A vertigem de Else

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Christine Laurent chama-lhe "Ritinha", com um acento vago na última sílaba, à francesa. Rita Durão tem esse lado de mulher-criança em que uma fragilidade aparente se torna força. O desamparo e a segurança na medida certa para, aos 33 anos, poder subir ao palco como a adolescente ao centro de "Menina Else", o segundo monólogo interior de Arthur Schnitzler  - depois de "O Tenente Gustel" - e uma das primeiras obras de sempre a expor um drama psicológico na primeira pessoa.

Em 1900, com "O Tenente Gustel" - a história de um oficial do exército que se recusa a confrontar um padeiro em duelo e vê o suicídio como única saída - Schnitzler, então com 38 anos, vê-se destituído do seu posto de oficial superior por ter escrito e publicado uma novela cujos conteúdos se considerou comprometerem "a honra e o renome do exército austro-húngaro". Vinte e cinco anos depois volta a trabalhar o mesmo tipo de vertigem individual.

A medida clássica para a tragédia: um dia e uma noite, neste caso um dia e uma noite num hotel de charme perdido entre as montanhas italianas. Else, filha de um conhecido mas endividado advogado amante da bolsa e do jogo, está a passar férias com uma tia e um primo; a parente pobre, a tentar esconder a malha nas meias de seda abaixo do joelho, que é lançada no abismo quando recebe um telegrama de casa explicando que a única maneira de salvar o pai da prisão é falar com um amigo dele, um tal de Dorsday, pedindo-lhe um empréstimo de 30 mil florins.

Else - ou seja, Rita Durão - tem lágrimas nos olhos quando se senta à boca de cena, pernas a baloiçar para fora do palco, como quem se encolhe num banco de jardim, e nos faz imaginar esse homem mais velho, um negociante de arte, a encostar os joelhos nos dela. Else - ou seja, Rita Durão - volta a ter lágrimas nos olhos quando pondera deixar que o pai se suicide para não ter que se vender àquele homem mais velho que, em troca, lhe pede para a ver nua.

Freud, que considerava Schnitzler o seu duplo na literatura, escreveria em carta: "A preocupação que você tem com as verdades do inconsciente e com os impulsos e instintos do homem, a dissecação que faz das convenções culturais da nossa sociedade, a atenção que o seu pensamento presta à polaridade do amor e da morte; tudo isso me comove com um estranho sentimento de familiaridade. Sempre que me deixo absorver por uma das suas belas criações, encontro invariavelmente sob a superfície poética que elas apresentam as minhas próprias suposições, interesses e conclusões... Fico com a impressão de que você conhece intuitivamente tudo o que eu descobri com laborioso estudo sobre os outros."

O inconsciente, pois: é a terrível vertigem mental de Else - a angústia e a dúvida, sim, mas também o escape para o humor, a leveza, a auto-derrisão - que acompanhamos ao longo de duas horas.

Duas horas é muito tempo sozinha em palco. Sobretudo para alguém, como Rita Durão, que nunca antes tinha feito num monólogo. Acaba por se entrar numa espécie de "hipnose", diz ela. A hipnose de uma dupla solidão - a solidão da personagem, mas também essa solidão literal de um corpo a quem cabe todo um palco. "A percepção das coisas parece alterada, ampliada, tudo ganha uma nova dimensão."

Projecto antigo este: depois de "Dois Homens" (1998), Jorge Silva Melo sugeriu a José Maria Vieira Mendes que traduzisse "Menina Else" para português e que talvez fosse um bom projecto para Rita Durão; ele ofereceu à actriz um primeiro esboço do texto algum tempo depois. "Há projectos assim, que ficam guardados na gaveta", diz ela.

Foi Christine Laurent quem se ofereceu pessoalmente para a encenação e Luís Miguel Cintra quem sugeriu que a encenação fizesse parte da programação da Cornucópia. Há projectos assim, que acabam por definir o seu próprio momento - a sua altura certa.

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