Ruth disse a Obama: não quero estar sozinha entre os homens
Em breve, a pequena e delicada Ruth Bader Ginsburg - que teve dois cancros e no primeiro nunca faltou ao trabalho - poderá deixar de ser a única mulher no Supremo dos EUA. Um dos juízes vai reformar-se e há três mulheres que os media têm feito sobressair na lista de possíveis candidatos ao lugar. É preciso mais um ponto de vista feminino, porque a discriminação ainda existe.
Ruth Bader Ginsburg poderá deixar de ser a única mulher no Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América. A reforma do juiz David Souter, no final de Maio, abre a porta à nomeação de mais uma senhora para o mais alto tribunal do país. Os três nomes que lideram as várias listas de possíveis substitutos que vêm sendo publicadas na imprensa são todos femininos: a juíza Sónia Sotomayor, do 2.º Circuito do Tribunal de Apelações; Diane P. Wood, juíza do 7.º Circuito do mesmo tribunal, e Elaine Kagan, que foi reitora da Harvard Law School (frequentada pelo Presidente) e agora é procuradora-geral.No fim do mês se saberá quem se vai juntar à juíza Ruth, a mulher que o Congresso homenageou, com aplausos, no dia em que Barack Obama fez lá o seu primeiro discurso como Presidente.
Quando os nove juízes do Supremo Tribunal entraram cerimonialmente no hemiciclo do Capitólio antes do primeiro discurso de Obama perante as duas câmaras do Congresso, no passado mês de Fevereiro, o imenso aplauso que rebentou na sala poderia ter enganado os mais distraídos e levá-los a pensar que tinha acabado de chegar o novo Presidente.
Mas o aplauso ia direitinho para Ruth Bader Ginsburg, a juíza de 76 anos que dois dias antes tinha recebido alta de um hospital de Nova Iorque, depois de ser operada a um cancro pancreático. Pequena e delicada, o rosto branco, e o cabelo, como sempre, impecavelmente apanhado e emoldurado pelos óculos gigantes, Ginsburg apenas abanou a cabeça, ao de leve, e sorriu, enquanto se dirigia para o lugar que lhe era devido, na primeira fila. Quando lhe perguntaram porque tinha decidido participar no evento, a resposta foi cristalina. "Porque queria que as pessoas vissem que o Supremo Tribunal não é composto inteiramente por homens."
Quando a doença de Ruth Bader Ginsburg foi divulgada, a comunicação social mostrou-se um pouco mais renitente no exercício de especulação sobre a previsível mexida na composição do Supremo Tribunal. A juíza já tinha tido um antecedente cancerígeno colo-rectal - que ultrapassou sem nunca faltar ao trabalho.
E no anúncio do novo internamento não havia o mínimo sinal de que Ginsburg considerava que o novo tratamento a impediria de cumprir a sua função - apenas uma sucinta e seca descrição do procedimento cirúrgico a que seria submetida para retirar o tumor do pâncreas.
Como explicou mais tarde, havia uma outra razão para não faltar ao primeiro discurso do novo Presidente no Congresso. "Queria que vissem que eu estou viva e de saúde, ao contrário do que apregoara um determinado senador [o republicano Jim Bunning], que já tinha andado a decretar a minha morte dentro de nove meses." Brincando com os jornalistas, avisou-os de que ainda não era desta que iriam escrever sobre a sua substituição.
Quebrar o silêncio
Agora, a habitualmente recatada juíza Ginsburg quebrou o silêncio para se juntar àqueles que têm publicamente apelado ao Presidente Barack Obama para escolher outra mulher para o lugar antes ocupado pelo juiz Souter. "As mulheres devem estar em todos os lugares onde são tomadas decisões. Não acho que seja preciso adoptar uma fórmula do tipo 50-50; pode ser 60 por cento homens e 40 por cento mulheres ou vice-versa. O que acho é que as mulheres não deviam ser a excepção", declarou ao diário USA Today.
Quando ela própria foi indicada para o Supremo Tribunal, em 1993, elogiara entusiasticamente a decisão do Presidente Bill Clinton de "diversificar" a composição daquele órgão colegial. Ginsburg era apenas a segunda mulher a ascender ao Supremo e não podia ser mais diferente da pioneira Sandra Day O'Connor, a "centrista imprevisível" nomeada por Ronald Reagan 12 anos antes dela. "Durante a minha vida espero ainda ver três, quatro ou até mais mulheres a sentar-se na mais alta cadeira do nosso sistema judicial, mulheres todas formadas em moldes diferentes, mulheres das mais diferentes compleições", disse na audiência de confirmação do Congresso.
Até porque, como desabafou recentemente, ainda é "muito difícil" ser a única mulher num grupo de homens. Desde 2006, com a saída de Sandra Day O'Connor (que se reformou para tratar do marido, que padece de uma doença debilitante incurável), o seu trabalho tornou-se bem mais complicado, admitiu. Por exemplo, quando o colégio de juízes teve de deliberar sobre o caso de uma estudante de 13 anos que foi forçada pelos oficiais da sua escola a despir-se até ficar nua para uma busca de drogas, nenhum dos seus colegas se mostrou particularmente sensível aos efeitos psicológicos de tal gesto. "Claro, nunca nenhum deles foi uma adolescente de 13 anos, não têm a mínima ideia do que se sente...", observou Ginsburg. "É um período muito sensível, mas eles nunca compreenderam isso completamente", lamentou.
Como também não compreenderam como um grupo de mulheres puderam sentir-se terrivelmente discriminadas por uma empresa de telecomunicações que não lhes pagou o fundo de pensões durante o período de baixa de maternidade. "A discriminação baseada na gravidez é seguramente discriminação baseada no género", alegou a juíza, que votou vencida para que as funcionárias recebessem retroactivamente os seus benefícios.
Ou de como Lilly Ledbetter, uma supervisora da fábrica de pneus Goodyear do Alabama, se sentira vítima de preconceito quando descobriu, ao fim de 20 anos de trabalho, que o seu salário era inferior ao dos homens que executavam exactamente as mesmas tarefas que ela. Lilly Ledbetter processara os seus empregadores alegando discriminação, e ao fim de sucessivos recursos o processo foi parar ao Supremo. Numa decisão de 5-4, na qual o voto decisivo pertenceu ao juiz conservador Samuel Alito (que substituiu Sandra Day O'Connor), o tribunal indeferiu a queixa, argumentando que a lei contra discriminação laboral requere que a situação seja denunciada em seis meses.
Eles não ouvem as mulheres
Numa atitude inédita, a furiosa juíza Ginsberg exigiu que o seu parecer derrotado fosse lido durante a sessão pública de anúncio do veredicto. À saída do edifício, dirigiu-se aos jornalistas para apelar ao Congresso que produzisse urgentemente nova legislação (foi a primeira lei assinada por Barack Obama). E num lamento que era, no fundo, uma profunda censura, recordou: "Apesar de ter discordado muitas vezes com a juíza O'Connor, que era uma verdadeira republicana do Arizona, sempre ouvi a sua voz levantar-se contra todos os casos de discriminação por género. Não tenho a mínima dúvida de que ela entenderia a realidade de Lilly Ledbetter."
Uma realidade que Ruth Ginsburg também sentiu muitas vezes na pele. "Nem sei quantas reuniões frequentei durante os anos 60 ou 70, em que dizia qualquer coisa e achava que até tinha tido uma óptima ideia, e ninguém reagia. Depois algum colega, homem, dizia exactamente aquilo que eu tinha acabado de dizer, e as pessoas começavam a responder, todas alerta ao argumento", lembrou. "Acontece até hoje. Às vezes, estamos reunidos em conferência privada [no Supremo Tribunal] e só quando alguém repete um ponto que eu acabei de dizer é que os restantes juízes prestam atenção. De certeza que não é por eu não ter um raciocínio claro ou não ser uma oradora eloquente", explicou.
A primeira vez que os juízes do Supremo Tribunal ignoraram a sua eloquência e o seu raciocínio jurídico foi em 1960, quando o reitor da conceituada Harvard Law School, Albert Sachs, impressionado com a sua competência e capacidades, propôs o seu nome a um amigo juiz do Supremo Tribunal, Felix Frankfurter, que buscava um assistente. Frankfurter respondeu-lhe que, de facto, a candidatura de Ruth era "impressionante". Mas ele não se sentia preparado para trabalhar com uma mulher, que ainda por cima era casada e tinha de tratar de uma filha de cinco anos, e por isso não poderia contratar a jurista.
Romance maravilhoso
Ruth Ginsburg tinha terminado os seus estudos jurídicos como a melhor da classe na Columbia Law University de Nova Iorque, para onde se transferira de Harvard porque o marido, Martin, que conhecera em Cornell, no início da faculdade, tinha recebido uma oferta de trabalho irrecusável. Martin (Marty) tinha escolhido o direito fiscal - e é ainda hoje um dos mais proeminentes especialistas dessa área nos Estados Unidos. O interesse de Ruth ia para o processo civil.
Ainda hoje, amigos e conhecidos elogiam o "romance maravilhoso" que é a vida do casal. Marty e Ruth parecem o oposto um do outro: ela, frágil e minimalista, ele imponente e extravagante. Os dois filhos, separados por dez anos, seguiram as paixões dos pais, a lei e a ópera - Jane, uma autoridade em direitos de autor, é professora de Direito na Universidade de Columbia, James é produtor numa empresa discográfica de música clássica de Chicago.
Recusada pelo Supremo em 1960, Ruth foi trabalhar como assistente do juiz Edmund Palmieri do Tribunal Federal de Manhattan, até que foi convidada pela Rutgers Law School, de Newark, Nova Jérsia, a regressar à vida académica. Ginsburg envolveu-se numa investigação de direito processual civil que a levou a escrever o tratado académico que deu origem ao Código Civil da Suécia (para o efeito, aprendeu a falar a língua escandinava).
Dez anos mais tarde, foi chamada de volta pela Universidade de Columbia, onde foi a primeira mulher a alguma vez receber tenure (um lugar efectivo). Nessa altura, Ruth estava profundamente envolvida num novo projecto: uma secção de direitos das mulheres que ajudara a fundar no âmbito da American Civil Liberties Union (ACLU), a maior organização governamental de direitos humanos dos Estados Unidos. O seu papel era escolher, preparar e debater casos jurídicos: Ginsburg levou seis deles até às últimas consequências, ou seja, apresentou-os perante o Supremo Tribunal. Ganhou cinco.
A sua estratégia como advogada foi absolutamente inovadora. O seu objectivo foi o de demonstrar que a legislação produzida com o objectivo de beneficiar ou proteger as mulheres tinha o efeito oposto, contribuindo para acentuar a sua discriminação. E, para provar a sua tese, Ruth Ginsburg escolheu como arguidos homens que tinham processos por não receberem o mesmo tratamento do que as mulheres. Ginsburg alegava que as leis eram baseadas em estereótipos injustos e preconceituosos, e nalguns casos anticonstitucionais. O que ela pretendia era que a regra jurídica fosse da aplicação neutral das leis antidiscriminação, independentemente do sexo.
"É a clássica fórmula judaica de argumentar contra a intolerância. O argumento feito para as excepções da justiça não é feito em nome de um caso particular, mas sim no respeito pelo princípio geral", comentou Leon Wieseltier, um editor literário que é dos maiores amigos de Ruth Ginsburg.
Com efeito, a juíza foi educada dentro dos mais rigorosos valores judaicos. Ruth Joan Bader, nascida a 15 de Março de 1933, passou a sua infância e adolescência imersa na comunidade judaica de Flatbush, em Brooklyn. O pai, Nathan, era dono de uma pequena cadeia de lojas de vestuário. A mãe, Celia, morreu de cancro no estômago quando Ruth tinha 17 anos. No início da adolescência, tinha-lhe ensinado o valor da temperança. "Ela dizia sempre para eu me comportar como uma lady. Para ela, isso significava seguir as minhas convicções com respeito por todos, ser um exemplo e nunca perder a cabeça. Como ela explicava, a fúria, o ressentimento ou a recriminação são uma perda de tempo e de energia", lembrou certa vez num discurso aos alunos.
Muitos vêem na conjugação de todos estes antecedentes a explicação para a particular sensibilidade da jurisprudência de Ruth Ginsburg - que, antes de ser nomeada para o Supremo Tribunal, exerceu como juíza do Tribunal de Apelações durante 13 anos. A restrição parece ser a base de todas as suas posições. Em vez de abstracções ou generalizações, Ginsburg é famosa por se circunscrever aos detalhes processuais. Para ela, a jurisprudência é uma evolução, não uma revolução, o que um juiz precisa de saber fazer é interpretar as leis e a sociedade, numa espécie de sucessão lógica.
Por vezes, isso significa recusar casos para os quais ainda é preciso esperar, explicava aos seus alunos. "Os tribunais só podem desenvolver uma lei de cada vez. Há um primeiro passo e depois outro, e depois outro e depois outro. Não se pode andar depressa de mais, porque senão corre-se o risco de se perder o que já se alcançou." a
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