O quarto romance de Siri Hustvedt, "Elegia para um Americano", cita abundantemente textos memorialísticos do seu pai, Lloyd Hustvedt, falecido em 2003, e é dedicado à filha de Siri, Sophie Hustvedt Auster, nascida em 1987. Densamente autobiográfica, esta é uma ficção quase ensaística sobre o luto e a transmissão das gerações.
Algumas personagens partilham vários elementos com os Hustvedt, imigrantes noruegueses que se instalaram no Minnesota. Os protagonistas, Erik Davidsen e a sua irmã Inga, perderam recentemente o pai, Lars, e Inga perdeu também o marido, Max. O romance descreve as tentativas angustiadas de descoberta dos segredos e lacunas das vidas dos dois mortos, pois os mortos afectam os vivos, e a sua memória é constitutiva da identidade dos vivos.
Erik e Inga vão percebendo que reconstituir o passado é uma tarefa árdua e perigosa. Inga, uma intelectual (como quase todas as restantes figuras do romance), diz: "(...) não deixa de ser irónico, pois no meu livro eu tento falar do modo como organizamos as percepções transformando-as em histórias com princípio, meio e fim, e em como os fragmentos da nossa memória não têm nenhuma coerência até serem reimaginados em palavras. O tempo é uma propriedade da língua, da sintaxe, do tempo verbal" (pág. 50). Isto significa que as investigações que se vão sucedendo têm menos importância pela suposta verdade que revelam do que pelo modo como os vivos organizam as suas narrativas sobre os mortos, mais ou menos reais, mais ou menos ficcionadas.
Isso manifesta-se de vários modos. Desde logo, nas profissões das personagens (psicanalistas, académicos, biógrafos, fotógrafos, jornalistas), tudo gente que trabalha com histórias de vida. Por outro lado, o texto faz-se de uma teia de sonhos, desenhos, fotos, cartas e citações (incluindo as passagens escritas por Lloyd Hustvedt), uma massa de imagens, palavras e outros modos de expressão com uma legibilidade esquiva. Há também, vagamente, a educação luterana, e especificamente os escritos de Kierkegaard. Finalmente, e essa é a dimensão mais especificamente ensaística do romance, Siri Hustvedt, que tem feito trabalho voluntário numa clínica psiquiátrica, estudou as doenças mentais e seus sintomas. Esses casos vão surgindo nos pacientes que Erik acompanha e em elucubrações sobre Winnicott, Dennett ou Damásio. Não são apenas a psiquiatria e a psicanálise que estão em causa, mas a neurociência, e em geral o modo como a mente funciona.
E por que é que é tão importante o modo como a mente funciona? Porque talvez assim se percebam um pouco melhor os nossos medos e traumas. Curiosamente, Erik reconhece que "o trauma não faz parte de uma história: é outra história. É aquilo que recusamos que faça parte da nossa história" (pág. 55). Todas as personagens tentam escrever a biografia alheia, nomeadamente a biografia de Lars e de Max, das memórias da guerra do Pacífico aos meandros da imaginação romanesca, mas também tropeçam em amantes e filhos secretos. O que Erik e Inga vão percebendo é que conhecer uma história é reescrevê-la, fazer ficções em torno do passado. Ou, como se confessa noutra passagem: "o problema aqui não é a realidade".
O luto é uma tentativa de consolo, que passa pela incredulidade, pela tristeza, pela raiva e pela aceitação. Mas o luto não é apenas um jogo de idealizações e de fantasmas. É também uma transmissão de uma geração à outra: "(...) enquanto a imagem se distanciava, pensei para mim: estão todos a morrer, os nossos pais, as nossas mães - os imigrantes e os exilados, os soldados e os refugiados, os rapazes e a raparigas do antigamente" (pág. 221). Da Grande Depressão de há quase um século até às nossas grandes depressões de agora, é pelas feridas que entra a luz, para retomar um verso do poeta persa Rumi que é a epígrafe do romance. "Elegia para um Americano" chama-se no original "The Sorrows of an American". O atentado às Torres Gémeas é a marca americana do texto, mas esta mágoa é a mágoa universal pelos que partiram. E o romance procura uma maneira de lidar com essa mágoa, para que ela nos fortaleça e não nos destrua. "Elegia para um Americano" é um testemunho magoado que Siri Hustvedt passa do seu pai, Lloyd, que morreu em 2003, para a sua filha, Sophie, que nasceu em 1987.