trindade como se o divórcio não fosse coisa comum entre heterossexuais.
Em Atenas, na época clássica, o primeiro objectivo do casamento era a procriação e para o prazer havia as cortesãs. No início do século XX, a base do casal no Ocidente não era o amor mas uma associação económica e um bom casamento era um casamento de conveniência. Daí para cá tem-se avançado para outro conceito de casamento em que o amor passa a ser essencial para o êxito de uma união. Os casais ocidentais constroem hoje relações assentes num sentimento e procuram a felicidade e o prazer. São uniões voluntárias entre duas liberdades. Não há qualquer diferença entre os sentimentos dos homossexuais e dos heterossexuais. As leis discriminatórias são desumanas e obsoletas.
Há outros direitos que reivindica?
Neste momento assinei apenas uma petição para a aprovação da lei que permite o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas há outras leis que merecem uma revisão. Por exemplo: as homossexuais devem poder recorrer a centros especializados para fazer uma inseminação artificial. Neste momento não é possível, o que pode levar a que uma mulher se veja obrigada a seduzir e abandonar um homem para ter um filho.
No seu livro Os sinais do medo há uma personagem, Flávia, que diz o seguinte: "Geração após geração fui-me dando conta dos pequenos sismos que abanavam certas estruturas, das brechas que se abriam, embora no comportamento deles nada se alterasse. E no meu também não porque naquela altura me parecia mais difícil estar de mal com o poder familiar e social do que comigo." Ainda é assim que muitas pessoas se sentem?
Tanto nesse livro como no que se lhe seguiu (Agradece o beijo) tive a preocupação de criar o paralelismo entre o que se passava no tempo das minhas avós e hoje porque em certos campos, como o da sexualidade, apesar do que já se avançou, o peso dos preconceitos persiste e faz ainda enormes estragos em grande parte dos jovens. Segundo dados da rede Ex aequo, que obtive há pouco para o talk show que apresento na RTP 2, Sete Palmos de testa, dos jovens que falaram aos pais da sua homossexualidade, só 17 por cento foram bem aceites. E 60 por cento dos que são não se assumem perante a família.
As tentativas ou ideia de suicídio são três vezes superiores nestes jovens e as depressões e baixos níveis de auto-estima são mais elevados devido à discriminação e preconceitos. Nas escolas o panorama é dramático. Mais de 60 por cento dos jovens viram alguém ser discriminado por este motivo ou foram eles próprios alvo de discriminação.
É muito importante que dados destes sejam divulgados porque existe a ideia generalizada de que tudo mudou e não é verdade. Na aparência muita coisa mudou mas o estigma continua enquanto as mentalidades mais retrógradas se perpetuarem de geração em geração. As leis aqui têm um papel fundamental porque o que a lei reconhece é mais rapidamente assumido pelo senso comum, conservador e medroso por natureza.

"Sempre estive bem comigo"
Qual foi o seu percurso? Quando é que passou a ser mais importante estar bem consigo?
No que me diz respeito sempre estive bem comigo, apesar das pressões exteriores. O meu percurso não foi nada fácil, nem sequer na escolha da profissão. No meio familiar e social em que fui educada e na época em que tudo se passou, há cerca de 40 anos, as mentalidades eram muito mais conservadoras. Até ser actriz não era profissão que se tivesse. Vivia-se, como ainda hoje acontece num certo meio e em certas famílias, debaixo da capa da aparência. Os casamentos podiam ser caóticos, os cônjuges podiam ter relações paralelas, podia-se até ser homossexual, desde que, para a sociedade, se apresentasse uma capa de normalidade. Toda a gente sabia mas fazia de conta que não. Era comum ouvir dizer que tudo se podia fazer desde que não se soubesse.
Isto leva a que um jovem que descobre que a sua orientação sexual não é igual à dos irmãos, dos primos e dos amigos sinta que padece de algum mal terrível que tem de esconder. É preciso estar muito seguro de si mesmo para não sucumbir à tensão que tudo isso cria, além do medo de desiludir família e amigos por não ser a pessoa que esperam dele.
Tive sorte em ser como sou, com algumas características combativas e uma inabalável convicção de que trair-me tão cedo na vida faria de mim um ser frustrado, infeliz e incapaz de viver de cabeça levantada. Tudo isso me deu coragem para enfrentar as tempestades que desabaram sobre mim. Felizmente estou viva, de boa saúde e em paz com a pessoa que sou. Valeu a pena atravessar a floresta cheia de fantasmas, perigos e papões. O meu último livro infantil, A grande travessia, fala disso.

"Não faço juízos de valor sobre
os médicos"
Posso depreender das suas palavras que assumiu a sua orientação sexual muito jovem?
Não pretendo entrar em mais detalhes sobre mim.
Está a circular uma petição, assinada por várias associações e técnicos de saúde mental, onde se contestam as declarações do presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos. Este defendeu recentemente que, se alguém procura ajuda médica para deixar de ser homossexual, nalguns casos é possível ajudá-lo a mudar. Os signatários da petição contrapõem a esta ideia o facto de a homossexualidade ter deixado de ser definida como doença em 1973, pelo que é incorrecto tratá-la como algo que pode curar-se. Tem alguma opinião sobre esta polémica?
Quando há movimentos que impelem para a frente logo surgem as forças retrógradas em toda a sua pujança. É assim em tudo. Não me admiro que surjam mais declarações e propostas insidiosas do género. Não gosto de generalizar e por isso não faço juízos de valor sobre a classe médica. Basta haver meia dúzia com algum poder dentro da Ordem para criarem este tipo de polémica, mas felizmente há quem esteja atento e preparado para fazer o contraponto.
Se desde 1973 a homossexualidade deixou de ser rotulada como doença, só entre 80 e 85 deixou de ser crime. Vinte e poucos anos não são nada para mudar mentalidades. E não só na sociedade civil. Há dois ou três anos, o cardeal Ratzinger, actual Papa, afirmou: "A homossexualidade é um mal moral que deve ser tratado em vez de ser aceite. Os homossexuais não fazem parte dos planos de Deus."
A estas pessoas eu citaria São Tomás de Aquino, que nos dá numa frase um conceito ético muito mais interessante e humanista: "O pecado não está em desobedecer à autoridade irracional e sim em violar a felicidade humana."

"Muitos homossexuais têm atitudes homofóbicas"Acha que a sociedade em geral é homofóbica?
A homofobia é uma realidade, mas não podemos adoptar a postura de vítimas. Pessoalmente sempre agi pela positiva, mesmo sabendo que contava com circunstâncias adversas. Acredito que construímos a nossa realidade e somos responsáveis por ela. Em vez de culpabilizarmos apenas a sociedade e nos juntarmos em guetos ou automarginalizarmos, devemos acreditar mais em nós e agir com firmeza e dignidade, porque isso nos dá força e angaria respeito por parte dos outros.
A homofobia, como o racismo e outras formas de segregação, tem raízes culturais muito profundas e, como é sabido, há muitos homossexuais que têm atitudes homofóbicas e defendem leis que o são. E não esqueçamos que estas questões não são apenas de um país, são da humanidade. A homossexualidade ainda é punida por lei em 75 Estados. Em Marrocos, Angola, Moçambique, etc, dá prisão até 10 anos ou mais, como na Índia e no Nepal. E no Irão e na Arábia Saudita, entre outros, dá prisão perpétua ou pena de morte.
Entre nós a marginalização não é apenas legal, manifesta-se de outras formas.
Por exemplo?
Abusos de comportamento, abusos verbais na família, nas escolas, nos empregos, em todo o lado, muitas vezes por falta de informação, de formação de pais e professores por repetição automática de frases, apreciações, conceitos que não se põem em causa. Reflecte-se pouco sobre o que se diz e o que se repete nem sempre é reflexo do que se sente ou pensa. Sou muito atenta a isso e não deixo passar em branco sempre que alguém, por vezes até amigos, repete conceitos homófobos ou machistas em anedotas e outras histórias. Eu própria já repeti alguns sem me aperceber.
As mensagens sociais negativas são constantes e atiram com a auto-estima dos visados para debaixo do tapete que todos espezinham.

"Acordar com o beijo do príncipe'"Disse numa entrevista: "Em determinada altura as pessoas achavam estranho o facto de eu não me casar e ter muitos meninos, como era suposto. O sentido da normalidade que está implantado na mente da maior parte das pessoas faz com que exerçam essa tirania da normalidade sobre quem quer seguir uma vida diferente." As mulheres são especialmente penalizadas pela "tirania da normalidade"?
No que toca às mulheres, não é só na questão da homossexualidade que reside o problema. Na relação das mulheres com o prazer todos sabemos o que reza a história.
No início do século XX só os homens podiam escrever sobre o desejo, o amor, o prazer; as mulheres que se arriscaram a fazê-lo suscitaram indignação, porque uma mulher séria só devia ter relações para procriar.
As necessidades e sensações eróticas das mulheres, o seu desejo de prazer, a alegria com a sua própria sexualidade, só há poucas décadas começou a ser desvendada.
As mulheres eram desejadas mas não tinham desejo. Eram objectos sexuais mas não sujeitos sexuais. Raramente lemos sobre a maioridade sexual de uma mulher descrita na sua perspectiva. Onde é que a Marilyn Monroe nos conta a sua própria história sexual? E a Bela Adormecida, disse-nos alguma vez como foi acordar com o beijo do príncipe?
As mulheres não falaram durante muito tempo porque as silenciaram. Tanto na vida como na literatura, nos filmes ou nos palcos. Aquelas que ousaram paixões intensas viram-se condenadas, mortas, perseguidas, apelidadas de ordinárias e prostitutas. Em Portugal tivemos alguns casos famosos. A amada do Vitorino Nemésio, Margarida Jácome Correia, foi enfiada à força pela família numa clínica de loucos. O seu livro está aí e descreve bem o seu drama. E não esqueçamos que, ainda hoje, todos os anos, em África, dois milhões de meninas são mutiladas para lhes retirarem a capacidade de sentirem prazer sexual.

Ana Zanatti nasceu em Lisboa, tem 59 anos. Frequentou um colégio católico, o Sagrado Coração de Maria, e mais tarde o histórico Liceu Pedro Nunes. Abandonaria o curso superior de Filologia Românica para fazer teatro, rádio, televisão, cinema - o sensual papel no Lugar do Morto, de 1984, está na memória de toda uma geração. Apresentou (e apresenta actualmente o Sete Palmos de Testa, na RTP2) programas de televisão. Acompanhámo-la em séries tão populares como Morangos com Açúcar. Escreve livros para adultos. E para crianças.
Ana Zanatti num quadro
de Maluda de 1974

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