A percussão é um fenómeno? Sem dúvida. A "Semana da Percussão" que começa este domingo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, parece ser mais uma prova da vitalidade de uma prática com cada vez mais adeptos em Portugal. Uma nova "Maratona da Percussão" proposta por Pedro Carneiro e a comemoração dos 10 anos de actividade de um dos grupos mais importantes de percussão do país, o Drumming, fazem o núcleo central deste conjunto de iniciativas que se estende até dia 30 de Maio. Miquel Bernat, percussionista valenciano a viver em Portugal há mais de 10 anos, é um dos organizadores desta semana em que muitas baquetas vão dançar.
O Boom! da percussão
Este grande impulsionador do Drumming, professor de percussão na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto e na Escola Profissional de Música de Espinho, diz que há um "clamor" à volta da percussão.
"O concerto 'Estou-me a marimbar' foi feito agora em Castelo Branco e as pessoas ficam mesmo surpreendidas. E isso transmite-se", diz o muito respeitado percussionista espanhol que já tocou com a orquestra da Concertgebow de Amesterdão. Bernat tocou com alguns dos grupos mais importantes da percussão a nível mundial, como o Ictus Ensemble, e colaborou com a companhia de dança belga "Rosas", de Anne Teresa de Keersmaeker. Miquel Bernat diz que "começa a haver mais alunos e mais gente começa a ir a concertos de percussão".
Desde que é professor na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto, Bernat tem cada vez mais alunos. Muitos vêm hoje para a escola, de várias partes do mundo, por sua causa e "por causa do nome que tem o 'Drumming'". Segundo ele, este panorama era "impensável há dez anos - o público está a aumentar e há muito para explorar".
Rui Júnior, percussionista e fundador dos Tocá Rufar (em 1996) confirma este "boom" da percussão. Para ele pode falar-se de um verdadeiro "fenómeno". Um dos espectáculos mais recentes dos Tocá Rufar, intitulado "Wok" (em cena no Teatro da Trindade), apresenta-se mesmo como "a maior investida na percussão tradicional portuguesa".
No último dia de Maio, o "Portugal a rufar" (a decorrer no Seixal pela quinta vez), encerra com um desfile de rua de mais de 1600 tocadores. Isto para não falar na grande quantidade de novos músicos, novos compositores, novos grupos, novos cursos de percussão em escolas de música clássica, de jazz ou de música tradicional.
A Semana da Percussão parece ser, portanto, parte de um fenómeno bem mais vasto. O CCB será durante sete dias um local de encontro para compositores, músicos consagrados, crianças e adolescentes aspirantes a percussionistas ou simples ouvintes curiosos.
As baquetas são um baile
Um dos pratos fortes da programação desta semana no CCB é a peça que dá nome ao grupo de Miquel Bernat - "Drumming", de Steve Reich, escrita originalmente, em 1970, para quatro pares de bongós, três marimbas, jogos de sinos, vozes, apitos e flauta. O percussionista pediu directamente a Steve Reich para usar no grupo o título desta obra que admira. E ele disse que sim.
Mas "Drumming" não está na programação da "Semana da Percussão" (no dia 24) só pelo título: "É uma peça muito importante que consagra Steve Reich como compositor. É apenas um ritmo descomposto, com a técnica de desfasamento, uma peça que teve um impacto e um encanto fabuloso nos anos 70", diz Bernat, destacando o facto de ser uma oportunidade rara de ouvir esta peça. Que ele saiba, é a primeira vez que será tocada em Lisboa.
Desde que em 1999 se tornou um grupo independente e espantou os espectadores do Teatro Rivoli, o Drumming já tem no reportório 45 espectáculos diferentes. Poderemos ouvir no CCB alguns deles: "Opens Scores" (dia 26), uma colaboração com a dança (Núcleo de Experimentação Coreográfica de Joclécio de Azevedo), com grande dose de improvisação, baseada numa peça famosa de Terry Riley ("In C"); "Trifásico" (dias 28 e 29), que junta três artes cénicas - um teatro musical de George Asperghis, um vídeo musicado ao vivo de Edmund Campion e uma ópera num acto de David del Puerto; o espectáculo pedagógico "Estou(-me) a marimbar" (dias 25, 27 e 29), uma volta ao mundo em música para marimba em que se ouvirão instrumentos e músicas tradicionais de vários países; e ainda "Estudos, ritmos, cadências", com Miquel Bernat e Nuno Aroso, num espectáculo com mais música contemporânea.
Entretanto, Pedro Carneiro propôs dois recitais de intérpretes internacionais de alto nível (Kunihiko Komori e Jeremy Fitzsimons, ambos no dia 30), inventou uma oficina "À descoberta da marimba" e planeou também com Miquel Bernat um concerto de encerramento em que todos os músicos subirão ao palco do Pequeno Auditório.
"As baquetas são um baile, dançam", diz Bernat. Pelo CCB vão, portanto, andar a dançar baquetas, na música contemporânea ou nas músicas tradicionais. "São pólos opostos, de certa forma. Por um lado, estamos no fio da vanguarda, mas ao mesmo tempo estamos a lidar com música de culturas muito antigas, de tradições ancestrais", explica.
Porque a percussão está na berra, mas é também uma coisa muito antiga. No espectáculo "Estou(-me) a marimbar" mostrarão a públicos de várias idades os instrumentos tradicionais primitivos de Madagáscar, mas também as timbilas de Moçambique, o wagogo da Tanzânia, o gamelão (orquestra de percussão) da Indonésia, marimbas mexicanas ou japonesas e, nalguns casos, tocando música que aprenderam com marimbistas africanos ou asiáticos. Antiga e moderna, e de todas as partes do mundo.
Rui Júnior acha fundamental o processo de "trabalhar na raiz e trazer para a actualidade", assentando o seu trabalho na música tradicional portuguesa e na herança dos tocadores de bombo, agora redescoberta: "Há 10, 15 anos, não havia grande consideração por tocar bombo ou caixas de rufo. Mas desde 1996 que já se criaram mais de 40 orquestras contemporâneas." Rui Júnior diz entusiasticamente que, por este andar, "Portugal vai ser de novo um país de percussionistas, como cuba é reconhecido pelos ritmos afro-cubanos e o Brasil pelo samba".
Drumming não é Stomp
Mas para fazer música contemporânea também é preciso consciência histórica e saber das "raízes". Também Steve Reich foi à procura de raízes em África, nos anos 60 e 70. Miquel Bernat diz que quer "descobrir novos caminhos estudando o antigo". O novo, para ele, não deve ser confundido com o espectacular ou apenas com a moda: "A percussão também tem algo de teatral. Mas há o negativo disto quando vai pelo superficial. Tem de haver consciência e estudo, senão é apenas uma questão de moda. Os 'Stomp' [grupo de comédia e dança inglês de sucesso] fazem um bom espectáculo de teatro com música de baixa qualidade. Nós somos músicos antes de mais, só que temos de ter visão do corpo e da cena."
Bernat explica-nos melhor a sua ideia de "ter um compromisso sério com a percussão": "Há uma visão da percussão apenas pelo lado espectacular, pelo lado físico, mas nós tentamos mostrar que há outro lado, tentamos explorar subtilezas, avançar nas qualidades expressivas, na qualidade da música, sem ter esse aspecto 'fitness', que também pode ter, ser virtuoso, forte, rápido."
Compromisso com a qualidade da música, com a novidade que não é só moda, mas também com a divulgação da percussão para públicos variados, a semana da percussão é uma iniciativa com muito "Bang, Splash, Crash!" (o nome da maratona proposta novamente pelo CCB). E se não sabe o que é um steel drum jamaicano ou nunca viu uma orquestra de marimbas, se acha que as baquetas são todas iguais ou acha estranho que os compositores de hoje tenham tanto interesse por estes instrumentos, pode surpreender-se nesta semana da percussão. E talvez encontre alguns jovens "com as baquetas na mochila", como diz Rui Júnior, os novos entusiastas da percussão e certamente parte do seu futuro.
Entre tantos tambores, bongós, congas, marimbas, pratos, caixas, sinos e gamelões, vão poder ouvir-se dois grandes nomes da percussão em Portugal. Um deles é Miquel Bernat, um dos percussionistas que mais está a contribuir para mudar o panorama da percussão contemporânea. Miquel Bernat chama ao seu "Drumming" "um arquipélago com várias ilhas", referindo-se às múltiplas actividades do grupo, que passam pela colaboração com a dança e com o teatro, pela divulgação e pelo ensino, pela música tradicional e pela música contemporânea. Um grupo que vai continuar à procura das novas e antigas subtilezas da percussão, mas que tem um compromisso com o futuro. Porque de uma coisa Miquel Bernat não tem dúvida: "Não penso para trás, penso para a frente."