Ne Change Rien, de Pedro Costa, "é um dos mais belos filmes que fiz"
No Outono vamos vê-la em Portugal, a cantar. Hoje vamos conhecer melhor o monstro, a actriz, a performer, a cantora, várias vidas num só corpo. Por Vasco Câmara em Cannes
a Pedro Costa filma uma performer que é feita de pedaços de outras vidas. Ela é uma actriz, dos filmes de Jacques Rivette, por exemplo. Mas é também uma cantora e performer, salta de uma Nico versão Rive Gauche para uma Marlene do rock da distorção, de uma cantora de opereta a alguém que se flagela com as torch songs e o blues. A sua voz vai de Offenbach a Johnny Guitar. Essa é a Jeanne Balibar, cantora que canta, ensaia e se tortura com a aprendizagem da voz, de Ne Change Rien, documentário de Pedro Costa apresentado na Quinzena dos Realizadores de Cannes. Jeanne diz que é um dos "mais belos filmes que fez", reconhece-se nele "mais do que em qualquer outro". Em Outubro, quando o filme estrear em Portugal, vamos ver o monstro em palco.Desde 2005 que trabalham neste documentário, você e Pedro Costa. Quando se passa tanto tempo, deve-se esperar algo do resultado, deve-se imaginar ao menos algo. O que é que esperava?
Não trabalhámos assim tanto tempo, ou fizemo-lo de maneira particular. Foi feito aos bocados, nunca dissemos: "Vamos fazer um filme". Eu sabia que de tempos a tempos ele chegaria [para filmar, concertos, ensaios], mas para fazer o quê não sabia bem. Quando ele estava em montagem, percebi que precisava de estar sozinho com as imagens, nem aí falámos. Não estive à espera de um filme. E um dia esse filme chegou.
Viu o filme pela primeira vez em Cannes, e já o viu duas vezes, tantas quanto precisa, já o disse, para ter uma ideia precisa do que viu. E então?
(longuíssimo silêncio)... Não sei. É um dos mais belos filmes que fiz...
É curioso que ponha as coisas assim, porque na conferência de imprensa a seguir à exibição de Ne Change Rien disse que o filme tinha sido uma experiência ideal: não tinha sido actriz, não tinha feito o métier. Limitou-se a estar lá. Afinal, mesmo quando não faz de actriz não consegue deixar de "fazer"...
É o paradoxo deste filme. E do facto de eu ter um ideal profundo do que é isso de ser actriz. Os filmes que fiz decidi fazê-los. A filmografia de um actor são decisões que ele tomou. Não gosto da mitologia do actor ao lado do telefone à espera que lhe proponham algo. As actrizes dizem: "Ser actriz é ser o desejo de outra pessoa." Não acredito nisso. Ser actor e ser actrtiz é ser ACTOR e ser ACTRIZ, ou seja, é dizer do seu próprio desejo de representar o mundo. Sem forçosamente conseguir explicá-lo. Acredito profundamente que os actores têm uma obra, que há uma "política dos actores" como há uma "política dos autores". E que tudo o que fazemos vai no sentido de afirmarmos como queremos representar o mundo. Por isso, fiz este filme construindo uma relação com o Pedro, uma relação singular que não se parece com outra. Essa relação é fundada no facto de fazermos juntos um filme, inventando outra maneira de o fazer. Houve um "talvez", ao longo desses anos, "talvez" este filme se fizesse, mas esse "talvez" é importante, porque é o contrário de um produtor telefonar a um agente a propor que se faça um filme... Eu sou marxista, acho que as condições de produção determinam o conteúdo. E a forma estética. Por isso esse "talvez" faz parte das condições materiais do filme, logo da sua forma, logo daquilo que conta e da sua visão do mundo...
Pedro Costa diz que põe o seu cinema ao serviço de quem tem à frente. Mas não são as obras de Pedro Costa filmes sobre o mundo de um cineasta, de que você, como a Vanda Duarte de No Quarto da Vanda, participa?
Eu reconheci a Jeanne Balibar em Ne Change Rien mais do que em qualquer outro filme que fiz. E acho que o Pedro olha. Pedro é cineasta, o filme é o seu olhar. Mas tem a simplicidade, a coragem, de colocar esse olhar... Talvez este filme seja o álbum de música que ele tivesse querido fazer se fosse músico...
Aí estamos de acordo. É mais um filme sobre a música do que um retrato de Jeanne Balibar. É um retrato de uma ideia de performer, de cantora...
Completamente. E é por isso que me reconheço. É um filme sobre uma ideia de cantora, tão abstracto como os musicais de [Vincent] Minnelli. É um filme que vem, para mim, mais de uma tradição antiga das ficções musicais do que dos documentários sobre o rock.
Era possível esquecer que um realizador estava ali, consigo e com os músicos, naqueles exíguos espaços de ensaio...?
É impossível esquecer que o Pedro está ali. Fala-se sempre da presença dos actores, mas fala-se pouco da presença dos cineastas nos filmes. É igualmente importante. E visível, o seu corpo, a sua voz, o seu olhar. Pedro tem uma fortíssima presença. Nunca nos esquecemos que está ali...
Como é que aconteceu Jeanne Balibar/cantora?
Não sei bem. Penso que todas as pessoas são cantores. Lembro-me de pensar que todas as pessoas eram actores - descobri que não. Mas com os cantores sim. E depois é um produtor que torna isso possível. Por exemplo, o produtor dos Beatles, George Martin. E gosto de todos os cantores. Mesmo dos piores...
Em vocês há vários num. Há o lado Nico, cantora de blues, de torch songs, chanson... Pedaços de uma construção monstruosa...
Sim, é isso que diz, sou polimórfica. É um defeito e uma qualidade. Defeito porque retira concentração. Qualidade porque é uma reivindicação de liberdade. Não gosto dos códigos, gosto de passar de um a outro. É um gosto que me caracteriza como artista. Como Lon Chaney [actor do mudo, do cinema de James Whale, ficou conhecido como "O Homem das Mil Caras" pelas metamorfoses a que levavam os seus papéis]....
Lon Chaney tem a ver com Ne Change Rien...
Sim. É a minha natureza de artista.
Para além de afinidade cinéfilas, Jeanne Balibar e Pedro Costa descobriram afinidades musicais?
Sim. Os Kinks, falámos deles. E da Motown... E falámos dos Velvet Underground com [o cineasta chinês] Jia Zhang-Ke.