Os efeitos da guetização no comportamento dos palestinianos
O "Buster Keaton da Palestina", Elia Suleiman, e a sua obsessão de vida: a condição dos "árabes israelitas". Homenagem ao pai e à mãe, que em 1948 foram ocupados pelos israelitas
a Elia Suleiman não faz muito para que deixem de lhe chamar "o Buster Keaton da Palestina" - continua a tirar proveito daquele seu olhar melancólico, que agora está emoldurado por farta cabeleira negra onde desponta uma "sontagiana" madeixa branca -, mas preferia que a etiqueta de "cineasta palestiniano" caísse. Como? Vai respondendo nas entrevistas: tornando os filmes tão "universais" que o próprio mundo passa a ser a Palestina. Esta resposta tem um equivalente visual naquele plano de The Time That Remains em que Suleiman olha em silêncio para o muro com que os israelitas isolaram os territórios palestinianos - "barreira de segurança", segundo as autoridades - e... salta com vara, silencioso atleta para além do gueto dos territórios ocupados.Sete anos separam Intervenção Divina (Prémio do Júri em Cannes 2002) - pelo meio houve uma curta para o filme em episódios Cada um o seu Cinema - deste regresso à competição de Cannes com The Time That Remains. Sete anos de observações em blocos de notas, de acumulação de pormenores do quotidiano, o processo que o realizador utiliza para criar na mente um compósito de imagens que dá origem, depois, a um filme. É demasiado tempo para o regresso ao mesmo - é uma observação que pode ser oportuno fazer a The Time That Remains, mas há uma obsessão na vida de Elia Suleiman. Este é o terceiro filme de uma trilogia, iniciada com Crónica de um Desaparecimento (1996), com que o cineasta de Nazaré se implica, filmando-se e à história da sua família, na História da Palestina. Na condição daqueles que, como os Suleiman, não saíram de casa quando Estado de Israel se formou e os ocupou, em 1948, tornando-os "árabes israelitas" - condição que transformou pessoas em zombies identitários, como Elia mostrava, filmando o pai e a mãe a adormecer frente à imagem da bandeira e o som do hino israelita, na televisão, em Crónica de um Desaparecimento.
The Time That Remains continua a mostrar esses efeitos da guetização no comportamento dos palestinianos, apenas explicita, em "proustiano" título, o trabalho de reconstrução da memória. A melancolia das keatoneanas ou chaplinescas pantomimas ocupa, agora, o terreno da iconoclastia que explodia em Intervenção Divina. É que o pai e a mãe de Suleiman morreram entretanto. O filme é uma homenagem de um filho a partir dos diários que o pai, resistente em 1948, manteve, e das cartas da mãe à família que se exilou. Cobre um período que vai de 1948 aos nossos dias, ou seja, é na sua primeira metade um filme de reconstituição histórica. Este é um dos seus problemas, aliás: a pantomima burlesca que Suleiman engendrou não liberta a afirmação de um estilo, a determinação de uma escolha. O minimalismo resulta constrangido, como se fosse uma forma de contornar deficiências de produção. É na segunda parte - a actualidade, o regresso de Elia Suleiman a casa, ao que desapareceu e ao que ficou - que The Time That Remains ganha fôlego e encontra a gravidade de Crónica de um Desaparecimento. E é de uma tristeza irremediável.
Suleiman fugiu a ser zombie. Viveu em Nova Iorque, Beirute, agora vive em Paris, fez do seu no man's land a resistência à alienação e ao gueto. É essa a opção - do género: "para ser estrangeiro na minha terra, mais vale ser estrangeiro em qualquer terra" - da personagem principal de Amreeka, primeira obra, exibida na Quinzena dos Realizadores, de Cherien Dabis, uma americana filha de pais palestinianos e jordanos.
Uma mãe divorciada e o filho, fartos do quotidiano dos territórios ocupados, partem para os EUA, ao encontro da família que emigrou. Passa-se tudo isto na altura em que George W. Bush invade o Iraque, de forma que a integração desta mãe e deste filho, algures no Illinois, fica obrigada a uma série de difíceis negociações. Não se podem apontar facilidades a Amreeka, o que o torna logo um filme simpático. Mas é claramente o filme de alguém, Charien Dabis, que em vez da exterioridade, da posição do outsider Suleiman, das possibilidades de experimentação que essa condição pode favorecer, vive dentro e filma de dentro. Desde logo dentro de um sistema narrativo - é o filme de uma estreante nas longas-metragens que já era produtora e argumentista de televisão (colaborou, por exemplo, para a série The L Word).
No dia da morte de João Bénard da Costa, Cannes lembrou-se que ele passou pelo festival em 2008, para participar na homenagem a Manoel de Oliveira. Num comunicado, o presidente do festival, Gilles Jacob, lamentou o "brutal desaparecimento" do director da Cinemateca Portuguesa, que descreve como "um erudito, um homem fino, culto, delicioso, que contribuiu enormemente para a cinematografia portuguesa".