Um título como "Elegia Para um Americano" (no original, "The Sorrows of an American") parece anunciar uma epopeia americana, até nos lembrarmos que, por estes dias, as epopeias americanas - essas narrativas desmesuradas em que a pequena história se confunde com o destino de uma nação - têm títulos (insuspeitos) como "Middlesex". E, apesar de o 11 de Setembro aparecer aqui, muito explicitamente, como um trauma, ou a guerra do Iraque pairar sobre a narrativa, as expectativas de um romance político serão frustradas. Não, definitivamente, "Elegia" não é esse tipo de livro, mas (não tenhamos medo de dizê-lo, mesmo que soe piroso em tempos de cinismo) um romance sentimental - escrito com a cabeça. Outra coisa que também não nasceu ontem (mas que soa menos piroso): é um romance de ideias - daí a sensação ocasional de que as personagens falam menos entre si do que para nós; e que estão a tentar dizer-nos coisas sobre o próprio livro, mais do que sobre uma suposta "história". "Sabes que eu sempre pensei na completude e na integração como mitos necessários", diz uma personagem de "Elegia Para um Americano" (página 135). Estará a autora a enviar-nos recados sobre a literatura? A verdade é que este é um romance esquivo, inapreensível - um romance de segredos, como é anunciado na primeira frase, mas em que a autora parece revelar quase tudo, muito cedo. No final, o leitor pode não ter a certeza do que aconteceu. Isto é, do que acabou de lhe acontecer.
Como uma psicanalista
Siri Hustvedt, 54 anos, está num hotel lisboeta a cumprir uma agenda carregada de entrevistas com a imprensa. A assessora de imprensa da Asa, a editora que publica os livros de Hustvedt em Portugal, diz que muitos jornalistas são repetentes - já tinham entrevistado a autora em 2005, quando saiu o seu anterior romance, "Aquilo Que eu Amava", e fizeram questão em voltar. Nem sequer é preciso ser um admirador da sua prosa: os seus livros convidam naturalmente ao debate, como se prolongássemos o jogo intelectual presente nas suas páginas, e Hustvedt é uma interlocutora estimulante. Dessas que tem tudo para dar certo (se não der, a culpa não é dela).
De certa maneira, as entrevistas com ela são menos justificações do que escreveu do que exegeses da sua obra. Foi por isso que, em 2005, escrevemos que por vezes ela parece falar como um psicanalista.
Hustvedt revelou então que já estava a escrever um novo romance, a história de uma família narrada por um psicanalista, e é isso "Elegia Para um Americano". Dois irmãos, um psicanalista e uma escritora, acabam de perder o pai e a descoberta da carta de uma desconhecida entre os papéis do falecido é a prova de que ele lhes era estranho. Segredos no "habitat" que lhes é mais natural: a família. O romance é atravessado pelo tema da imigração (mas não é, de todo, a sua versão triunfante, como ficaria bem na era Obama): a família Davidsen, de origem norueguesa, chegou à América há poucas gerações. O que nos leva de volta ao título do livro. "Posso dizer-lhe como é que surgiu", começa Siri Hustvedt. "Eu estava a ler o livro de memórias de Ulysses S. Grant [1822-1885, um ex-general da Guerra Civil que foi o 18º presidente dos EUA]. Logo na primeira página, ele diz qualquer coisa como: 'A minha família é americana há seis gerações'. E eu pensei: 'Oh, essa não é a minha história.' Na verdade, há ironia no título." Uma maneira de perguntar: e o que é um americano?
Hustvedt nasceu no Minnesota (como os irmãos do seu romance), filha de uma imigrante norueguesa e de um professor de Literatura Escandinava cujos pais eram noruegueses. O norueguês foi a sua primeira língua (como os irmãos). Os seus romances parecem denunciar sempre uma ligação com a sua vida, e isso talvez seja ainda mais verdade em "Elegia Para um Americano": no final, numa nota de agradecimentos, Hustvedt explica que o seu pai morreu em 2003 e que as passagens de texto atribuídas ao ficcional Lars Davidsen no livro são, na verdade, excertos das memórias que o seu pai escreveu. "Comecei a trabalhar neste livro antes da morte dele. E perguntei-lhe se podia usar partes do seu livro de memórias - era um livro de memórias, não um diário, que ele escreveu especificamente para a família e para os amigos", explica. Perguntamos-lhe se isso fez da escrita de "Elegia" uma experiência particular, diferente das anteriores. "Não. Todos os meus livros foram experiências muito emocionais para mim. Mas o facto de ter citado directamente o meu pai fez parte de um impulso para salvar uma parte dele. Mas só dei conta disso muito mais tarde."
Ser outra pessoa
A voz que escutamos em "Elegia" é a de um homem. Hustvedt já fez isto antes, em "Aquilo Que eu Amava", mas não deixa de ser uma surpresa, quando se percebe, na segunda página, que o narrador não é uma mulher. E por que é que isso havia de ser território exclusivamente masculino? "Às vezes parece-me que as pessoas partem do princípio que somos arrivistas ou coisa do género por fazer isto." Hustvedt escreveu um ensaio, intitulado "Being a Man", sobre "escrever na pele de um homem". "Uma das diferenças", esclarece, "é que se trata de uma voz com maior autoridade na nossa cultura. Mais central. Quer as mulheres gostem ou não, e julgo que muitas de nós não gostam nada, a voz de uma mulher implica uma certa marginalidade. Sim, é diferente: ouvimos todas as vozes dos homens que foram importantes para nós, mas também todos os homens dos livros que lemos. E aí, qualquer que seja a contagem, existem mais vozes masculinas do que femininas na literatura."
Aparentemente, há leitores (ou jornalistas?) que levam tão a sério as coincidências entre a escritora e as suas personagens que às vezes ela tem de explicar que Erik, o narrador e protagonista do seu quarto romance, não é ela. "Ninguém consegue realmente separar, a menos que lhe diga. Inevitavelmente, existe uma espécie de curiosidade mórbida sobre o que é que no livro tem a ver connosco [autores] e o que é que não tem a ver connosco. Se um livro tem uma ressonância emocional e os sentimentos funcionam, as pessoas partem do princípio que aquilo tem de ser real." Siri nunca diria um flaubertiano "Erik c'est moi", portanto? "Não, todas as personagens 'c'est moi'. Não há dúvida de que Erik tem, em parte, a ver comigo. Mas de forma a criar alguém assim, precisamos de sair de nós mesmos, tanto precisamos de sondar o nosso interior. Antes de mais, a sexualidade masculina é diferente da feminina. No livro, Erik tem imensas fantasias sexuais. Tenho tido vários leitores homens. Na Austrália, no final de uma entrevista para a rádio, o jornalista disse-me: 'Isto sou eu. Erik e eu somos iguais'."
Hustvedt refere-se a Erik como "uma espécie de irmão imaginário" (se repararmos bem, é com Inga, a irmã dele, que se parece mais) e diz que, para ela, "um romance é sempre ocupar outra posição, ser outra pessoa". "E sendo outra pessoa, encontro imensa liberdade: se ocuparmos outra posição, ficamos mais livres para explorar certas verdades emocionais."
Na montagem paralela, sem um ponto fixo, que é a construção de "Elegia Para um Americano", Hustvedt inclui as sessões de Erik com os seus pacientes, existências acidentadas, atropeladas por traumas. Hustvedt voluntariou-se para dar aulas semanais de escrita numa clínica psiquiátrica em Nova Iorque, de forma a pesquisar para o livro. Nota-se, além do mais, que há muita erudição sobre assuntos do cérebro por trás de "Elegia". Inga, a irmã do livro, anuncia que está a escrever um livro de "histórias de filósofos, histórias de descoberta, histórias que demonstram como os sentimentos e as ideias são inseparáveis" (página 57) e, mais tarde, o neurocientista (das emoções) português radicado nos EUA, António Damásio, é referido numa lista de "expoentes na área". Hustvedt diz que acabou de o conhecer. "Apenas apertámos as mãos. Mas temos alguns amigos em comum." Acaba de escrever um ensaio de mais de 200 páginas que descreve como "uma memória neurológica", em que fala das suas enxaquecas e de uma desordem convulsiva que começou a ter após a morte do seu pai. "Desde há cinco anos que faço parte de um grupo que se reúne todos os primeiros sábados de cada mês para discutir neurociência, e leio imensos estudos científicos, interesso-me imenso pelo cérebro."
Há um título de um livro famoso da escritora americana Joan Didion que faria sentido aqui: "We tell ourselves stories in order to live" (contamos histórias a nós próprios para conseguir viver). É mais ou menos isso que quer dizer a personagem que fala na página 135 quando diz: "Sabes que eu sempre pensei na completude e na integração como mitos necessários." Mas em "Elegia", Hustvedt quer expor, como ela diz, "a fragmentação da memória traumática". De certa forma, sugere, a dialéctica do livro situa-se entre o desejo de coesão (Erik e Inga perseguem um segredo que esperam que "explique" o seu pai) e a experiência fragmentária do trauma, que resiste a essa ordenação - e que, nas mãos de um escritor, é um expediente para se furtar às molduras narrativas. Hustvedt confessa. "Queria que houvesse uma espécie de mecanismo anti-narrativo, daí os fragmentos."
A entrevista está no fim e a escritora está a tentar convencer-nos a ler Jane Austen. "Acabo de reler 'Persuasão', que não lia há anos. É um livro maravilhoso. Em todos os seus livros, assim que chegamos à promessa de casamento, é tudo muito rápido, ela fecha o livro em duas páginas." Hustvedt anuncia que, depois de "10 anos e meio" a escrever na pele de um homem (a expressão é "as a man") - "Aquilo Que Eu Amava" demorou seis anos, "Elegia" demorou quatro e meio - está pronta para voltar às mulheres. Já iniciou o seu próximo livro. Chama-se "Summer without Men" (Verão sem homens).