Pontos de contacto entre as religiões?
O respeito pela liberdade religiosa é uma das proclamações mais repetidas, tanto por João Paulo II como por Bento XVI
1.Integrado nas comemorações do 25.° aniversário da AMI, em parceria com a Fundação Academia Europea de Yuste de Espanha, encerra, hoje, o primeiro Encontro de Culturas - Ouvir para Integrar, com a realização de um vasto programa, desde o dia 21. Foi a primeira vez que este encontro se realizou em Portugal (Lisboa), com a intenção de o repetir periódica e alternadamente em Espanha e Portugal. É convicção destas fundações que, para construir um mundo de concórdia e entendimento, é preciso estabelecer múltiplas pontes de diálogo entre as diferentes culturas e religiões.Fazia parte do programa uma mesa-redonda dedicada aos Pontos de Contacto entre Religiões. Estas já demonstraram que encerram um imenso potencial de conflito - explorado, muitas vezes, por religiosos e irreligiosos -, mas possuem também um potencial de paz não menos surpreendente. Foram homens e mulheres religiosamente motivados que, sem violência e sem derramamento de sangue, defenderam, por exemplo, uma mudança radical na Polónia, na Alemanha Oriental, na África do Sul, em Moçambique, na América Central e do Sul, nas Filipinas.
Hans Küng, um famoso teólogo católico do diálogo inter-religioso, sintetizou as suas convicções a este respeito de forma quase axiomática: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões; não haverá diálogo entre as religiões sem um estudo aprofundado dos respectivos princípios teológicos fundamentais. Por outro lado, o nosso planeta não poderá sobreviver sem padrões éticos globais, sem referências éticas reconhecidas no mundo inteiro".
2.Bela exigência programática, mas como me dizia um amigo, além dos maus contactos de hostilidade e indiferença, o ponto mais comum entre as religiões é a ignorância mútua, embora aumente a produção científica e de divulgação sobre todas e surjam, por vezes, alguns gestos exemplares. O próprio Hans Küng, tendo publicado várias obras especializadas, escreveu um precioso livro, acessível ao grande público, sobre o mundo fascinante, misterioso e complexo das grandes religiões e que serviu de apoio uma série da TV alemã (1). Parte de um princípio simples: se todos precisam de ser informados para ter voz e intervenção nos acontecimentos actuais, a competência não se deve limitar aos assuntos económicos, culturais e sociais. Deve compreender, também, o vastíssimo mundo religioso, no qual ele destaca as religiões originárias da Índia: hinduísmo e budismo; da China: confucionismo e taoísmo; do Médio Oriente: judaísmo, cristianismo e islão. Segundo ele, para as primeiras a figura-chave é o místico; para as segundas, o sábio; para as terceiras, o profeta. O estudo destas religiões e respectivas tipologias é precedido de uma longa exposição sobre as religiões tribais e as religiões desaparecidas.Em Portugal, por enquanto, na área da Ciência das Religiões, apenas a Universidade Lusófona dispõe de uma licenciatura, um mestrado, um centro de investigação e uma revista. A instância académica, embora indispensável, não é suficiente para partilhar os possíveis pontos de contacto entre as diversas religiões. Na Europa actual, o pluralismo religioso assume proporções desconhecidas ainda há poucos anos e é fundamental que os diferentes grupos não se fechem sobre si mesmos, constituindo novos guetos religiosos.
3.Não são as religiões, mas os indivíduos e os grupos humanos que dialogam e descobrem as proximidades e as distâncias entre elas. O terreno humano em que todas se poderiam encontrar tem, desde 10 de Dezembro de 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma referência incontornável: "Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos" (art. 18). Em Portugal, esta resolução da ONU só foi publicada no Diário da República a 9 de Março de 1978. Na Igreja, a liberdade religiosa só foi reconhecida no Concílio Vaticano II. Antes, dizia-se, reconhecer a liberdade religiosa seria equiparar os direitos da verdade e do erro. Ora, a verdade estava na Igreja e vigorava o adágio: "Fora da Igreja não há salvação". Hoje, o respeito pela liberdade religiosa tornou-se uma das proclamações mais repetidas, tanto por João Paulo II como por Bento XVI.Os grandes especialistas, da própria e das outras religiões, poderão descobrir e declarar os pontos de contacto e as incompatibilidades. Esse trabalho está sempre exposto a ser desautorizado pelas cúpulas das diferentes confissões e, muitas vezes, pela voz popular manipulada.
Não se deve, no entanto, pensar que as religiões não podem mudar, para melhor e para pior. A Igreja Católica, num século, mudou do anátema para o diálogo. Mediante muitas e dolorosas peripécias, conseguiu mostrar que "tudo o que sobe converge", servindo-me da expressão de Teilhard de Chardin, no bicentenário de Darwin.
(1) Hans Küng, Religiões do Mundo. Em busca dos Pontos Comuns, Lisboa, Multinova, 2005