Dirty Projectors: os génios não existem

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Se muda de página sempre que lê a palavra génio aplicada por dá cá aquela palha esteja como se estivesse em casa. Nós também. Sente-se. Tome um café. Leia o jornal. Sirva-se. Oiça o álbum dos americanos Dirty Projectors e talvez a tentação, apenas a tentação, de soltar a palavra genial surja.
Depois recomponha-se. Não recorra à conveniência fácil de tentar explicar, apenas porque é difícil explicar, um disco como "Bitte Orca" dessa forma.
Dave Longstreth, a alma e a razão de ser do grupo, não é genial. É alguém com ideias, capaz de as explorar, utilizando as possibilidades expressivas da música. Tem insuficiências, como todos. Nem sequer se pode dizer que as supere, mas gere-as melhor do que a maioria porque as identifica. Foi assim que ganhou confiança. Uma estrutura que hoje lhe permite arriscar, mas que não nasceu do nada. Surgiu depois de muitas chapadas.

"Ah, ah, ah, ah....", ri-se com prazer, lembrando portas fechadas, tentativas goradas, horas de ensaios inconsequentes, cinco discos e muitas outras cassetes lançadas a que apenas meia dúzia de aficionados ligaram. A partir desta semana, na altura em que é lançado o novo disco, vão apelidá-los de "geniais", "talentosos" ou "banda mais inteligente da pop".
Está escrito. 2009 é o seu ano. Primeiro vieram elogios dos vizinhos lá do bairro, esse mesmo, Brooklyn, Nova Iorque. Entre eles Vampire Weekend (dois deles chegaram a tocar com Dave há anos); TV On The Radio, com quem andam agora em digressão; ou Grizzly Bear - Chris Taylor, membro destes, foi o co-produtor do anterior disco do grupo. Depois, mais louvores e colaborações com David Byrne e Björk, "duas das pessoas que mais admiro e respeito neste meio", diz Dave.

Agora surge o novo álbum. Ele é esganiçado a cantar. Para compensar, os três membros femininos do grupo cantam com tal harmonia que pareçam vindos de outra planeta. É uma obra de arte-pop, canções livres respirando África, folk enviesada, rock fantasista, dissonâncias da clássica ou melodias R&B, sem ser nenhuma dessas linguagens em particular.
É um idioma só deles. E Dave, 28 anos, agora está preparado. "Às vezes dizem-nos que estamos a ir na direcção certa, mas quando não temos a certeza, é difícil de acreditar, não é? Durante anos, não estava preparado para que gostassem das minhas coisas. Agora estou. Sinto-me satisfeito pelo que faço e pela forma como o estou a fazer. Acredito apenas em pessoas a dar o seu melhor. Génios não existem. Sei lá o que é isso."

A desordem inteligível

Nós também não. Embora tenhamos tido um primeiro vislumbre de que poderíamos estar perante um génio ao ouvir "Rise Above", anterior álbum do grupo, recriação feita de memória, de um outro álbum, "Damaged", disco de 1981 do grupo punk Black Flag. Confusos? Não vale a pena. Dave gosta de operar assim. Com conceitos. Um outro disco, "The Getty Address", girava à volta das noções de imperialismo cultural e misticismo Azteca.

Recentemente tocaram ao vivo, em Nova Iorque, na companhia de Björk, e ele compôs uma série de temas para a ocasião inspirados na observação de baleias. Estão a ver? São ideias prévias que, supostamente, estão lá para contaminar o resultado final. Apenas um método como outro qualquer.

Quando se ouvia "Rise Above" não se vislumbrava o rasto da obra dos Black Flag. O que tínhamos era canções alienígenas, harmonias anómalas, irritações espontâneas de guitarras, vozes estranhas, amálgama sonora excêntrica (guitarras tribalistas, momentos de folk artesanal, sonhos desfeitos de rock e sabe-se lá o que mais) amparada por blocos estáveis. 

Às vezes parece que esta música estaria melhor numa galeria de arte do que num palco rock. Mas agora há "Bitte Orca", o disco onde, não prescindindo de procurar novos territórios sónicos, conseguem organizar a desordem de forma mais inteligível. É isso, estão mais perceptíveis.
Esse movimento já havia sido encetado no disco anterior. Há um ano, em entrevista, Dave dizia-nos que sentia que algo estava a mudar. Agora confessa-nos o que realmente mudou.
"Desta vez não havia uma temática. Não existiu nada a pré-determinar a feitura das canções. Foram sendo feitas enquanto andávamos em digressão, sem nenhum motivo de inspiração. Neste disco deixei que as canções fossem simplesmente canções. Apenas quis fazer música mais expressiva e directa, embora sem prescindir do desejo de abstracção e de inovação."

"Rise Above" admirava-se. Contemplávamo-lo de todos os ângulos. Parecia perfeito. "Bitte Orca" pode conter mais imperfeições, mas deixa-se amar. Como aconteceu com outros grupos que passaram por processos semelhantes (Velvet Underground, Talking Heads, Can ou Animal Collective) este é o disco de um grupo que se encontra enquanto grupo, conseguindo partilhar essa satisfação com o comum dos mortais. Em vez de projectar conceitos, Dave abriu-se à dinâmica dos músicos à sua volta.
"Durante muito tempo pensava que a música que compunha era qualquer coisa que não contemplava a ideia de colectivo. Mas neste disco dei por mim a pensar em todas estas pessoas com quem criei fortes laços afectivos. Nesse sentido, cada uma das canções foi também pensada tendo em conta a personalidade de cada um deles, enquanto pessoas e instrumentistas."

Essas pessoas são Amber Coffman (voz, guitarra), Angel Deradoorian (voz, teclas), Brian Mcomber (bateria), Nat Baldwin (baixo) e Haley Dekle (voz). Inicialmente Dave compôs as melodias e as fracções de guitarra. Algumas canções foram mesmo preparadas em Lisboa, onde permaneceu uma semana com a namorada Amber Coffman depois de terem actuado em Junho de 2008, na ZDB, em Lisboa, e na Fundação Serralves, no Porto.

Depois, no Verão, juntaram-se todos em Portland, Oregon, onde já viveu. "Conheço muito bem a cidade e, depois, um amigo construiu lá um centro artístico, situado num velho edifício, e convidou-nos para o habitarmos. Era a situação perfeita para nós e aceitámos de imediato."
Ele cresceu no Connecticut, onde o pai geria um centro médico e a mãe era advogada do estado. Foi o irmão, artista plástico, cinco anos mais velho, que o contaminou com o vírus da música. Acabou na universidade de Yale a estudá-la. Esteve lá pouco tempo, desiludiu-se com os cânones, ele que gosta de os desafiar. Mudou-se para Portland, começando a actuar ao vivo regularmente em espaços precários, ao mesmo tempo que ia lançando discos, em edições semi-artesanais. Um vício que ficou foi o das cassetes, de tal forma que "Bitte Orca" é agora também editado nesse formato.

Mais tarde, regressou a Yale, completando a formação. "Na universidade aprendi muito sobre orquestrações, por exemplo. Foi importante, mas ter tocado informalmente em muitos sítios antes permitiu-me conviver com pessoas que criam música apenas pelo prazer de o fazer, o que foi fundamental também. Olho para mim e vejo um autodidacta." O espírito "do-it-yourself" levou-o quando foi viver para Nova Iorque, participando activamente na afirmação criativa do bairro de Brooklyn.

Hoje quando contempla o futuro não fica preocupado. Algumas das figuras que admira (William Blake, John Coltrane, Gustav Mahler ou Richard Wagner) passaram a vida a tentar comunicar o seu universo, diz ele, porque ergueram obra vasta, diversa e complexa. Ele, por enquanto, só tem que "explicar porque é que o último álbum é diferente do anterior".
"Não sei se aquilo que faço é apreensível por todos, mas sei que faz sentido para mim. A forma como me aproximo das coisas é intuitiva, não tem nada demais", conclui, antes de começar a falar ininterruptamente de Lisboa.
Fala daquilo que toda a gente fala. Da luz. Dos passeios que deu. Das ruas inclinadas. Das pessoas que conheceu. Dos restaurantes. Por momentos quase caímos na tentação de afirmar o seu génio, mas depois começou a explicar, com requintados pormenores de degustação, que não existe nada melhor no mundo do que as sardinhas de Lisboa. Foi mesmo a tempo.

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