Haydn O Shakespeare da música
Morreu célebre, mas foi desvalorizado pelos românticos e a sua obra só foi verdadeiramente recuperada depois da Segunda Guerra. Joseph Haydn, o compositor inventivo que atravessou três eras e tinha admiradores como Napoleão, morreu há 200 anos
a Da famosa tríade do classicismo vienense formada por Haydn, Mozart e Beethoven, Joseph Haydn (1732-1809) é hoje o compositor que tem uma presença menos forte no imaginário colectivo. Com a excepção de algumas sinfonias - sobretudo as que têm títulos extramusicais como O Relógio, O Urso ou A Surpresa -, um número reduzido de quartetos e da oratória A Criação, a posteridade apenas recebeu uma imagem parcial da sua imensa produção, nem sempre devidamente compreendida. Considerado uma figura tutelar e identificado de forma simplista como "o pai da sinfonia e do quarteto", Haydn seria também uma vítima indirecta da sua vida relativamente pacata. Não teve uma existência conturbada que alimentasse mitos e mistérios, como no caso de Mozart, nem uma personalidade titânica que inflamasse os espíritos românticos como a de Beethoven. Ao contrário da maior parte dos compositores da geração anterior à sua, Haydn nunca foi esquecido, mas depois da sua morte foi nalguns momentos injustamente subvalorizado. Só depois da Segunda Guerra Mundial a sua música começou ser reabilitada em toda a plenitude.
No entanto, quando morreu a 31 de Maio de 1809, faz hoje 200 anos, era uma celebridade em toda a Europa. Viena vivia a segunda Invasão Francesa, mas Napoleão, seu grande admirador, mandou proteger a casa do compositor e vários dos seus generais e outros militares compareceram ao funeral. Um ano antes, a 27 de Março de 1808, num concerto de homenagem na Universidade de Viena por ocasião do seu 76.º aniversário, onde foi interpretada a oratória A Criação sob a direcção de Salieri, a multidão que o aguardava era tão grande que a polícia teve de intervir para manter a ordem. Na assistência encontravam-se Beethoven e Hummel. Ainda em 1785, um jornal londrino considerava Haydn como "o Shakespeare da música", e quando chegou a Londres pela primeira vez, em 1791, para uma série de concertos promovidos pelo empresário Joahann Peter Salomon, era aguardado com enorme expectativa. A imprensa não falou de outra coisa durante três dias e Haydn chegou a escrever: "Todos me querem conhecer, se quisesse jantava fora todos os dias da semana."
A longa vida de Haydn atravessou três eras. Durante estas décadas a linguagem musical sofreu profundas transformações, o mesmo sucedendo com a estrutura da vida musical e com o estatuto social do músico. Haydn beneficiou do patronato aristocrático da família Esterházy nos moldes do Antigo Regime, sendo um funcionário dedicado e fiel - mas não submisso, como o episódio da Sinfonia do Adeus, em que os músicos vão abandonando as suas estantes um a um como forma de protesto pela permanência prolongada em Esterháza longe das suas famílias -, mas também do êxito como músico independente na esfera pública na última fase da sua vida. Mais do que qualquer outro compositor, teve o melhor dos dois mundos. Como escreveu o historiador da cultura Tim Blanning, "no início da sua carreira Haydn começou a ser conhecido porque era o mestre de capela da família Esterházy; na época da sua morte os Esterházy eram famosos porque o seu mestre de capela tinha sido Haydn".
A sua juventude coincide com o período áureo do barroco tardio e a sua velhice com os alvores do romantismo. Quando Haydn nasceu Bach trabalhava na Missa em Si menor em Leipzig e quando morreu Beethoven já tinha escrito a Quinta e a Sexta Sinfonias.
O príncipe e a música
Nascido na pequena localidade de Rohrau, Áustria, numa família de camponeses, Haydn começou a sua formação como menino de coro, primeiro em Hainburg (para onde foi levado por um primo que exercia as funções de mestre-escola e director do coro) e depois na Catedral de Santo Estêvão, em Viena. A partir de 1761 começou a trabalhar para a ilustre família húngara Esterházy de Galantha, na qual se destaca o príncipe Nicolau, o Magnífico, grande apaixonado pela música. No seu castelo de Esterháza, inaugurado em 1766 e comparado por muitos contemporâneos com Versalhes, edificou um teatro de 500 lugares e uma grande sala de concertos. Durante alguns períodos chegavam a interpretar-se duas óperas e dois concertos por semana, além de música de câmara diariamente.
Haydn não tinha mãos a medir. Pelo menos até 1790 - data da morte de Nicolau, o Magnífico - a obra de Haydn pode ser considerada como o último grande legado do mecenato do Antigo Regime no campo musical. Em termos de quantidade é digna da geração precedente, representada pelos compositores barrocos: mais de 100 sinfonias (recorde-se que Beethoven escreveu apenas nove), mais de 80 quartetos, mais de 20 óperas e cerca de 175 peças de câmara para baryton (instrumento aparentado com a viola da gamba que o príncipe tocava). Haydn teve uma relação próxima com todos os géneros musicais vocais e instrumentais, sacros e profanos (ópera séria e buffa, cantatas, missas, oratórias, Lieder), mas no final da vida abriu caminho também para as grandes obras corais sinfónicas do romantismo com as partituras das oratórias A Criação e As Estações. As ousadias harmónicas da Representação do Caos na introdução à Criação não têm paralelo na música do século XVIII e apenas seriam retomadas pelo romantismo tardio.
Nos relatos da época, Haydn é descrito como uma pessoa modesta e simpática e como um bom católico. Foi um homem que acompanhou o seu tempo mas que não tomou posições radicais. Acabou por conseguir a emancipação do seu antigo estatuto profissional porque o príncipe Anton (que sucedeu a Nicolau) se interessava menos pela música e lhe deu maior liberdade. No entanto, mesmo durante o período anterior, o trabalho no isolamento de Esterháza não impediu que o nome de Haydn corresse o mundo. Boccherini, que trabalhava na corte de Madrid, escreveu-lhe em 1781 a testemunhar a sua admiração e as encomendas chegavam de vários sítios. As famosas Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz resultam da encomenda de um prelado de Cádis, em 1785, e as seis sinfonias parisienses da solicitação da importante sociedade de concertos da Loge Olympique.
A ampla circulação das suas obras, primeiro em manuscritos e em algumas edições piratas, e depois nas edições oficiais da casa Artaria, contribuiu também para sua celebridade europeia. A partir de meados dos anos 80 do século XVIII é o compositor mais editado em França e Inglaterra e em 1784 a revista European Magazine chega mesmo a publicar a sua biografia. Deste modo, o caminho estava aberto para o triunfo nas salas de concertos públicas de Londres quando realiza as suas duas digressões em 1791-92 e em 1794-95.
O humor e os românticos
Os contemporâneos de Haydn parecem ter compreendido, mas o mesmo não sucedeu com a geração romântica seguinte. Schumann tinha um profundo respeito por ele, mas chegou a escrever que "não tinha mais nada a aprender com Haydn", e Wagner comparou a sua produção sinfónica a uma "segunda infância" em relação a um Beethoven que teria já nascido adulto nessa matéria.
A essa avaliação escaparam muitos traços da genialidade do compositor, hoje felizmente reconhecidos. Poderíamos falar de uma mestria de construção sempre inventiva, da sua capacidade de manipulação do material musical ou da forma como incorporou as tradições populares na música erudita, mas há uma qualidade em Haydn que merece especial admiração: a habilidade para criar surpresa e humor na música, este certamente pouco apreciado pelos românticos, mais preocupados com as suas depressões e profundas crises existenciais.