Torne-se perito

LX Factory O que milhares de pessoas fazem aqui

A LX Factory é o espírito do tempo. Recicla, improvisa e pode acabar a qualquer momento. Agora é o hype de Lisboa. Mas não é uma ilha de criadores. Hoje há festa até às seis da manhã

a António Lopes está "a meter as chapas do Ípsilon na rotativa". A capa já cá canta, Carminho, a sensação. Tem ar de garota da Factory, a editora de Andy Warhol nos anos 60. Aliás, Warhol ia gostar de tudo isto pelo menos 15 minutos - de Carminho, da altura deste pé direito com vitrais da Gráfica Mirandela e do que milhares de pessoas andam a fazer aqui, nessa outra Factory que é a LX Factory. Operário das 8h às 16h, António Lopes não tem vagar para tanto. Nem 15 minutos de fama nem uma imperial na rua de trás, onde costumam almoçar product managers, webdesigners, stylists, arquitectos, aspirantes a actores ou consultores de branding. O restaurante chama-se Cantina e fez-se com despojos da Mirandela e de antes dela, mas imperial, pão, prato e café fica por 10 euros. Não vamos perguntar, mas vai uma aposta em como António Lopes almoça por metade fora daqui.
Entretanto, enquanto ele mete chapas, 85 empresas ou produtoras trabalham em gabinetes, ateliers, galerias e estúdios em frente, à direita ou à esquerda. Há um ano e meio não estavam cá. Agora está quase esgotada a lotação destes 23 mil metros quadrados de fábricas e armazéns. E hoje, Open Day, está tudo aberto das 11h às seis da manhã e esperam-se milhares em exposições, aulas abertas, concertos e festas.
Toca um alarme na rotativa.
- É para avisar que a máquina está a trabalhar - explica António Lopes. Daqui a uns minutos o alarme volta a tocar, e é assim noite e dia. Mais o ruído da rotativa e da trituradora de papel.
António Lopes veio para aqui nos anos 80, quando a Mirandela veio, e ocupava mais do que este edifício.
- Onde agora é a livraria era onde se imprimia o PÚBLICO.
Imprensa decorativa
A livraria fica na rua por trás. É a Ler Devagar, uma das mais recentes ocupantes da LX Factory. A rotativa ainda lá está, ao centro e a toda a altura. Lá fora anuncia-se a morte da imprensa, aqui é já uma peça decorativa. A livraria fez-se à volta dela. E aproveitou o alto pé direito, expondo livros até ao tecto.
- É uma alucinação - diz José Pinho, subindo as escadas de ferro para mostrar ao P2 o bar e a galeria na parte de cima. Manuela Hobler, da galeria Arthobler, está a montar a exposição Sediment II, de Jakub Nepras. São vídeo-pinturas e vídeo-esculturas em espiral que serão projectadas na galeria mas também numa tela de camião que vai cobrir a parede do edifício da frente.
- Os movimentos formam uma nova criatura - explica a galerista.
Jakub, checo, 28 anos, sai de uma caixa preta e vem apertar a mão, muito sorridente. É um artista com ar de jovem calvinista.
José Pinho aponta para o sistema de som.
- Também podemos fazer concertos aqui.
Hoje, por exemplo, actuará uma banda que nem tinha nome, baptizou-se para o efeito, os Sons do Silêncio.
Pinho já aqui tem "entre 20 e 30 mil livros" mas "800 caixas estão para vir". Os expostos na parede assentam em tábuas e ripas.
- Madeiras antiquíssimas, estava tudo aí perdido.
É o espírito do lugar. Havia armazéns cheios de secretárias, arquivadores, cadeiras, estantes, restos de 150 anos de fábricas e escritórios, e os novos ocupantes foram tirando o que precisavam. E o que não se recicla improvisa-se.
O escritório da Ler Devagar funciona em duas caixas abertas montadas em cima da rotativa, junto ao tecto.
Desde 1846
Tudo isto acontece num pedaço de Lisboa perpendicular ao rio, na zona de Alcântara, debaixo dos pilares da ponte. Nasceu em 1846 como Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, um marco da arquitectura industrial portuguesa. Foi depois Companhia Industrial de Portugal e Colónias, Anuário Comercial de Lisboa e Gráfica Mirandela.
Entretanto, muitos espaços foram ficando abandonados. A imobiliária Mainside comprou o terreno e rentabilizou o charme em bruto. "Criámos a estrutura LX Factory para gerir o espaço enquanto aguardamos a definição do Plano de Pormenor de Alcântara", explica a arquitecta Filipa Baptista, porta-voz da Mainside. O que a LX Factory faz é ceder os espaços, temporariamente, por preço abaixo do mercado, a "criativos", na lógica das "ilhas criativas" de Berlim ou Nova Iorque. O metro quadrado chegou a ser negociado por menos de dois euros. Os contratos são por cinco anos, mas deixam claro que os ocupantes podem ter de sair antes sem indemnização.
O que vai acontecer quando o plano de Alcântara estiver definido? "Gostaríamos de manter a ilha criativa", adianta Filipa Baptista. "Mas não é de excluir que os espaços sejam transformados em habitação."
Enquanto esperam, tudo indica que valeu a pena não demolir e trazer gente. Ao lado, os edifícios demolidos da Fábrica do Açúcar, de outro proprietário, são uma cratera deserta. E a LX Factory é o novo hype de Lisboa.
Por causa da crise, ou apesar da crise, mudaram-se para aqui dezenas de criativos (sobretudo de design, publicidade e moda), alguns criadores (arquitectos, performers, artistas plásticos) e pólos de atracção como a Ler Devagar. A taxa de ocupação está em 80 por cento.
Os últimos espaços disponíveis estão a ser alugados a 10 euros por metro quadrado. Uma sala em bruto com alto pé-direito e um par de janelas pode ficar por 300 euros por mês.
E as empresas, galerias e lojas foram atraindo centenas de frequentadores e clientes, a que se foram juntando milhares em concertos, inaugurações e festas nocturnas, do último andar aos grandes espaços colectivos no
rés-do-chão.
Todos juntos
A Ler Devagar também organiza a feira do livro que hoje, na festa, ocupa um dos espaços livres no rés-do-chão do edifício principal, e que em breve será ocupado pelo artista plástico Leonel Moura. À volta há uma loja de tecidos e decoração e duas lojas de móveis reciclados. José Pinho avança para a chamada Sala das Colunas.
É um gigantesco armazém, com colunas de ferro, onde se amontoam os restos dos móveis não reciclados, incluindo um manequim em estado convulso que deve ter sobrado de alguma produção de moda. Mais à frente há paletes de livros para a feira, e mais à frente uma gigantesca área com um palco ao fundo.
- No sábado houve aqui uma festa para 3000 pessoas a pagarem 20 euros cada - diz Pinho. - E a Ler Devagar vai receber aqui o primeiro Festival Músicas do Mundo de Lisboa.
Saindo para a rua, a entrada seguinte é a Paris Sete, móveis e decoração. Paulo Teixeira Pinto vem da esquina e entra.
- Venho à Ler Devagar, mas também gosto de design - explica o actual proprietário da Guimarães Editores.
Dobrando a esquina de onde ele veio, Bruno Cecílio, artista plástico que tem um espaço chamado E Viveram Felizes para Sempre, está a montar uma exposição com Lene Baadsvigormen, uma videoasta norueguesa, e Joana Pereira, uma desenhadora portuguesa, ambas com 25 anos.
Ele está cá há um ano e dois meses, foi dos primeiros. Trouxe-as há três meses e o entusiasmo delas é em pingue-pongue.
- É calmo.
- Tem outras pessoas a trabalhar e isso é inspirador.
- É grande, amplo e tem muita luz.
Bruno faz telas a partir de cartazes rasgados.
- É um conceito de apropriação, como nos móveis.
Apropriação e sinergias.
Por exemplo, a produtora de publicidade que é vizinha da frente, a Quioto, convidou-o a intervir
nas casas de banho.
- Pediram-me uma casa de banho de homens completamente gay, e como não sou gay tive de fazer uma grande pesquisa. Passei duas semanas em sites gay.
Bruno vai lá com o P2. Pelo caminho vê-se o depósito de cimento pintado às cores que se tornou o símbolo da LX Factory: "Alegria no trabalho."
- É um bocado maoísta, não é? - ri-se Bruno.
Dá a volta à esplanada do Café na Fábrica - alternativa de almoço light à Cantina - e entra na Quioto, um open space com mesas que eram portas e ambiente Apple em cima delas. Consoante o ponto de vista, as casas de banho, cobertas de recortes hardcore, peluches, algemas, bíblias e uma Nossa Senhora, são um sonho ou um pesadelo.
Nas traseiras há árvores e uma espécie de casinha de madeira onde o italiano Luca Alverdi monta o filme do português Mário Patrocínio que filmou uma favela brasileira onde a polícia não entra.
Voltando ao edifício principal, são precisas horas para atravessar corredores de quatro pisos com dezenas de espaços completamente diferentes, onde uma ONG de ambiente é vizinha de um arquitecto que é vizinho de dois designers gráficos, e por aí fora.
Mais ao fundo, na escola de actores Act, de Patrícia Vasconcelos, uma rapariga de longos cabelos toma um café a balançar a perna, enquanto espera. No segundo andar ficam os 600 metros quadrados do Fórum Dança e da Rumo do Fumo, que produz os coreógrafos Vera Mantero, Miguel Pereira e André Guedes.
- Houve muito interesse em que viéssemos para cá e temos sido muito bem tratados - diz Rosa Carvalho, do Fórum Dança.
O espaço que ganharam e a colaboração com a Rumo do Fumo são outras grandes vantagens.
- A ideia é fantástica, mas tenho pena que não esteja mais ligada às artes. Inicialmente pensávamos que estaria.
Vários artistas optaram por não vir para a LX Factory.
Há muito mais criativos do que criadores.
Epílogo
Na Mirandela, o turno de António Lopes acabou e quem está a imprimir o Ípsilon é Alípio Ferreira, que também vai com 20 anos de casa.
Já é hora de jantar. Os colegas chamam-no. Vão onde?
- Vamos ali ao Galão, no Largo do Calvário. Quer vir?
Alípio Ferreira lava as mãos, limpa-as com grandes folhas de papel para reciclar e põe-se a caminho. Pelo meio avista um carro antigo, câmaras, figurantes, carrinhas, catering.
- Aquilo é alguma vedeta que ali vai - E despede-se.
O P2 vai espreitar. É Mariza. Um anúncio para a Caixa Geral de Depósitos a fazer de conta que a LX Factory é Londres.

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